Inundação - Continuação de "Chuva"

Pois é!
Depois de escrever "Chuva" fui confrontado por quase todos os que o leram com um facto chato da livro, para a maior parte dos leitores (não para mim)!
A história está cheia de pequenas histórias que se cruzam e de personagens que aparecem e desaparecem, sem se saber sequer de onde vieram e para onde foram!
Além disso, ficaram pontas soltas na história que deram azo a séries intermináveis de perguntas que tem, invariavelmente, a resposta de "Não sei"!
Ora, esta resposta causa espanto e curiosidade a quem fez as perguntas! Mas eu, realmente, não sei. Não pensei nisso! Não era relevante para a história que contava!
Ainda assim, algum tempo depois comecei eu também a sentir-me incomodado com essa falta de respostas e comecei a escrever uma continuação para a história, chamada apropriadamente de "Inundação"!
Entretanto já escrevi e foram publicados dois livros de crónicas (os "Treta de Cabos") e um romance ("Conscientização"), ando às voltas com uma coisita chamada "Crónicas do Paraíso", dediquei a minha parvoeira a "Como ser um garanhão (edição especial para marrões)" e isto está parado há já uns bons anos!
Mas deixo-vos aqui o prologo.
(e apenas o prologo!)

Espero que gostem :)




Inundação - Prologo

"Bendito seja o SENHOR, minha rocha, que ensina as minhas mãos para a peleja e os meus dedos para a guerra; Benignidade minha e fortaleza minha; alto retiro meu e meu libertador és tu; escudo meu, em quem eu confio, e que me sujeita o meu povo.
SENHOR, que é o homem, para que o conheças, e o filho do homem, para que o estimes?
O homem é semelhante à vaidade; os seus dias são como a sombra que passa.
Abaixa, ó SENHOR, os teus céus, e desce; toca os montes, e fumegarão. Vibra os teus raios e dissipa-os; envia as tuas flechas, e desbarata-os. Estende as tuas mãos desde o alto; livra-me, e arrebata-me das muitas águas e das mãos dos filhos estranhos, cuja boca fala vaidade, e a sua mão direita é a destra de falsidade.
 A ti, ó Deus, cantarei um cântico novo; com o saltério e instrumento de dez cordas te cantarei louvores; A ti, que dás a salvação aos reis, e que livras a David, teu servo, da espada maligna.
Livra-me, e tira-me das mãos dos filhos estranhos, cuja boca fala vaidade, e a sua mão direita é a destra de iniquidade, para que nossos filhos sejam como plantas crescidas na sua mocidade; para que as nossas filhas sejam como pedras de esquina lavradas à moda de palácio; para que as nossas dispensas se encham de todo provimento; para que os nossos rebanhos produzam a milhares e a dezenas de milhares nas nossas ruas. Para que os nossos bois sejam fortes para o trabalho; para que não haja nem assaltos, nem saídas, nem gritos nas nossas ruas.
Bem-aventurado o povo ao qual assim acontece; bem-aventurado é o povo cujo Deus é o SENHOR."

