Os dias mais estranhos - 09. Resolução (decisão, deliberação, propósito, tensão)
Escusado será dizer que não tive cabeça para fazer mais nada nesse dia. Acabei por levar as coisas para fazer à noite, em casa. Mesmo assim foi difícil concentrar-me. Aquele beijo ainda me ardia nos lábios.Sempre fui sincero comigo próprio. Fisicamente nunca fui particularmente atraente. Pelo menos nunca me considerei. Mas tinha perfeita consciência de que havia piores do que eu. Por outro lado sempre tive uma mente desperta e inquiridora o que me dava uma cultura geral acima da média e uma resposta pronta. Assim sendo, sempre consegui levar a água ao meu moinho, mas nunca fui um tipo de engates de uma noite. As relações comigo tendiam a durar algum tempo. Havia uma entrega diferente da urgência de uma noite de sexo.A minha última relação tinha durado um longo tempo. E a separação tinha deixado algumas cicatrizes e tinha fendido o escudo do meu idealismo ingénuo. Mas também tirei dela importantes lições, e jurei a mim mesmo que não deixaria que a ingenuidade me toldasse a visão. Daí para a frente tornei-me mais observador e mais atento e descobri um mundo diferente do que eu acreditara existir. Este beijo da Mónica, com tanto de inesperado como de confuso tinha, sem que fosse esse o propósito dela, abanado o meu mundo. Sentia coisas dentro de mim que eu nem notara que existiam antes. Estava verdadeiramente assustado. E nada daquilo fazia sentido. Tinha ficado mal resolvida a situação. Sentia que precisávamos falar acerca disto conscientemente. E urgentemente.Mal jantei, e só depois do jantar me consegui concentrar um pouco no trabalho. Resolvi ficar a pé até tarde para adiantar ou mais possível ou acabar. E estranhamente tudo correu de feição e despachei tudo num par de horas.Deitei-me e apaguei a luz. Quase em sincronia o visor do telemóvel acendeu-se e apitou com o aviso de chegada de mensagem. Abri a mensagem.“OLA” podia ler no visor através do brilho fantasmagórico do minúsculo LCD. Era da Mónica.“OLA” respondi.“OCUPADO?”“NÃO MUITO”“POSSO LIGAR”“SIM”Em apenas uns segundos o telemóvel tocou.-Olá! - disse eu quando atendi.-Olá. Távas ocupado?-Não, táva a acabar de me deitar.-Já távas a dormir?-Não, ainda não. E tu, que andas fazendo? Parece que andas na rua…-Ando a passear o cão.-A esta hora?-Sabes, o cão não é meu, e do “senhor” Francisco, mas se o bicho depender dele morre à fome e à sede. Nunca se lembra que o bicho tem de sair e acabo por ser sempre eu que o trago.-Enfim… Tá tudo bem?Ouvi um suspiro do outro lado. – Tá, ta tudo bem… – acabou por dizer sem uma réstia de convicção. Fez um silêncio, uma pausa, como se quisesse encontrar palavras.-Olha, Pedro, eu precisava falar contigo…-…acerca desta tarde! – Acabei eu a frase. – O que é que se passou ali?-Eu também não sei. Mas queria pedir-te desculpa…-Eu é que tenho que te pedir desculpa. Eu forcei uma situação…-Nenhum de nos dois forçou, Pedro. Sabíamos ambos o que estávamos a fazer. E eu tenho andado carente…-Não tas bem com o Francisco?-Tou, não é por ai… É de mim mesma, acho eu…Mas falamos disso noutra altura, pessoalmente. -Tudo bem.-Isto não pode voltar a acontecer…-Não, não pode. E não quero perder uma amiga por um momento.-Não perdes. – Fez-se mais uma pausa. – És um bom moço.-Obrigado. Também és uma boa moça.Houve um silêncio da parte de ambos, como se procurássemos algo mais para dizer. Mas as palavras não vieram. No fundo sabíamos que o que tinha de ser dito já o fora. Não fazia sentido tentar encontrar mais desculpas.-Não te posso mesmo convencer para Sábado? – Acabou por perguntar.-Não podes mesmo… - respondi com alguma pena.-…E posso dar o teu número à Andreia?-Podes.-Fica bem, então…-Tu também pequenina.E desligamos.Aquela pequena conversa foi o necessário para fechar aquela situação. Senti-me completamente aliviado com esse facto.No entanto, não deixei de sonhar com aqueles lábios, naquela noite…
Published on October 28, 2015 08:43
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