Os dias mais estranhos - 36. Évora

-Até que enfim que alguém te põe a vista em cima.Quem falava assim era o Zeca. Era um fim-de-semana sem concertos e a Mónica tinha ido para fora para um congresso qualquer. Estava farto de estar onde estava e decidi ir chatear o Zeca a Évora. Encantava-me aquela cidade, com os seus monumentos. E adorava a calma do Alentejo, um sítio onde parece haver tempo para tudo. Precisava deste momento para mim, só para mim. Claro que a companhia do Zeca dizia-me muito. Quando lhe telefonei ficou feliz de me poder dar a hospitalidade que eu lhe pedia. Fui para lá na sexta-feira ao fim da tarde, só com umas mudas de roupa. Quando cheguei, para minha surpresa, o Zeca não estava sozinho. A Magdalena tinha ido passar uns dias com familiares que tinha por ali e tinham combinado encontrar-se. Jantamos os três e a seguir deambulamos pelas ruas à noite com uma despreocupação que é impossível ter em Lisboa.A vida nocturna era bastante animada devido à universidade. Havia vários bares e discotecas onde se podia ir e estar a beber um copo até altas horas da manhã. Mais do que de dia, a noite de Évora era vibrante, não sendo o caos desordenado que se vivia na capital e arredores. E por todo o lado havia tertúlias e pequenas esplanadas na rua, quando o tempo o permitia. Encontramos um bar simpático onde ficamos algum tempo. Tinha uma decoração entre o gótico e o medieval, o que de alguma forma se enquadrava perfeitamente na atmosfera da parte velha da cidade onde nos encontrávamos. Era como se aquele bar fizesse parte da história da cidade em si. E pensando bem, provavelmente faria, tendo em conta o sítio onde estava instalado, bem perto do templo de Diana, a deusa romana da caça.Pedimos as bebidas. Lembro-me distintamente de ter pedido um café e uma água com gás. -Não queres beber outra coisa? Perguntou o Zeca.-Mais logo. Para já só o cafezinho.O Zeca pediu para ele e para a Magdalena, um café e um whisky e um Carol Ann´s. -Atão, mas conta lá, o que é feito de ti?-Contem-me antes o que é feito de voz. Não esperava encontrar-te aqui, Magdalena…-É mas tenho aqui família e vim cá…-Como é que as coisas estão com vocês?-Vão andando… - disse o Zeca, não querendo abrir muito o jogo. A Magdalena lançou-lhe um olhar forte, e ele calou-se desviando o olhar.-Temo-nos encontrado. – Disse ela.-Ah! Mas afinal, passa-se alguma coisa entre vocês ou não? – Perguntei eu, forçando o Zeca a abrir o jogo.-Olha, … – acabou ele por dizer – temos saído, e curtido… – olhou para ela para ver a sua reacção.A Magdalena, agindo como eu previa voltou-se para ele.-Ouve lá, porque é que não assumes? – e depois voltou-se para mim – Temos andado, prontos. Não é nada definido mas temos andado os dois.O Zeca assentiu com um sorriso, como se tivesse sido preciso esta afirmação por parte dela perante mim de que era isso que sucedia. Não pude deixar de me regalar com este jogo entre os dois que apenas há poucos meses me teria parecido quase indecifrável e absurdo. Era giro vê-la a furar as barreiras com que o Zeca se protegia. De alguma maneira, o facto de o Zeca querer manter a sua âncora em Lisboa fazia com que, embora conhecesse quase toda agente por estas partes, não se ligasse realmente a ninguém. Sabia que tivera alguns casos por aqui, mas nada que fosse para durar, e invariavelmente não durava. Por isso, era engraçado ver as cumplicidades que eles iam criando, e a maneira como aprendiam a lidar um com o outro. Notava-se que não estava ali uma relação explosiva como a que eu tinha com a Mónica. A relação que eles tinham era a cara do Zeca. Calma e com tempo. Deixar as coisas ir para onde querem ir.Olhava também para a Magdalena, e, pelo que conhecia dela, extrovertida e algo impulsiva, não deixava de me perguntar para onde iria aquela relação. Mas, curiosamente, senti-a calma, a embarcar na maneira como ele levava as coisas. Era diferente ver estes meus dois amigos assim.-Ora agora, que já sabes como é que nós tamos, é a tua vez…Olhei para a Magdalena, não sabendo até que ponto ela saberia da história. O próprio Zeca nada sabia desde o fim de ano. Talvez daí a curiosidade. Mas não sabia por onde começar para não deixar a Magdalena à deriva e fora de contexto. -Mas aqui o rapaz arranjou sarilhos com uma moçoila, foi? – Perguntou a Magdalena.-E que moçoila. Ele que te explique.Fiquei a saber naquela altura que ela não sabia de nada.-Tu andavas com uma gaja e não me disseste? E eu sempre armada em casamenteira… Hás-de ter muitos amigos…-Já não nos víamos há uns tempos. Isto é relativamente recente…-Pois, pois, tou mesmo a ver…-A sério. -É, é!-Mas queres ouvir ou não?-Vá lá, desembucha.E eu desembuchei. Tive que lhe contar tudo resumidamente desde o começo. Claro que tive de dar mais detalhe à parte final da estória, visto que essa nenhum dos dois sabia e o Zeca estava visivelmente curioso.