Os dias mais estranhos - 46. Ródão

Rumamos a Vila Velha de Ródão, abaixo de Castelo Branco, indo até à Guarda, para depois apanhar a auto-estrada para o nosso destino, dando assim um passeio pelo interior do país. A Mónica adormeceu não muito tempo depois de sairmos o que me deixou sozinho com os meus pensamentos.Sem dúvida que a noite anterior tinha sido a realização do sonho de quase qualquer homem. Já tinha passado antes, na minha adolescência por uma situação semelhante. No entanto houve grandes diferenças entre as duas situações. Na primeira vez tinha sido praticamente uma brincadeira de putos, com uma completa inconsequência. Desta vez tinha sido com a mulher que eu sentia amar. Não podia negar os ciúmes que tinha sentido quando a vi fazer amor apaixonadamente com a Guida. Se por um lado tinha sido um quadro de uma sensualidade extrema, que me excitara para além da normalidade, por outro, agora a frio, havia em mim uma sensação de exclusão. De fora estavam quaisquer sentimentos de traição. Por outro lado faltava-me saber o que tinha significado esta noite para ela. A despedida entre as duas dava que pensar.Parei numa bomba de gasolina mais para esticar as pernas. Ela acordou. Bebemos um café e andamos um bocadinho. Quando voltámos à estrada eu mantive-me silencioso, continuando imerso nos meus pensamentos. Como que adivinhando foi ela quem rompeu o silêncio.-Gostaste da noite de ontem?-Claro que sim.-Gostaste de estar com a Guida na cama?-Tu estiveste lá. Não adiantava mentir-te e dizer-te que não.Ela deixou-se ficar um pouco em silencio, como se procurasse a pergunta certa para e fazer.-Ela é melhor que eu?-Melhor que tu?-Sim, na cama, ela é melhor que eu?-Não. É apenas diferente.Falava-lhe com toda a franqueza até porque não via motivo para que assim não fosse. A Guida era sem dúvida uma mulher fenomenal, mas não era a ela que eu me sentia ligado. -E tu? Gostaste de fazer amor com ela?-Gostei. É uma sensação tão diferente…Ficamos calados durante um bocado. Sentia que ela esperava que eu dissesse qualquer coisa, mas eu não o fiz. Foi ela que acabou por continuar.-Fi-lo por ti.-Por mim?-Sim. Sei que é o sonho de qualquer homem estar com duas mulheres…-Também é o sonho de muitas mulheres estar com dois homens. -Sim, é verdade. Sentias-te à vontade numa situação dessas?-Creio que não.-Porquê? Sentias por ventura a tua masculinidade ameaçada?-Não, não acho que tenha a ver com isso. Acho que não aguentaria ver-te na cama com outro homem.-Como é que achas que me senti ontem ao ver-te com a Guida?-Então porque é que o fizeste?-Já te disse, por ti.-Não o fizeste também por ti?Ela ponderou bem as palavras antes de me responder.-Sim, no fundo acho que sim.Sabia que aquela resposta tinha de ter continuação, mas não a quis forçar. Dei-lhe o tempo necessário para que ela pensasse no que me iria dizer a seguir. Quando se sentiu pronta continuou.-Lembras-te de eu te contar da cena que se passou com o Francisco?-Lembro. Também foi com a Guida?-Não, não teve nada a ver. Com a Guida já tinha notado algum clima entre nós em algumas situações, mas nem eu nem ela nunca tínhamos tido coragem para dizer alguma coisa abertamente. Nunca se tinha passado nada entre nós. – Fez mais um pouco de silêncio reorganizando as ideias – Contei-te a verdade quando te disse que não me lembrava de quase nada dessa noite. Mas ficaram duas sensações. Uma foi de pena por ter feito aquilo com o Francisco. Mas ficou também a sensação de que algo de bom se tinha passado.-Isso fez-te querer experimentar estar com uma mulher outra vez?-Sim. Fez.-Porque é que não o fizeste só com ela?-Primeiro porque se as coisas não se tivessem passado assim acho que nunca teria ganho coragem. Depois porque quis mesmo partilhar este momento, de uma forma lúcida, contigo. Queria que fosse memorável. Queria partilha-lo com alguém que me dissesse muito.Neste momento senti-me honrado com a sua escolha. Olhando para os meus próprios sentimentos, não era difícil perceber do que ela tinha abdicado para me partilhar com a sua amiga. Não é de todo fácil abrir mão assim dos sentimentos de posse. Mais verdade seria isto quanto maiores fossem os seus sentimentos em relação a mim.-Voltavas a ir para a cama com a Guida? – Perguntou-me.-Nunca sem ti. E tu?