Incidente em Antares
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— Não. Mas estou confuso... não compreendo. — Não procure compreender. Esqueça a lógica.
Thaynan
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— Por favor, não se aproxime. Sou um cadáver. É terrível a gente saber, sentir que está se desintegrando, apodrecendo aos poucos. É pavoroso ter consciência disso. Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito nesta vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo.
Thaynan
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— Perdoa, querida. Eu não devia ter feito o que fiz. Foi egoísmo meu. Um morto devia conhecer o seu lugar. Mas é que a morte não matou o meu amor por vocês. Nem por todos os seres vivos do mundo. Nem pelo mundo... e pela vida. Mas agora escuta. Escuta com a maior atenção. Teu futuro e o do nosso filho depende do que vou te dizer... Ritinha, estás me ouvindo?
Thaynan
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— Escuta, minha querida. Às vezes neste mundo é preciso mais coragem para continuar vivendo do que para morrer.
Thaynan
O absurdo de Camus.
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Quem foi que escreveu que o pior pecado é o pecado contra a esperança?
Thaynan
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Na sua breve oração daquela manhã, Acácia pediu ao dr. Getulio que protegesse a população de Antares, pois era uma sexta--feira 13 e na véspera uns hereges desalmados tinham impedido que sete defuntos fossem sepultados. Depois de fazer o sinal da cruz, ergueu-se, gemendo, e de repente lhe ocorreu pedir mais alguma coisa ao seu “santo”: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, presidente. Mande essa gente me pagarem mais. Amém!”.
Thaynan
Dona Acácia um ícone.
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Uma noite, terminado o serão, já madrugada alta — com um copo de cachaça na mão e o espírito da cana a estimular-lhe a fantasia, o Mendes acendeu as lâmpadas do lustre do gabinete do prefeito e, com os ouvidos da memória, pôs-se a escutar o que aquelas figuras diziam.
Thaynan
Fantasia no gabinete do prefeito.
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Foi o dr. Júlio de Castilhos quem disse a última palavra da noite: — A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.
Thaynan
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— Está bem. Pode retirar-se. — O secretário dá já os primeiros passos na direção da porta quando o seu chefe exclama. — Não! Fique, Mendes, senão seremos treze neste gabinete. Não que eu seja supersticioso... Mas é bom a gente estar prevenido. Hoje é sexta-feira 13. Depois de tudo que nos tem acontecido... nunca se sabe.
Thaynan
Sexta-feira 13.
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— Professor Libindo — interrompe-o o juiz —, esta não é a hora oportuna para exibições de erudição. Estamos numa situação premente, difícil e, segundo entendo, temos de tomar providências urgentes diante desse... fenômeno.
Thaynan
Esse fenômeno.
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, o senhor sugere que a volta desses mortos tem uma explicação mágica, não?
Thaynan
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Ele não riu, mas senti que ele estava achando a coisa toda absurda.
Thaynan
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— Estamos no mapa do mundo! Estamos na História! — Mas a que preço! — lamenta o promotor público.
Thaynan
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— Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado... Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedentes criminosos, com uma ficha negríssima no dops de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano... Inocêncio põe-se de pé, a cara contraída. Mas o jovem padre prossegue: — Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e ...more
Thaynan
Vai falando, Padre Pedro-Paulo.
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Roendo as unhas, aflito, Mendes olha primeiro para os ponteiros do relógio — três minutos para o meio-dia — e depois para os bustos de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.
Thaynan
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Antares está finalmente no mapa! Antares está na História! E A Verdade vai noticiar tudo isso em primeira mão!
Thaynan
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Parecia o enorme coração de Antares a dobrar finados pelos seus vivos e pelos seus mortos.
Thaynan
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Entrega ao prefeito uma fotografia ainda úmida, do tamanho dum cartão-postal. Nela o coreto aparece completamente vazio. — Incrível! Meus olhos viram os sete mortos, mas o olho da minha câmara não viu ninguém!
Thaynan
Fotografia dos defuntos.
