Livro do Desassossego

by Fernando Pessoa

Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê.

podendo crer em uma soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência.

O coração, se pudesse pensar, pararia. A

Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse

dar-nos um sono mais calmo ainda.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.

Não sei onde ela me levará, porque não sei nada.

Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício.

De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada.

A glória noturna de ser grande não sendo

nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido... E

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.

mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender.

Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.

Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia — não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade.

Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo.

Dormia tudo como se o universo fosse um erro; e o vento, flutuando incerto, era uma bandeira sem forma desfraldada sobre um quartel sem ser.

... E um profundo e tediento desdém por todos quantos trabalham para a humanidade, por todos quantos se batem pela pátria e dão a sua vida para que a civilização continue... Um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto — o mundo exterior e os outros — um pesadelo inestético, como um resultado nos sonhos de uma indigestão de espírito.

Invejo a todas as pessoas o não serem eu.

Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar.

Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da vacuidade íntima...

Não há sossego — e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter...

"Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura."

Compreender é esquecer de amar.

se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido variadíssimo de Lisboa.

Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.

A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado.

Manufaturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efetivamente de continuar sendo a mesma.

E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção.

E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me". Terei

Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, no seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.

Vivemos um entreato com orquestra.

Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arredores.

Os Deuses são uma função do estilo.

Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.

Houve tempo em que me irritavam aquelas coisas que hoje me fazem sorrir.

Que me importa que o papel-moeda da minha alma nunca seja convertível em ouro, se não há ouro nunca na alquimia factícia da vida?

Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que ele lhes seja feito,

Nunca pretendi ser senão um sonhador.

Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser.

Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi se...

Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um...

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, em uma revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.