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O senhor imagina o Juízo Final como o show dos shows, um superespetáculo caríssimo, desses que em televisão só podem ser patrocinados por firmas poderosas como a Standard Oil, a Ford, a General Motors... Seu Deus, em suma, é um empresário preocupado com o Ibope, não?
A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.
Hipócritas! — exclama. — Impostores! Simuladores! Eis o que sois... Vista deste coreto, do meu ângulo de defunto, a vida mais que nunca me parece um baile de máscaras. Ninguém usa (nem mesmo conhece direito) a sua face natural. Tendes um disfarce para cada ocasião. Cada um de vós selecionou sua fantasia para a Grande Festa. O professor Libindo travestiu-se de sábio. O doutor Lázaro representa o papel de médico humanitário, espécie de santo municipal, a personificação da bondade desinteressada. O doutor Quintiliano é a própria imagem da justiça, os olhos vendados (os dois ou um só?), numa das
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O doutor Falkenburg usa psicologicamente com uma empáfia prussiana o boné imaginário de estudante de Heidelberg e sua cara ostenta a cicatriz fictícia dum duelo universitário... e no entanto, que ele nunca visitou a Alemanha todos nós sabemos. Formou-se numa obscura faculdade do interior do estado. E quem mais vejo na festa? Ah! O delegado Inocêncio Pigarço... Esse sádico esconde o seu uniforme negro de oficial da ss de Hitler debaixo do camisolão do anjo da guarda que zela pela ordem no “salão de baile”. E que baile! Também tomei parte nele e usei mil máscaras, mil disfarces. Aprendi a
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Avisto daqui o presidente do Rotary. Com que roupa está vestido? Ah! Exibe um modelo Dale Carnegie. E o do Lions? Esse segue o figurino de Napoleon Hill. O digno presidente da Associação Comercial, se não me engano, procura vestir-se de acordo com os grandes empresários americanos. E lá está o nosso inefável Lucas Lesma, que usa uma imitação barata da máscara de Hearst.
Lá estão as Balmacedas, do sindicato das cartas anônimas... Vejo também damas nesta praça, algumas de nossas Dez Mais de anos passados, imitadoras da princesa Grace Kelly, sim, e Terezinha de Jesus... e Madame Pompadour... e Coco Chanel... e Jacqueline Kennedy... e Elizabeth Taylor... Quanto às máscaras retocadas por cirurgiões plásticos que vejo na multidão... bom, nessas nem vou falar.
Será que a verdade fede e é só da mentira que se evolam os doces perfumes da vida?
Não sabe porque vive uma mentira crônica. Falsa é a sua moral. Falsa a sua cultura. Falsa a sua proclamada amizade e correspondência com celebridades mundiais como Sartre, Mauriac, o papa... sei lá mais quem! Seu latim é de ginasiano. Seu grego, mitológico. Sua cultura, um produto de leituras das Seleções do Reader’s Digest.
Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte na festa e se amontoa lá fora no sereno, envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, essa deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos entregais às vossas danças, libações, amores e outros divertimentos.
a morte me confere todas as imunidades.
Escapadas fesceninas de pessoas tidas como puritanas na sociedade local são narradas com abundância de pormenores pelo sapateiro.
O sapateiro continua a dizer os nomes de cidadãos aparentemente respeitáveis da comunidade que se entregam a atividades pouco decentes ou cujo passado está longe de ser limpo.
Aquilo sobre que ninguém fala ou escreve não existe. Se um espelho reflete um ato e um fato que consideramos escandaloso, quebramos o espelho e voltamos as costas para o ato e o fato, dando a questão como resolvida.
Os urubus agora voam ainda mais baixo, em círculo, sobre o coreto, como se quisessem também escutar a narrativa do advogado dos defuntos.
Mas depois de todas as barbaridades ditas hoje na praça, a vida de Antares não pode continuar a mesma. — Qual, compadre, não se iluda! O tempo tem muita força. Deixe passar uns dias, umas semanas e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes.
“andava solto pela cidade como uma hiena faminta, correndo e rindo, assombrando ruas, becos, praças, casas, almas”. A peste!
Aos que encontrava na calçada explicava que eram os judeus — com sua cabala, as suas artes mágicas e seu amor ao dinheiro e ao poder — os responsáveis pela volta dos sete mortos, pela invasão dos ratos e por todos os males que afligiam Antares e o mundo.
Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social. Por outro lado, não ignoramos que na Rússia Soviética não existe nenhuma liberdade de crítica ou de expressão e que um escritor pode ser condenado a três ou cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria por ter escrito poemas, artigos ou romances que contrariam ou simplesmente não seguem a linha política do partido único.
Como guardião da sociedade, deve achar que os fins justificam os meios. Todos os meios, portanto, são bons se o fim é defender o “poder constituído”.
Padre, espero não estar pecando quando sinto a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é Amor.
Ora não te faças de inocente. Se não sabias é porque não querias saber. Nunca perguntaste nada. Só pedias as coisas que querias...
Que é o povo? Um monstro com muitas cabeças, mas sem miolos. E esse “bicho” tem memória curta.
põe máscara de esposa mártir que finge não saber das safadezas do marido. É um dos disfarces mais populares neste país.
Cheguei à conclusão de que Deus tem um livro com duas colunas, débito e crédito. Os pecados das pessoas lhes são debitados e as boas ações creditadas. Quando o saldo credor é favorável à pessoa, isso pode ser a santidade. Eu dizia a mim mesmo que tinha pela frente toda uma vida para fazer lançamentos de crédito na minha conta corrente com Deus.
Veja bem. O incidente da praça não alterou o âmago do seu problema. O seu passado não mudou. O senhor é o mesmo homem. A diferença é que agora os outros sabem de suas faltas. Sua auréola de santo desapareceu. Sua imagem foi desmascarada em público.
Vou te provar mais uma vez que, além de conformista, és um escapista. Olhas o mundo através da tua janelinha estreita, à qual dás nomes pomposos: Tradição, Justiça, Direito, Ordem, et cetera. Quando vês algo que te repugna ou assusta, fechas depressa a janela e te refugias no fundo da tua famosa cidadela interior, guardada por uma milícia secular, e lá ficas quieto e encolhido como um feto no ventre materno... E o mundo que se dane! Para ti a Justiça já deixou de ser um meio para ser um fim em si mesma.
Mas não é assim que te chamam no tribunal, nos jornais, nos requerimentos? O meritíssimo juiz... o colendo magistrado. Esses adjetivos te gratificam, eu sei, te produzem uma sensação quase de onipotência...
Tu, que dizes amar a Justiça com jota maiúsculo, tu que pretendes ser o defensor da Ordem e da Lei, tu cultivas a amizade de crápulas como o prefeito Brazão e esse repulsivo coronel Vacariano.
Peculatários, falsários, ladrões vulgares.
Tomo todos os dias a pílula amarga desse tipo de vida, que me metes na boca e que me obrigas a engolir sorrindo.
com a mesma inocência com que acreditamos desde a infância nas mentiras que nossos pais e nossos professores nos contaram sobre a vida.
Teu objetivo mais alto na vida é chegar a desembargador, como o Velho. E eu tenho de polir essa imagem todos os dias, evitando que ela seja manchada ou arranhada.
a vida está passando. O tempo perdido é irreversível.
As palavras, como o tempo, são também irreversíveis.
Ninguém no mundo é de todo inocente. Um polícia deve partir sempre do princípio que, dum modo ou de outro, todos são culpados, até prova provada em contrário.
o mundo se divide em vencedores e vencidos. Os vencedores é que decidem quem é ou não é culpado.
dr. Lázaro Bertioga,