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Pela mesma razão não pretendo hostilizar-vos, pois isso seria uma injustiça. Sois antarenses como nós. A morte não vos roubou a cidadania! — Como que momentaneamente insensível ao mau cheiro, às moscas, e já com o dedo da eloquência enristado verticalmente, e dirigindo-se particularmente aos moços nas árvores, o corpo roliço meio erguido na ponta dos pés, Vivaldino Brazão perora, sentindo recuperar o seu velho eu dos comícios e campanhas eleitorais: — Assim sendo, faço um apelo principalmente à distinta dama Quitéria Campolargo, ao meu amigo e colaborador doutor Cícero Branco para que voltem ...more
Thaynan
Proposta do prefeito para os mortos e reação de alguns vivos que estavam ppróximos do coreto.
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Dois caminhões — o da Coca-Cola e o da Pepsi-Cola, ambos pintados nas cores da bandeira dos Estados Unidos, e cada qual tocando a sua musiquinha de realejo
Thaynan
DO NADA.
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— Povo de Antares! Em nome de meus constituintes e no meu próprio, recuso, por absurdo, o pedido do major Vivaldino. Exigimos o nosso sepultamento imediato. Se não formos atendidos, continuaremos apodrecendo aqui no coração da cidade!
Thaynan
Coração da cidade.
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Insistindo em ficar no centro da nossa urbe, vós vos revelais maus antarenses.
Thaynan
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O vosso dever para com esta comunidade é aceitar resignadamente a vossa morte, isto é, na imobilidade e no silêncio e não... não vos valerdes (minha mãe! terei conjugado direito o verbo?) da vossa condição de defuntos para impor-nos a vossa presença perturbadora e letal.
Thaynan
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— A julgar pelas palavras do prefeito municipal e do promotor público, nossa presença é indesejável na cidade, incômoda aos seus habitantes. Em suma, nosso desaparecimento foi plenamente aceito por todos, o que vem confirmar a minha teoria de que se por um lado o homem jamais se habitua à ideia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. Vossa repulsa e vossa má vontade para com nossos corpos nos outorga a liberdade de dizer o que realmente pensamos de vós.
Thaynan
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só agora que estou morto e decomposto é que ouso dizer-vos estas coisas. Será que a verdade fede e é só da mentira que se evolam os doces perfumes da vida? Será que o famoso poço da lenda, em cujo fundo se esconde a verdade, é feito de lodo e podridão?
Thaynan
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Seu latim é de ginasiano. Seu grego, mitológico. Sua cultura, um produto de leituras das Seleções do Reader’s Digest
Thaynan
JURO.
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— Nosso anarcossindicalista acaba de me soprar um “fecho de ouro” para a minha metáfora do baile de máscaras... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte na festa e se amontoa lá fora no sereno, envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, essa deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe ...more
Thaynan
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— Mentira! Mentira! Você não tem autoridade para falar porque está morto e podre!
Thaynan
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Agora, acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender as suas propriedades, aumentando-as à custa da propriedade alheia. Daí o seu sagrado horror a qualquer mudança do presente status quo político, econômico e social que tanto lhe convém.
Thaynan
VAIAS CEARENCES INTENSIFIES.
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O advogado dos mortos volta-se para d. Quitéria e pergunta: — A senhora quer falar? Nesta nossa pequena tanatocracia existe a mais absoluta liberdade de pensamento e palavra, coisa hoje em dia rara na chamada América Latina.
Thaynan
SÉRIO.
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Assim, para as pessoas de idade como nós, morrer não é apenas uma fatalidade biológica como também uma espécie de obrigação social
Thaynan
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Barcelona, porém, continua: — Não sou nenhum moralista. Não penso como os “pilares” da sociedade burguesa que localizam a moral entre as pernas das pessoas. Para mim existe outra moral mais alta, que é a social, a responsabilidade do homem para com o homem.
Thaynan
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Who is who na vida erótica de Antares
Thaynan
GAITEI.
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Quem é o maior banqueiro do jogo do bicho no município? Quantas daquelas famílias que têm palacetes ao redor da praça ou ao longo da rua do Comércio enriqueceram com o contrabando? Que figura, hoje respeitável na comunidade, cometeu um crime de homicídio em Alagoas e refugiou-se em Antares, trocando de nome?
Thaynan
É o Brasil do Brasil!
