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Essa história da gênese da obra demonstra que Erico começou o trabalho a partir de uma Gestalt, de uma forma que se lhe impôs unitária e completa imediatamente, um “estalo”, como diria o pós-estruturalista Roland Barthes. Primeiro elabora um plano mental do enredo, depois traça um diagrama, a fim de localizar no espaço o evento-símbolo do livro, e, enfim, as possíveis personagens são avaliadas, em conformidade com as exigências do esquema das ações.
Recurso destinado a mostrar a interioridade das personagens por meio do discurso direto, Erico o adota para evitar a monotonia de um narrador onisciente que invada intempestivamente o íntimo de suas criaturas, e assim resguarda-lhes os segredos para ajuizamento direto do leitor.
Recurso do uso de diários na construção das narrativas dos romances para evidenciar um discurso direto das personagens sem haver uma invasão do narrador em seus pensamentos.
Não só no interior do romance, entretanto, Erico dá vez ao outro. No dossiê genético de Incidente em Antares, há diversas notas de pesquisa que atestam a busca de outros olhares e outras compreensões para conferir substância ao texto. Ainda relacionadas à criação de A hora do sétimo anjo, há menções e resumos, em seus cadernos de notas, sobre as doutrinas existencialistas de Sartre e Camus e sobre o humanismo em Marx. Essa pesquisa de ideias destinava-se a fundamentar as posições do primeiro Martim Santana e são os pilares da conduta crítica de Martim Francisco Terra. Num desses cadernos de
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Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios, com períodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem política, econômica ou puramente pessoal.
Naquelas primeiras semanas após a volta dos proscritos (termo usado por um jornalista republicano local) não só a população de Antares como a própria cidade — casas, muros, calçadas, plantas, pedras — pareciam viver em estado de extrema tensão, na expectativa do primeiro encontro físico entre um Campolargo e um Vacariano.
Xisto e Benjamim defrontaram-se uma tarde à frente do Grêmio Republicano. O primeiro pigarreou forte. O outro fuzilou o inimigo com um olhar de seu único olho válido. Nada disseram nem fizeram. Cada qual seguiu seu caminho e Antares e os antarenses respiraram desoprimidos.
A pessoa escolhida pelo intendente para falar em nome da municipalidade — um professor — saudou o século xx como a era da Luz e do Progresso, a qual, “mercê das novas invenções e descobertas do saber humano, haverá de proporcionar aos povos de todas as nações do Universo uma vida de conforto, fartura e harmonia, como nunca na História da Humanidade”.
e por fim essa massamorda humana composta de párias — brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos —, gente sem profissão certa, changadores, índios vagos, mendigos, “gentinha” molambenta e descalça, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano, e cuja situação era em geral aceita pelos privilegiados como parte duma ordem natural, dum ato divino irrevogável.
Quando, no inverno de 1912, o intendente mandou instalar luz elétrica nas ruas da cidade, o velho Eusébio Reis, que durante mais de vinte e cinco anos exercera sozinho as funções de acendedor de lampiões, caiu numa tão grande depressão nervosa, que numa madrugada de julho enforcou-se num dos postes da iluminação moderna, e seu corpo amanheceu hirto, coberto de geada, balançando-se dum lado para outro, sacudido pelo vento gelado que soprava das bandas dos Andes.
Desde 1915 o futebol — “o salutar esporte bretão”, segundo um redator de A Verdade — tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Missioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. Não se tem notícia duma partida entre esses dois adversários que não haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores, isso para não falar nas trocas de caneladas e pechadas entre os jogadores, em disputa da bola. Conta-se a seguinte história, que parece ter sido já incorporada ao folclore futebolístico gaúcho. O Fronteira e o Missioneiro defrontavam-se numa partida decisiva
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— Não sabia que tinhas aderido ao fascismo — sorriu Zózimo. — Qual fascismo qual nada! Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritários. Sempre simpatizei, tu sabes. — Mesmo no tempo do doutor Borges de Medeiros? — Ó homem, estamos na era do avião e do rádio e tu me vens com o borgismo! Naquela época eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E, se me meti na revolução de 23, foi só para seguir o meu velho pai. Mas não desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do país os judeus, que, como se sabe, são
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“O Rio Grande do Sul é o estado mais reacionário do Brasil, e Ribeira a cidade mais reacionária do Rio Grande do Sul”. Tornamos a perguntar: “Refere-se só ao reacionarismo político?”. E o rapaz: “Não. Reacionarismo em tudo. Veneramos morbidamente um passado e uma tradição já mortos, se é que de fato um dia existiram mesmo, e somos incapazes de sair dos trilhos da rotina e erguer a cara para o sol do futuro”. Um outro declara: “Ainda se cultua entre nós o machismo como se mantivéssemos no Brasil o monopólio da coragem e da virilidade”.
Sinto já cócegas nos dedos para escrever e usar na Anatomia um capítulo intitulado “A vaca e a máquina”, mostrando os possíveis atritos entre a pecuária e a indústria. Imagino uma vaca passeando pelas dependências do Frigorífico Pan-Americano e observando como se transformam os animais de sua espécie em corned beef, caldos concentrados, etc. Talvez um diálogo entre essa vaca falante e pensante e o gerente do frigorífico (um americano de quase dois metros de altura, que conheci esta manhã). Ou da vaca com as máquinas. Exponho a ideia a um de meus colegas, que responde: “Isso não é sociologia,
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se trata dum mitômano cujas mentiras tendem sempre a um autoengrandecimento social e principalmente cultural. Gosta que os outros acreditem que é íntimo de celebridades mundiais. Afirma ter correspondência com Jean-Paul Sartre, de quem — faz questão de afirmar — diverge política e filosoficamente, “o que não prejudica em nada a nossa amizade e mútua admiração”. Trocou cartas com João xxiii. François Mauriac é seu amigo do peito e começa sempre as suas cartas com um mon très cher ami Libindo
— Não me agradeça. Já que estamos mortos e não somos mais personagens da comédia humana, posso ser absolutamente franco e confessar-lhe que a homenagem que lhe prestei teve uma finalidade utilitária. Eu queria agradar a sua família, pois estava de olho no inventário de seus bens. — Bom, já que estamos no jogo da verdade... nunca simpatizei com o senhor.
— Engraçado não teres medo de mim... Vim pela rua assustando meio mundo. Vi uma mulher desmaiar de susto na minha frente. Um pintor de parede me enxergou, soltou um grito e caiu da escada (Deus queira que não tenha se machucado muito). Até os gatos e os cachorros fogem de mim. E tu, nem água... — Havia de ter graça eu ter medo de ti.

