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Estou em acreditar que aquilo que mais receamos é o que nos faz sair dos nossos hábitos. Todavia, com tanto divagar, é que nada faço. É verdade que poderia alegar esta outra razão: porque nada faço é que divago tanto.
As coisas mais insignificantes têm às vezes grande importância e é regra geral por elas que a gente se perde...»
Se o homem não é de facto pusilânime, deve calcar todos os receios, todos os preconceitos que o detêm!»
Então, se não pode haver amor, nem estima, se pelo contrário há antipatia, repulsão quase, em que difere esse casamento da prostituição?
No entanto, sob o ponto de vista moral, Raskólnikov tinha razões para considerar a questão resolvida. A sua casuística, como uma lâmina afiada, cortara todas as objeções, e não as encontrando já no espírito, tentava encontrá-las fora dele. Dir-se-ia que, impulsionado por um poder irresistível e sobre-humano, procurava a todo o transe um ponto fixo a que se agarrasse. Os acontecimentos operaram nele de uma forma absolutamente automática; tal como um homem que, apanhado pelo casaco nas rodas de uma engrenagem, ficasse logo preso pela própria máquina.
pela simples razão de que esse atentado «não era um crime».
Dava-se nele um fenómeno inteiramente novo, sem precedentes. No seu foro íntimo compreendia ou — o que era muito pior — sentia que estava para sempre afastado do convívio dos homens, que lhe era proibida qualquer expansão sentimental, como a de há pouco, que lhe era impossível sustentar qualquer conversa, não só com a gente da polícia, mas até com os seus próprios parentes. Nunca, até esse momento, experimentara sensação tão cruel.
A ciência, pelo seu lado, manda-me atender apenas à minha pessoa, uma vez que tudo neste mundo se baseia no interesse pessoal. Aquele que segue esta doutrina cuida como deve dos seus interesses e fica com a capa inteira. Acrescenta a economia política que uma sociedade será tanto mais sólida e venturosa quanto maior for o número de fortunas particulares ou de capas inteiras dentro dessa sociedade.
Envergonhamo-nos da nossa misantropia e procuramos de novo o nosso semelhante!
Que criatura tão singular o senhor é!... Vive tão retirado que até aquilo que mais lhe diz respeito não chega ao seu conhecimento! É extraordinário!
Em resumo, se a memória me não falha, o senhor dava a entender que existem na terra homens que podem, ou melhor dizendo, que têm o direito absoluto de cometer toda a casta de ações criminosas, homens para quem, de certo modo, não existe a lei.
No artigo de que se trata, os homens são divididos em ordinários e extraordinários. Os primeiros devem viver na obediência e não têm o direito de desrespeitar a lei, por isso são ordinários; os segundos têm o direito de cometer todos os crimes e de violar todas as leis, pela razão simplíssima de que são criaturas extraordinárias.
Simplesmente não disse, como o senhor insinuou, que os homens extraordinários podem cometer toda a série de crimes. De resto, é evidente que a censura não permitiria a publicação de um artigo sustentando tal doutrina. Eis o que afirmei: o homem extraordinário tem o direito, não oficialmente, mas por sua própria vontade, de autorizar a consciência a saltar por cima de certos obstáculos, no caso especial em que assim o exija a realização da sua ideia, a qual pode muitas vezes ser útil ao género humano.
O primeiro grupo é sempre o senhor do presente e o segundo é o senhor do futuro. Um conserva o mundo e multiplica-lhe os habitantes; o outro move o mundo e dirige-o ao seu fim. Estes e aqueles têm em absoluto o mesmo direito à existência e (Viva a guerra eterna!) até à nova Jerusalém, bem entendido.
Na verdade, estás de facto a falar sério? Tens com efeito razão quando dizes que isso não é novidade nenhuma e que se parece muito com o que temos lido e ouvido mil vezes. Entretanto, o que há de facto nisso tudo de original, e que só a ti pertence, digo-o contristado, é o direito moral de derramar sangue que tu concedes e defendes, perdoa-me dizê-lo, com tanto fanatismo... Eis, por consequência, o pensamento principal do teu artigo. Essa autorização moral de matar é, na minha opinião, muito mais espantosa do que seria a autorização legal.
Aquele que tem consciência sofre, reconhecendo o erro. É o castigo, independente do das galés.