Salmo 144


O poder do perdão é algo de incomensurável.
De tal forma que é a única coisa no universo que é verdadeiramente redentora.
Poucos temos a capacidade de perdoar verdadeiramente. Relevamos, deixamos para trás, seguimos em frente, mas isso não é perdoar. Perdoar é passar uma esponja e esfregá-la para que não sobrem vestígios. Aquele que perdoa não releva, mas nunca voltará a pensar no assunto de uma forma negativa e triste, mas sim como algo de bom.
Isto é extraordinariamente difícil. Mais ainda quando nos culpamos por algo.
Mas o perdão chega e transforma um momento mau num momento marcante.
Todos temos momentos marcantes, sejam eles quais forem. Mas estes momentos são os extremos: ou são bons, ou maus. E não coincidem minimamente nas diversas apreciações. Um momento vivido por dois indivíduos em comum pode ser marcante para um e completamente indiferente para o outro, o que faz com que esse momento, na mente do segundo dificilmente venha a ser registado. Mas para o primeiro foi algo que será lembrado a vida inteira.
O primeiro beijo, por exemplo, é sempre lembrado. Mas se o primeiro beijo não o for para um dos dois, aquele para quem não o é, se calhar, no futuro nem se lembrará desse momento. E um primeiro beijo pode ser bom, ou mau, mas nunca, nunca será esquecido.
A vida é feita destes momentos marcantes a pontuar o relativo tédio e monotonia que são os intervalos. Mas, são estes momentos que tem repercussão em nós e nos outros. E se essas repercussões são negativas, então surge a necessidade de perdão e se esse perdão é genuíno, verdadeiro, é tão precioso e raro que se dá a redenção da pessoa e tudo o que podia haver de negativo passa a ser positivo e a incorporar de forma definitiva o que nós somos. São momentos que definem de forma única a nossa humanidade.
Há que procurar a redenção em cada momento.
Há vinte e cinco anos que a humanidade procura a redenção…
…mas não há redentor. Logo o perdão não pode vir. E o sentimento de culpa está instalado de tal forma que toma proporções religiosas.
Há vinte e cinco anos um homem anunciou que o mundo iria mudar. E o mundo acreditou. E todos se tentaram prevenir como podiam em relação à mudança. E o mundo colapsou, mas não como o homem dissera, e todos o culparam por causar o colapso ao instigar o pânico.
O mundo culpou-o, mas não o conseguiu condenar. Afinal, que culpa tinha ele que o mundo tivesse acreditado. Pior ainda, ele não tentara convencer ninguém, não disse que era detentor da verdade, não quis ser um profeta, não gritou “ACREDITEM EM MIM”… Limitou-se a falar. E quem acreditou nele? Todos.
Não havia ninguém a quem culpar do colapso a não ser a cada um dos que acreditaram, ou seja, todos. Mas havia que encontrar um culpado, um bode expiatório, e ele estava a jeito. Mas quando ninguém o conseguiu culpar, a culpa caiu de repente em todos nós, o que tornou o momento marcante a nível global. E esta era uma culpa difícil, pois implicava que cada um de nós teria de se perdoar a si próprio. Mas o pior não foi aí.
De repente ele desapareceu, e a esperança de um pouco de redenção vinda dele esfumou-se. Mas o tempo passou, o mundo não parou, foi-se reorganizando. E com o tempo, as palavras que ele tinha dito provaram ser acertadas. Apenas tinham sido vistas de outro prisma. Afinal ele estava certo, e a culpa foi substituída por outra e cresceu ainda mais. Afinal, cada um de nós tinha sido uma peça na engrenagem que provocara a mudança. O colapso não fora a mudança, provocara-a. E ele sabia, e ainda assim foi acusado, e criticado. Éramos todos culpados perante aquele que, ao provocar o colapso criou a mudança. Todos quisemos perdão porque o mundo estava bastante diferente de há vinte e cinco anos atrás, e para melhor. Todos procurámos a redenção… Mas o único redentor possível tinha já desaparecido.
O Mundo que existe hoje é filho da culpa que cada um de nós partilha, e essa culpa cria tantos pontos de contacto que é impossível não estarmos todos solidários.
E o facto de procurarmos o perdão diariamente dá-nos a humildade para percebermos os outros.
Claro que continua a haver divergências, confrontos de ideias, de visões, de opiniões, mas a procura de perdão é de facto unificadora. Finalmente a humanidade tinha-se unido em torno de algo que não era um lugar-comum, como o sempre antes utilizado “Somos todos humanos…”, como se o facto de nos proclamarmos mamíferos nos impedisse de matar outros mamíferos para comer, por exemplo. Finalmente havia algo de concreto, por mais intangível que fosse.
Mas a culpa começa a atingir proporções religiosas. Não deixa de ser irónico que o homem que afinal era tão indiferente à humanidade, que, nas suas palavras, foi apenas um veículo para as mensagens e que não as revelou para salvar alguém, mudar a vida de alguém ou fosse qual fosse o motivo altruísta, mas antes por estar empenhado numa procura pessoal, seja hoje louvado como um redentor. Porque a culpa está lá.
E, apesar de a culpa não ser ainda um lugar-comum, ameaça tornar-se num…
Mas deixa-me ir um pouco atrás.
A verdade é que a ultima mensagem de Gabriel Guerra causou uma comoção no mundo inteiro. As palavras dele ressoaram a uma ameaça consumada.

“Em sete dias as casas do poder que foram feitas de palha ruirão sob o seu próprio peso. A palavra é revolução.”

