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— Por favor, não se aproxime. Sou um cadáver. É terrível a gente saber, sentir que está se desintegrando, apodrecendo aos poucos. É pavoroso ter consciência disso. Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito nesta vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo.
— Perdoa, querida. Eu não devia ter feito o que fiz. Foi egoísmo meu. Um morto devia conhecer o seu lugar. Mas é que a morte não matou o meu amor por vocês. Nem por todos os seres vivos do mundo. Nem pelo mundo... e pela vida. Mas agora escuta. Escuta com a maior atenção. Teu futuro e o do nosso filho depende do que vou te dizer... Ritinha, estás me ouvindo?
Na sua breve oração daquela manhã, Acácia pediu ao dr. Getulio que protegesse a população de Antares, pois era uma sexta--feira 13 e na véspera uns hereges desalmados tinham impedido que sete defuntos fossem sepultados. Depois de fazer o sinal da cruz, ergueu-se, gemendo, e de repente lhe ocorreu pedir mais alguma coisa ao seu “santo”: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, presidente. Mande essa gente me pagarem mais. Amém!”.
Uma noite, terminado o serão, já madrugada alta — com um copo de cachaça na mão e o espírito da cana a estimular-lhe a fantasia, o Mendes acendeu as lâmpadas do lustre do gabinete do prefeito e, com os ouvidos da memória, pôs-se a escutar o que aquelas figuras diziam.
— Está bem. Pode retirar-se. — O secretário dá já os primeiros passos na direção da porta quando o seu chefe exclama. — Não! Fique, Mendes, senão seremos treze neste gabinete. Não que eu seja supersticioso... Mas é bom a gente estar prevenido. Hoje é sexta-feira 13. Depois de tudo que nos tem acontecido... nunca se sabe.
— Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado... Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedentes criminosos, com uma ficha negríssima no dops de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano... Inocêncio põe-se de pé, a cara contraída. Mas o jovem padre prossegue: — Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e
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Pela mesma razão não pretendo hostilizar-vos, pois isso seria uma injustiça. Sois antarenses como nós. A morte não vos roubou a cidadania! — Como que momentaneamente insensível ao mau cheiro, às moscas, e já com o dedo da eloquência enristado verticalmente, e dirigindo-se particularmente aos moços nas árvores, o corpo roliço meio erguido na ponta dos pés, Vivaldino Brazão perora, sentindo recuperar o seu velho eu dos comícios e campanhas eleitorais: — Assim sendo, faço um apelo principalmente à distinta dama Quitéria Campolargo, ao meu amigo e colaborador doutor Cícero Branco para que voltem
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— A julgar pelas palavras do prefeito municipal e do promotor público, nossa presença é indesejável na cidade, incômoda aos seus habitantes. Em suma, nosso desaparecimento foi plenamente aceito por todos, o que vem confirmar a minha teoria de que se por um lado o homem jamais se habitua à ideia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. Vossa repulsa e vossa má vontade para com nossos corpos nos outorga a liberdade de dizer o que realmente pensamos de vós.
— Nosso anarcossindicalista acaba de me soprar um “fecho de ouro” para a minha metáfora do baile de máscaras... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte na festa e se amontoa lá fora no sereno, envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, essa deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe
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Agora, acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender as suas propriedades, aumentando-as à custa da propriedade alheia. Daí o seu sagrado horror a qualquer mudança do presente status quo político, econômico e social que tanto lhe convém.
Quem é o maior banqueiro do jogo do bicho no município? Quantas daquelas famílias que têm palacetes ao redor da praça ou ao longo da rua do Comércio enriqueceram com o contrabando? Que figura, hoje respeitável na comunidade, cometeu um crime de homicídio em Alagoas e refugiou-se em Antares, trocando de nome?
— Decaída? Por que não diz logo puta? — Leva a mão em concha ao ouvido. — Creio que ouvi murmúrios do respeitável público, chocado pelo nome “horrível” que acabo de pronunciar. Quatro letrinhas. P-u-t-a. O meu colega doutor Mirabeau gaba-se de conhecer os quarenta sinônimos que o imortal Rui Barbosa descobriu para prostituta, mas parece não se impressionar com a prostituição propriamente dita. Claro! Vossa moral é puramente verbal. O delegado Pigarço estará sempre pronto a prender como subversivo todo aquele que escrever com realismo sobre as misérias da nossa Babilônia e outros antros de
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— Os habitantes mais antigos desta cidade — diz Barcelona — devem lembrar-se do tempo em que Erotildes da Conceição era moça e bonita. Segundo a crônica policial do molusco Lucas Lesma, hoje em dia ela é apenas a “decaída Erotildes de Tal”. — Devo lembrar — intervém Cícero Branco — que os de Tal, família composta de párias, de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do Brasil. Suas origens datam do tempo do Descobrimento. Os de Tal são brasileiros de quinhentos anos.
Na placa de bronze, embutida na coluna que sustenta o busto, lê-se em caracteres salientes: Ao humanitário comendador Leoverildo Grave, digníssimo chefe de família, cidadão benemérito, exemplo para os pósteros — a cidade agradecida. A cabeça de bronze, os olhos vazios postos em algum lugar fora do tempo, ali está impassível e invulnerável a qualquer palavra.
Vai então me levaram pro hospital que não me lembro direito do nome. — O Salvator Mundi — esclarece Cícero. — Ala dos indigentes. — E ela poderia estar viva — acrescenta Barcelona — se o nosso caridoso doutor Lázaro tivesse mandado buscar um certo antibiótico que na época não havia nas farmácias da cidade. Prometeu isso, mas esqueceu. Afinal de contas, quem é Erotildes de Tal? Que importância pode ter a vida duma “horizontal”? Se se tratasse dum cliente importante e pagante, a coisa seria diferente...
O sol completava a sua trajetória diária. Era agora um disco avermelhado — “olho manchado de sangue no horizonte argentino, a contemplar com sua morna indiferença a pobre cidade de Antares que ficara na outra margem do grande rio, esperando a noite com todos os seus pavores e avantesmas” —, como haveria de escrever mais tarde o diretor de A Verdade
— Heil Hitler! — E, imitando a voz do Führer, rompeu num discurso furioso em alemão. Em certo trecho da oração apontou para a fogueira e disse: — Hoje queimamos ratos! Amanhã queimaremos livros e jornais de judeus e comunistas! Depois d’amanhã queimaremos os autores dos livros, e assim por diante, até ao Natal! Sieg heil!