A partir daquela noite Razoumikhine foi considerado pelas duas como um filho e um irmão.
Ele não foge, não só porque não sabe para onde há de ir, mas ainda, e sobretudo, porque psicologicamente me pertence. Que tal acha esta expressão? Por uma lei natural não fugirá, mesmo que o pudesse fazer. Já tem visto a borboleta em volta da chama? É o mesmo caso: há de andar sempre à minha volta como a borboleta em volta da chama: cada vez mais inquieto, cada vez mais cansado. Eu vou-lhe dando tempo e ele porta-se de tal maneira que a sua culpabilidade ressalta nítida, clara como dois e dois serem quatro! E girará sempre, sempre em volta de mim, em círculos cada vez mais apertados, até que
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No caso particular de que tratamos, o criminoso, admito-o, mentirá com superioridade: todavia, quando julgar que toda a gente foi enganada pela sua habilidade, crac!, desmaia no próprio sítio onde semelhante acidente se torna mais comentado. Suponhamos que pode atribuir essa síncope ao estado de fraqueza, à atmosfera sufocante da sala, nem por isso deixa de levantar suspeitas! Mentiu de uma forma incomparável, mas não soube precaver-se contra a natureza. Aí é que está a armadilha. De outra vez, levado pelo seu génio trocista, diverte-se a enganar quem tiver suspeitas dele e, por brincadeira,
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O facto é que um dia apresentei a mim próprio esta questão: se Napoleão estivesse no meu lugar, se não tivesse no começo da sua carreira Toulon, o Egito, a passagem do monte Branco, e se se encontrasse ante um assassinato a cometer para assegurar o seu futuro, repugnar-lhe-ia matar uma velha e roubar-lhe três mil rublos? Uma tal ação seria desprovida de prestígio e muito... criminosa? Durante muito tempo quebrei a cabeça com esse problema e senti-me envergonhado quando, por fim, reconheci que ele não teria hesitado, que nem mesmo teria admitido a possibilidade de hesitar. Não tendo outra
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Enfim, o simples facto de propor ao meu espírito este problema: «Napoleão teria morto esta velha?», bastava para me provar que não era um Napoleão. Por fim, renunciava a procurar justificações subtis; quis matar sem casuística, matar para mim, só para mim! Não pensei em iludir a minha consciência.
Em geral, naqueles últimos tempos, em vez de procurar ter uma ideia nítida da sua situação, fazia todos os esforços por não pensar nisso. Certos factos da vida corrente, que não admitiam adiamento, impunham-se, contra vontade, à sua atenção; em compensação, parece que tinha gosto em desprezar as questões cujo esquecimento, na sua posição especial, só lhe podia ser fatal.
O culpado é um homem de teorias, uma vítima dos livros; desenvolveu uma grande audácia, mas essa audácia é a de um homem que se precipita do cume de uma montanha ou do alto de uma torre.
Então suportaria tudo, mesmo a vergonha e a desonra. Mas, por mais que pensasse, a sua consciência endurecida não encontrava no passado nenhuma falta horrorosa ou considerada como tal. Apenas se arrependia de ter sido malsucedido, o que podia acontecer a toda gente. O que o humilhava era ver-se, ele, Raskólnikov, perdido de uma forma tão estúpida, perdido sem remédio, e ter de se submeter, de se resignar se quisesse encontrar um pouco de repouso.
Mas sempre estivera pronto a jogar a existência por uma ideia, por uma esperança, até por uma fantasia. Fizera sempre pouco caso da vida pura e simples; quisera sempre mais
«Porque é um crime? O que significa a palavra crime? A minha consciência está tranquila. Sem dúvida cometi um ato ilegal, violei a letra da lei, derramei sangue; pois bem, enforquem-me... e acabou-se! Decerto, nesse caso, muitos dos próprios benfeitores da humanidade, daqueles que não tiveram o poder por herança, mas que se apoderaram dele à viva força, deveriam ter sido supliciados. Esses foram até ao fim e é isso o que os justifica; ao passo que eu não soube prosseguir. Por conseguinte, não tinha o direito de começar.» Só reconhecia que fizera mal numa coisa: em ter fraquejado, em ter ido
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Aqui começa porém uma segunda história, a da lenta renovação de um homem, da sua regeneração progressiva, da sua passagem gradual de um mundo para o outro. Podia ser a matéria de uma nova narração... A que quisemos oferecer ao leitor acabou aqui.