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— Decaída? Por que não diz logo puta? — Leva a mão em concha ao ouvido. — Creio que ouvi murmúrios do respeitável público, chocado pelo nome “horrível” que acabo de pronunciar. Quatro letrinhas. P-u-t-a. O meu colega doutor Mirabeau gaba-se de conhecer os quarenta sinônimos que o imortal Rui Barbosa descobriu para prostituta, mas parece não se impressionar com a prostituição propriamente dita. Claro! Vossa moral é puramente verbal. O delegado Pigarço estará sempre pronto a prender como subversivo todo aquele que escrever com realismo sobre as misérias da nossa Babilônia e outros antros de ...more
Thaynan
BOOEEEEE
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— Os habitantes mais antigos desta cidade — diz Barcelona — devem lembrar-se do tempo em que Erotildes da Conceição era moça e bonita. Segundo a crônica policial do molusco Lucas Lesma, hoje em dia ela é apenas a “decaída Erotildes de Tal”. — Devo lembrar — intervém Cícero Branco — que os de Tal, família composta de párias, de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do Brasil. Suas origens datam do tempo do Descobrimento. Os de Tal são brasileiros de quinhentos anos.
Thaynan
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— Foi aquele ali... o homem da estauta — diz.
Thaynan
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Na placa de bronze, embutida na coluna que sustenta o busto, lê-se em caracteres salientes: Ao humanitário comendador Leoverildo Grave, digníssimo chefe de família, cidadão benemérito, exemplo para os pósteros — a cidade agradecida. A cabeça de bronze, os olhos vazios postos em algum lugar fora do tempo, ali está impassível e invulnerável a qualquer palavra.
Thaynan
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— Não tenho de prestar contas a ninguém da minha vida particular! Não admito que botem cadeado com chave na minha... no meu... nessa coisa que hoje em dia chamam de sexo mas que no meu tempo tinha outro nome. Sou dono de todas as minhas partes!
Thaynan
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Vai então me levaram pro hospital que não me lembro direito do nome. — O Salvator Mundi — esclarece Cícero. — Ala dos indigentes. — E ela poderia estar viva — acrescenta Barcelona — se o nosso caridoso doutor Lázaro tivesse mandado buscar um certo antibiótico que na época não havia nas farmácias da cidade. Prometeu isso, mas esqueceu. Afinal de contas, quem é Erotildes de Tal? Que importância pode ter a vida duma “horizontal”? Se se tratasse dum cliente importante e pagante, a coisa seria diferente...
Thaynan
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os “efeitos morais daquele fato insólito no ânimo da população”,
Thaynan
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— Pô! Mas que escândalo, hem? Roupa suja lavada em plena praça pública.
Thaynan
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— Mas depois de todas as barbaridades ditas hoje na praça, a vida de Antares não pode continuar a mesma. — Qual, compadre, não se iluda! O tempo tem muita força. Deixe passar uns dias, umas semanas e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes.
Thaynan
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— E que me dizes do ordinário do Cícero, virando moralista depois de morto?
Thaynan
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Tarde demais! A notícia de que havia um surto de bubônica em Antares já se espalhara pela cidade. A peste!
Thaynan
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E o boato da peste — como haveria de escrever mais tarde Lucas Faia — “andava solto pela cidade como uma hiena faminta, correndo e rindo, assombrando ruas, becos, praças, casas, almas”. A peste! A peste! E ninguém conseguia conter o chacal.
Thaynan
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O sol completava a sua trajetória diária. Era agora um disco avermelhado — “olho manchado de sangue no horizonte argentino, a contemplar com sua morna indiferença a pobre cidade de Antares que ficara na outra margem do grande rio, esperando a noite com todos os seus pavores e avantesmas” —, como haveria de escrever mais tarde o diretor de A Verdade
Thaynan
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— Heil Hitler! — E, imitando a voz do Führer, rompeu num discurso furioso em alemão. Em certo trecho da oração apontou para a fogueira e disse: — Hoje queimamos ratos! Amanhã queimaremos livros e jornais de judeus e comunistas! Depois d’amanhã queimaremos os autores dos livros, e assim por diante, até ao Natal! Sieg heil!
Thaynan
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— Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social.
Thaynan
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A tortura deixou de ser um crime para ser uma técnica que se aprende e se aplica impessoalmente
Thaynan
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