-Também não o faria sem ti. Gostei, mas gosto muito de macho. – Disse com um sorriso.Tínhamos as mentes esclarecidas. Foi-me óbvio que não tinha sido eu o único a reflectir sobre toda aquela situação. Olhamos um para o outro com carinho e demos as mãos. No resto da viagem apenas o rádio não deixou que o silencio se instalasse.Eram perto das sete da tarde quando chegamos ao nosso destino. O hotel ficava à beira do rio Tejo, sendo que este mesmo tinha esculpido a paisagem com uma beleza de cortar a respiração. Vila Velha de Ródão era um sítio tão calmo que à noite dava a impressão de que os cães se abstinham de ladrar só para não perturbar o silêncio.Instalamo-nos no nosso quarto. Foi uma agradável surpresa descobrir que o quarto tinha uma varanda que dava para o rio.Jantamos no restaurante do hotel e em seguida, embora os planos originais não fossem esses, recolhemos ao quarto. O meu cansaço de conduzir o dia todo aliado a algumas dores no ombro de que ela se queixava já desde a nossa saída do Porto, fez com que parecesse uma boa ideia descansarmos.Sentei-me na varanda a fumar um cigarro e a observar o Tejo enquanto ela se tentava ajeitar com almofadas de maneira a que o ombro não a incomodasse.-Já pensaste para onde esta relação está a ir? – Perguntou ela quando finalmente sossegou.-Já pensei para onde gostaria que ela fosse.-E para onde é?-Já falámos nisso. Gostava de organizar uma vida contigo. Gostava de estar sempre contigo.-Porquê?Aquela pergunta não fazia para mim o mínimo sentido. A reposta parecia-me óbvia demais.-Amo-te. Só por isso.Ela deixou-se ficar a olhar para mim.-Mas porquê isto tudo agora? – Perguntei-lhe.-Porque não sei se é isso que eu quero.Aquela resposta atingiu-me como uma bala disparada ao peito. O impacto quase me deixou zonzo. Quando consegui recuperar perguntei-lhe:-Então o que queres?-Não sei, se queres que te seja franco.Acabei rapidamente de fumar o meu cigarro. Não demorei a acender outro. Eu sabia que o que estava a sentir era, com toda a certeza, por demais evidente a ela. Mas tive também consciência de que nesta altura ela se virava mais para si do que para mim. Ao fim de uma longa pausa acabei por ser eu a falar.-Então, se calhar, nada disto faz sentido…-Não, – apressou-se ela a responder – não penses assim. Faz todo o sentido. Olhou-me profundamente nos olhos. Como sempre, quando ela fazia isso, eu sentia-me a derreter por dentro. Era uma das melhores sensações que eu tinha. Perder-me nos seus olhos.-Eu amo-te. – Acabou ela por dizer – E acho que nunca amei alguém assim na minha vida.-Então?-Então já passei a idade dos idealismos e do amor e uma cabana.-Pois eu não. Para mim o amor e uma cabana continuam a chegar.-Eu sei disso…Tudo o resto estava implícito. Não voltamos a trocar uma palavra nesse dia. Ela acabou por adormecer e deixou-me novamente só com os meus pensamentos.Nessa noite fui simplesmente fumando enquanto observava a paisagem. Acabei por adormecer nas cadeiras da varanda embalado por uma suave brisa de Verão, em parte por não a querer incomodar.No dia seguinte ela já se sentia melhor. Passamos o dia a passear pelas redondezas e acabamos por ir à noite a uma festa de aldeia. Divertimo-nos bastante e voltamos ao hotel já um pouco quentes.Fomos tomar um banho juntos, e a partir daí não nos largamos mais. Estávamos insaciáveis. O que tínhamos um do outro não nos chegava. Nessa noite quebramos todos os tabus, todas as regras. Fizemos amor de todas as maneiras possíveis e imaginárias em todos os locais possíveis e imaginários daquele quarto. Acabamos por quebrar, cansados e saciados a altas horas da madrugada. Sei que eu, pelo menos, passei ligeiramente pelas brasas. Mas de repente despertei.Senti-a erguer-se na cama. O quarto estava na mais completa penumbra. Podia apenas ver a silhueta do seu corpo despido contra a pouca claridade que entrava pela janela. Não podia deixar de me admirar com o desenho do seu corpo. Passei a mão suavemente pelas suas costas e ela voltou-se, revelando-me o contorno do seu seio. Podia sentir os seus olhos a pousar em mim na escuridão. Podia sentir a electricidade a passar da sua pele para a ponta dos meus dedos. Há pouco mais de meia hora atrás fizemos tudo o que um homem e uma mulher podem fazer. E agora nesta penumbra e no silêncio estava lentamente a aperceber-me que tínhamos chegado ao nosso zénite e que seria impossível estarmos juntos. E embora este facto fosse para mim perfeitamente óbvio e lógico, a parte de mim que se recusou a aceita-lo fez rolar uma lágrima silenciosa pelo meu rosto abaixo.
O mundo não seria o mesmo depois desta noite. Esvaziara-se de repente…
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Published on November 17, 2015 00:13
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