mocidade transcorreu-lhe tão desordenada como a infância. Malogrou a carreira empreendida ao entrar numa escola militar; foi enviado ao Cáucaso e obteve promoções; bateu-se em duelos, foi degradado, recuperou
as «estrelas» e levou sempre uma vida turbulenta e dispendiosa.
moço, frívolo, arrojado, impetuoso, desleixado e impaciente
De Ivan direi apenas que criou esse caráter triste e reservado que nada tem a ver com a timidez.
Por esta altura contava vinte anos, seu irmão Ivan tinha vinte e três, e vinte e sete o mais velho, Dmitri. Declaro que este Aliocha não era fanático e ainda estou convencido de que não chegava a místico. Prefiro dar a minha sincera opinião desde o princípio, dizendo que era simplesmente um precoce filantropo e que elegeu a vida monástica porque o seduziu então como uma porta que se lhe abria nas trevas da iniquidade mundana às claridades da paz e do amor.
Onde quer que fosse, este moço conquistava logo a estima de quem com ele tratava.
Isto pouco importava ao jovem; nunca o preocupou quem o mantinha. Oferecia um verdadeiro contraste com o irmão, Ivan, que lutou com necessidades durante os primeiros anos da sua carreira, mantendo-se com o próprio esforço e a quem amargurava, já em criança, pensar que vivia da caridade.
Isso sem contar que, até certo ponto, pertencia a esses jovens da passada época que, guiados pela sua honradez nata, procuravam a verdade crendo nela e estavam prontos a colocar ao seu serviço todas as suas forças, toda a sua atividade e a sacrificar-lhe tudo, mesmo a própria vida.
Aliocha era calado por natureza, parecia recolhido em si mesmo e envergonhado, e Ivan, que ao princípio lhe falava com muita curiosidade, depressa se manifestou desinteressado de todo.
Porquê... a felicidade?... Onde está a felicidade? Quem pode afirmar de si mesmo que é feliz?
Pelo exercício de um amor prático. Esforce-se por amar ao próximo ativamente, sem cessar. À medida que o seu amor aumentar, ir-se-á convencendo da existência de Deus e da imortalidade da alma, e quando alcançar a abnegação, o sacrifício de si mesma no amor dos outros, resplandecerá a sua fé sem qualquer sombra de dúvida. É uma verdade baseada na experiência.
Ainda não há cinco dias, numa reunião em que abundavam as senhoras, declarava ele, provando-o com argumentos, que nada no mundo pode fazer com que um homem ame o seu próximo, que não há lei natural que nos obrigue a amar a humanidade e que, se há algum amor no mundo, não se deve a uma lei natural, mas meramente à fé que o homem tem na imortalidade.
Em absoluto. O meu lema é este: «Não há virtude sem imortalidade.»
Não, a questão não está resolvida dentro de si e essa é a sua dor, uma dor que clama a verdade.
Por mim, acho que o velho tem um bom olfato e fareja o crime. A tua casa cheira a sangue.
Nada me ocorreria se num dado momento não tivesse compreendido teu irmão Dmitri, vendo-lhe o mais recôndito da alma. Todos os homens se me revelam por um rasgo que lhes deixa o coração a descoberto. O teu irmão é desses homens honrados e veementes que têm um limite para além do qual transbordam, sem que os impeça um dique ou a censura de um pai. E o teu é um velho bêbado e depravado que não respeita limites; se são deixados sós, dirigem-se fatalmente para o abismo.
Ivan escreve artigos sobre teologia por diversão, por loucura. Nem ele mesmo sabe porquê, pois é um ateu que não acredita no que diz. Tenta roubar a noiva a Dmitri e penso que o conseguirás, até com o próprio consentimento deste, que a cederá para ficar livre com Gruchenka.
Conhecem toda a vileza dos seus atos e não podem evitá-los.
«Quando estou em sociedade parece-me que sou o mais vil de todos e que terão de me tomar por palhaço. Por isso faço palhaçadas, porque todos e cada um são mais vis e patetas do que eu.»
ignomínia.
transigência,
ignomínia