À medida que ia contando as minhas peripécias com a Mónica, contando com poucas e breves interrupções da parte deles, o bar ia-se enchendo. Era um ambiente típico de uma sexta-feira à noite. Os estudantes vindos de fora misturavam-se com os nativos locais. O bar estava muito bem frequentado, sendo a grande maioria dos frequentadores do sexo feminino.Quando acabei de falar, a Magdalena foi a primeira a pronunciar-se.-Que romântico…Ora aí estava uma palavra que eu não estava à espera que se me aplicasse.-…mas que é que estão à espera para se juntarem?-Ela não quer que por enquanto se saiba.-Porquê? – Perguntaram os dois quase em coro. O sobrolho levantado do Zeca disse-me tudo. Ficou com o ar de “há-aí-coisa” que eu tão bem lhe conhecia.-Primeiro há a filha dela, a Raquel. Ela não quer que por enquanto se saiba por causa da miúda…-…e ela deve julgar que a miúda é parva. Vê-te lá quase todos os fins-de-semana… – retorquia a Magdalena.-Mas a chavalinha tem oito anos, pá.-Tá bem, tá. Ela pode ainda não saber a cena das abelhinhas e dos passarinhos, mas com oito anos já sabe de certeza o que é um namorado. Pensei nisso. Ela era bem capaz de ter razão. Eu adorava a Raquel, muito sinceramente. E acho que a Raquel gastava de mim, sobretudo porque não a tratava como uma criança. E convenhamos que ela era bem capaz de manter uma conversa comigo. Mas notava-lhe um certo respeito que não via nela com outras pessoas. Talvez pela maneira como eu a tratava, ou então, e pensando bem, talvez ela intuísse que havia algo entre mim e a sua mãe.-Depois há a questão do Francisco.-E o que é que o Francisco ainda tem a ver com esta cena? – Perguntou o Zeca.-Pá, contei-te aquilo que ele disse à Mónica?-A cena de ela ter cuidado com músicos?-Yá!-Bem, acho que ela também não quer dar o braço a torcer. Alem disso, sei que ele a está a ajudar a pagar algumas contas nestes primeiros tempos.-Puto, e tu sentes-te confortável com isso?Encolhi os ombros, sem saber na realidade o que dizer. Minto. Sabia bem o que queria dizer. Não o queria era admitir para comigo mesmo. Admito agora que a situação me magoava de alguma forma. Parecia que o que estávamos a fazer era proibido. Tínhamos momentos de grande intimidade entre os dois, mas quando estávamos em público ou com a filha dela, comportávamo-nos apenas como bons amigos. Por outro lado, a verdade é que a tensão que acumulávamos quando estávamos acompanhados transpunha-se completamente para os nossos momentos de intimidade. Quando tínhamos a oportunidade parecíamos dois vulcões prestes a entrar em irrupção. A nossa paixão era intensa e vibrante, em parte, se calhar por causa desse mesmo sentimento de fruto proibido.Claro que tudo isto me punha interrogações. Mas eu estava disposto a deixar o tempo encarregar-se de as resolver. O meu velho pai sempre me dissera “as cadelas apressadas parem os cachorros cegos”. A pressa era inimiga de tudo. Já o tempo tinha uma maneira estranha de resolver todas as situações. E a verdade é que eu queria esperar. Nunca tinha desejado ter alguém do meu lado como desejava a Mónica. O que me dava forças para a espera era o que eu sentia nela.Enquanto estava no meio destas conjecturas fumei o meu último cigarro e, consequentemente, levantei-me para ir buscar tabaco à máquina. Pus as moedas na ranhura e carreguei no botão. Baixei-me depois para agarrar o tabaco. Depois de o agarrar levantei-me e voltei-me para me dirigir de novo à mesa. Ao faze-lo quase me esbarrava com ela.Nunca soube o nome dela, mas parecia uma versão mais nova da Mónica. Devia ter uns dezanove ou vinte anos. Enquanto estancava, quase a embater nela, os nossos olhares cruzaram-se. Foi apenas um segundo, mas senti ali uma faísca que me fez soltar um levíssimo sorriso. A ela também.-Desculpa. – Disse-lhe eu.-Tudo bem. - Respondeu-me.E cada um de nos seguiu com a sua vida.Nunca mais a vi, nem sei quem era. Também nunca procurei sabe-lo. No entanto ela fez-me, naquele ínfimo momento, olhar para dentro de mim e perceber que, apesar do amor que sentia, haveriam sempre estas pequenas centelhas que passam entre estranhos que se cruzam e que fazem pensar. E no entanto esta centelha apenas me fazia lembrar a Mónica. Queria-a. Amava-a. Tinha que me entregar a ela e ela tinha de ser minha. Faria de tudo para que deixassem de haver meios-termos.O Zeca tinha reparado na cena e não deixou de gozar comigo quando voltei, finalmente, para a mesa.-Já me viste isto? Vem para aqui todo choroso de amores e depois a quase que se faz a uma chavala quando vai comprar tabaco…-E mesmo cena de gajo. – Retorquiu a Magdalena. – Vocês no fundo são é todos uns rebarbados…-Não se esqueçam que a maior parte do pessoal que abandonou famílias em casa saiu só para comprar tabaco. Isto é uma das explicações…Riram-se ambos.Acabamos a noite em casa do Zeca, entre bebidas e conversa e com a televisão apenas como objecto decorativo.
A Magdalena não foi dormir a casa dos familiares nessa noite…
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Published on November 11, 2015 08:26
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