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— Só Deus sabe, meu filho! — Padre, enquanto Deus não nos disser claramente o que Ele pensa de tudo isso, nós devíamos em nome de Cristo, que era e é deste mundo, combater tipos como Inocêncio Pigarço, que matam em nome da Justiça, do Capitalismo, do Comunismo, do Fascismo, da Família, da Pátria e (não ria!) até mesmo de Deus.
— Meu filho — murmura ele —, como é difícil viver! Cada vez mais. Às vezes cometo o pecado de ficar alegre por estarem contados os meus dias na terra. — Padre, espero não estar pecando quando sinto a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é Amor
— E agora que é que vai acontecer? — pergunta ela. — Milhares de pessoas ouviram a denúncia. Todos vão acreditar, porque morto não mente. — Antes de mais nada, minha filha, morto não fala. Qual é o tribunal do mundo que vai aceitar o testemunho dum defunto? — Mas o povo ficou sabendo. — Que é o povo? Um monstro com muitas cabeças, mas sem miolos. E esse “bicho” tem memória curta.
— E os jornais? — pergunta ainda. — Que jornais? O Lucas não é louco de escrever sobre o que se passou hoje ao meio-dia, na praça. — E os jornalistas de Porto Alegre que chegam amanhã? — Antes que eles botem o pé em Antares, vou mandar esses sete defuntos para o cemitério, seja como for, custe o que custar. Não vai ficar nenhuma prova de que eles de fato saíram dos seus caixões. Tudo foi uma ilusão. Tu achas que os repórteres do Correio do Povo e dos outros jornais vão acreditar no que o homem da rua contar? Mando o presidente da Associação Comercial declarar que toda essa coisa foi um truque
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— Estás louco? — Estou. Estamos todos loucos. Não é só o Egon Sturm. É Antares. Já viste uma cidade enlouquecer... casas, calçadas, ruas, pedras, árvores, passarinhos, pessoas, animais e coisas? Pois é. Antares enlouqueceu. E tu sabes quem sou eu? Lucas Faia, mais conhecido no mundo como o Cronista da Cidade Louca.
— Nos Estados Unidos — diz Jefferson Monroe iii — temos tido muitas greves de coveiros, mas nunca, que me lembre, nenhum cadáver se ergueu de seu caixão para vir perturbar os vivos. Parece menos preocupado com o que o fenômeno possa ter de sobrenatural ou pelo menos de inusitado do que com o “comportamento social”, as más maneiras de sete antarenses que não se conformaram com a sua condição de mortos. — Em nosso país — prossegue, com um pouco de chumbo na voz — temos um lema que rege a nossa vida. Live and let live. Vive e deixa que os outros vivam. O francês sorri: — Neste caso de Antares a
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Ah! Descobri! Valentina é uma “pantera açaimada”. A ideia me vem de repente. Aí está! Eu a aceito, não sei bem por quê, mas aceito. Pantera açaimada. Por que “pantera” se não noto no corpo nem nos gestos de V. nada de felino? Serão os olhos enviesados e claros, de cores mutantes? Concluo que o símbolo é menos plástico que psicológico. Dentro de Valentina dorme uma pantera açaimada pelo casamento, pelo marido convencional, pelas obrigações maternas, pelos preconceitos das pequenas cidades onde o marido tem servido à Magistratura. E agora me vêm outras lembranças e contrastes das conversas
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E a pantera açaimada fica no seu canto, encolhida mas viva, alerta, esperando a hora da libertação. Se um dia alguém lhe tirar o açaimo ou ela própria arrancá-lo num momento de revolta... que poderá acontecer? Decerto saltará faminta sobre a vida, sairá correndo livre... e o juiz morrerá de susto e vergonha.
Que todo esse horror não é apenas parte dum enorme e prolongado pesadelo ele já sabe, embora ainda não tenha aceito por completo a insólita e sórdida realidade. Nunca, nos seus quarenta e três anos de vida, viu coisa semelhante, a não ser em fantasias da ficção de horror, gênero literário que não aprecia.
— Ainda bem que nada sabem dos mortos na praça. — É o que tu pensas. Infelizmente a criada contou tudo a eles. Me fizeram perguntas sobre a morte. Mãe, por que é que a gente morre? É Deus que manda a gente morrer? Quem morre pode acordar e voltar pra cidade? O que é que esses mortos estão fazendo no coretinho da banda? — E tu? — Ora, transformei tudo numa espécie de conto de fadas. Pasteurizei a realidade. — Realidade? — repete Quintiliano baixinho, como fazendo a pergunta a si mesmo. Valentina senta-se na poltrona menor, perto do lampião, apanha um número da revista Manchete e começa a
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— É incrível que tenhas aceito essa... essa realidade da volta dos mortos com tanta naturalidade e acreditado no que disse um... um cadáver. — Aceito isso com a mesma naturalidade com que todos nós aceitamos a realidade não menos sórdida e absurda da Babilônia e das outras favelas, com a mesma inocência com que acreditamos desde a infância nas mentiras que nossos pais e nossos professores nos contaram sobre a vida. — Ah! Esses livros que andas lendo... Essas obras que esse padre esquerdista te recomenda e empresta! — Não metas o padre Pedro-Paulo no assunto. Isso é uma boa maneira de
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— Não compreendes, será possível que não compreendes que estávamos todos dentro dum pesadelo... duma situação anormal? Todo mundo desnorteado, incapaz de raciocinar... Sete mortos saem de seus caixões e, já decompostos, vêm para a praça pública dialogar com os vivos... Tudo isso é inaudito, absurdo, insensato... impossível
Aos poucos retornavam a Antares as famílias abastadas que, ao aparecimento dos “intrusos de além-túmulo”, haviam fugido para as suas estâncias ou chácaras. A praça da República continuava deserta, o coreto vazio, os passarinhos ausentes. Uma certa atmosfera de fim de mundo parecia ter contaminado as árvores, a terra, os bancos, as flores e até as pedras.
— Poderemos confiar sempre no testemunho de nossos sentidos? Devemos dar crédito ilimitado à nossa memória? — Que vamos fazer, então? — perguntou o proprietário duma casa de joias. — Eis o que proponho — respondeu o amigo de Platão, Sócrates e outros filósofos da Antiguidade. — Organizar uma campanha muito hábil, sutilíssima, no sentido de apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da memória de seus habitantes. Sugiro (aqui entre nós) um nome para esse movimento: Operação Borracha
Martim Francisco fez as malas e embarcou na tarde daquele mesmo dia, de volta para Porto Alegre, levando consigo um caderno cheio de anotações: reprodução de diálogos que tivera com várias pessoas de Antares, desenhos, lembretes... Tinha observado que, com relação ao incidente dos mortos, a velha guarda obstinava-se em negar a sua veracidade, ao passo que as gerações novas tudo faziam para confirmá-lo.