Foram sete dias de caos. Estas palavras tinham o peso de tudo o que se tinha passado antes, todas as mensagens que se concretizaram.
O problema é que as casas do poder permaneceram intactas ao fim dos sete dias. Mas a corrida aos bancos, aos supermercados, provocou o colapso do sistema. O sistema financeiro ruiu, a inflação disparou, houve escassez de tudo, mas no fim os governos conseguiram aguentar a ordem, conseguiram tomar medidas que contiveram os estragos rapidamente.
No fim dos sete dias milhares estavam no desemprego, empresas tinham falido e estavam nacionalizadas, numa tentativa de conter o desemprego e a ruína financeira. E no fim, para nada. Nada aconteceu. Não houve uma mudança, não houve a revolução, o mundo não explodiu em chamas. Mas os estragos foram enormes.
Havia que encontrar um culpado, e o culpado era óbvio. Foi constituído um processo, foi acusado, preso, levado a julgamento. Mas foi esse o primeiro momento.
-Acusam-me de quê, afinal? – perguntou ele em plena sala de audiências – Acusam-me de acreditarem em mim? Eu alguma vez prometi alguma coisa? Eu disse que tinha a verdade? Eu disse que esta era a verdade? Todos vocês assumiram que a verdade era esta, mas eu nunca o afirmei, nunca esperei que fizessem fosse o que fosse. Apenas recebi uma mensagem e passei à frente tal como me foi entregue. A interpretação foi vossa de palavras que nem eram minhas. O caos não foi criado por mim.
E esta era a verdade que ninguém conseguiu rebater.
O julgamento acabou. Gabriel foi libertado.
No dia seguinte desapareceu. Nunca ninguém encontrou um corpo ou voltou a saber do paradeiro dele. Pura e simplesmente esfumou-se da face da terra depois de ter sido baleado à porta de um café.
E o tempo passou. O equilíbrio voltou mas o mundo estava diferente. Curiosamente, estava muito mais próximo de uma utopia socialista do que anteriormente se julgara possível. O facto de os lucros do capital começarem a reverter directamente para os estados fez com que os países desenvolvidos tivessem um “superavit” nas suas economias, provocando uma distribuição de riqueza sem precedentes. A riqueza acumulada chegou mesmo aos países mais pobres e os desequilíbrios entre hemisférios esbateram-se.
Foi nessa altura que as palavras de Gabriel voltaram a ressoar.

“…as casas do poder que foram feitas de palha ruirão sob o seu próprio peso…”

O verdadeiro poder sobre o mundo não estava nos governos. Estava no capital, na pressão do consumismo, da produção em massa a custos reduzidos, no lucro. As casas de palha eram afinal aqueles que lidavam com a especulação e que construíram impérios de nada. E foram estas casas que ao ruir criaram a revolução.
Primeiro foram apenas algumas vozes tímidas a falar. Mas a voz da razão tinha força e vieram mais e mais. E foi nesta altura, quando se atingiu uma massa crítica de gente que Gabriel foi finalmente posto no seu lugar.
E foi então que apareceu o livro. Ninguém sabe quem foi o seu autor, mas começou a circular em fotocópias encadernadas e foi passando, até ser, finalmente editado.
Muitos disseram que tudo aquilo era mera especulação. Diziam que Gabriel jamais poderia ser tão “amargo”. Não depois de tudo o que fizera.
Foi precisamente o Fernandes que desfez as dúvidas acerca da veracidade do que lá estava escrito, afirmando que estavam lá descritas coisas que apenas ele próprio e o Gabriel podiam saber.
Surgiram logo teorias de que Gabriel estava vivo algures e que fora ele o autor, mas a verdade é que nunca nada disso foi confirmado. Ainda assim, apesar da “amargura” das palavras, Gabriel foi sendo conduzido cada vez mais para um lugar central na sociedade. Tanto quanto se sabe, começam a haver seitas espalhadas e esporádicas que criam religiões baseadas na crença de que Gabriel era um profeta.
O mundo mudou, de facto. Está mais justo. Mas não deixa de ser tão estranho como sempre foi. Apenas vivemos uma estranheza diferente.
E com isto chego ao começo da história, que não é a minha, mas que me vou dedicar a relatar o mais fielmente possível, para que saibas o que na realidade aconteceu.
Não presenciei a maior parte dos factos, mas aquilo que te vou contar vem de relatos em primeira mão.

Comecemos então…

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Published on November 27, 2015 03:24
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