O Sistema III
III
Hugo e Jorge haviam nascido e crescido naquele bairro. Os seus pais tinham ido para lá aquando da construção e por ali ficaram. O bairro da sua infância e juventude tinha desaparecido à muito. À medida que se foi degradando, foi-se transformando num território de lutas entre gangues rivais e um local onde a segurança tinha desaparecido, onde a toxicodependência e a prostituição reinavam e onde as pessoas viviam com medo.
Quando, há dois anos atrás, Hugo ficou desempregado, começou a querer ocupar o seu tempo livre com algo de proveitoso para a comunidade, cansado como estava de ver a degradação do sitio onde sempre vivera, e começou a tentar dinamizar aquela comunidade.
As pessoas, como reconhecimento do seu esforço, foram-lhe fazendo as penhoras das suas cartas locais, sabendo que se ele conseguisse mais peso, a sua voz seria ouvida com mais facilidade. E Hugo foi fazendo a sua voz ser ouvida, o mais que pôde.
Foi então que apareceu Jany.
Jany era, à superfície, uma pessoa ligada à construção e ao imobiliário, mas toda a gente dizia que ele não era só isso. Na verdade, Jany era o Chefe da cidade. Tudo quanto se passava de ilegal estava de alguma maneira ligado a ele, embora nunca ninguém o tivesse conseguido provar.
Num dia como outro qualquer, um mercedes enorme entrou no bairro e parou à porta de Hugo. Saiu de lá de dentro um tipo qualquer que entregou um pequeno envelope a Hugo e ficou à espera enquanto este lia. Era uma “solicitação” de Jany para que Hugo se encontrasse com ele.
Hugo pensou em dizer que não estava interessado. Sabia bem quem era Jany. Aliás, a maior parte dos problemas do bairro deviam-se às actividades dele. Mas Hugo sabia que as fundações de muitos edifícios da cidade estavam cheios de pessoas que tinham dito que não, por isso entrou para o carro.
Quando chegaram ao destino, uma mansão nos arredores, Hugo foi conduzido a um escritório que revelava uma falta de gosto extrema, em que peças, presumivelmente de alto valor, estavam praticamente encavalitadas umas nas outras num arranjo estético que causava estranheza e desconforto.
-Boa tarde Sr. Hugo – recebeu-o Jany, com um ar simpático, amável mesmo, num contraste notável com aquilo que Hugo sabia dele.
-Boa tarde – Respondeu timidamente.
-Sente-se, por favor. Posso oferecer-lhe algo para beber?
-Apenas se for beber algo também.
-Mas claro. O que vai desejar?
-Aquilo que for tomar também. Faço-lhe companhia.
Jany serviu dois copos de Vodka, pura, entregou um a Hugo e deu a volta a seguir, sentando-se à secretária, sendo o gesto imitado por Hugo.
-Deve estar a perguntar-se porque é que eu quero falar consigo…
-Sim, estou curioso.
-Pois bem. Já ouvi dizer que é um homem directo, um homem de palavra. Já não há muitos assim, como nós…
“Como nós?” pensou Hugo.
-…e por isso vou directo ao assunto. Quase todo o bairro dos Alamos lhe penhorou os votos, não é verdade?
-Sim, quase todo.
-Seja lá o que for que está a fazer, deve estar a fazê-lo bem…
-Vou tentando, mas há demasiada burocracia…
-Pois. Eu sei. Tenho o mesmo problema com os meus empreendimentos. Dai eu ter pensado que, se juntássemos os nossos esforços talvez conseguíssemos alguma coisa…
-Juntar os nossos esforços?
-Sim, Sr. Hugo. Preto no branco, quero as suas cartas.
Hugo olhou-o, procurando uma resposta para lhe dar. Era óbvio que lhe queria dizer um “não” bem redondo, mas essa era capaz de não ser a melhor opção para a sua saúde.
-Compreendo a sua hesitação, Sr. Hugo. Acredite que compreendo mesmo. Sei tão bem como o senhor as calunias que circulam por aí a meu respeito.
-Calunias?
-Vá lá, Sr. Hugo, não precisa de estar com pezinhos de lã. Mas posso dizer-lhe que são só mesmo isso, calunias, mentiras sem qualquer fundamento. Sou só um emigrante de origens humildes que tenta cuidar da sua família…
-Tenta com muita eficácia…
-Tenho uma família grande… - disse com um sorriso cínico.
-Nota-se…
-De qualquer forma, acredito que se me ceder as suas cartas, poderei ficar em posição de resolver alguns problemas meus, bem como muitos dos seus.
-Mas compreenderá que, se eu lhe ceder as cartas, vou perder a confiança de quem as penhorou em mim. Não creio que os meus vizinhos tenham alguma confiança em si.
-Claro, não me conhecem…
“mas sentem na pele o resultado dos ”negócios” que fazes” pensou Hugo.
-…daí eu querer falar consigo pessoalmente. Se o Hugo falar com eles, por certo que reconsiderarão. Além disso, não serão para mim, as cartas. Tenho uma vida muito preenchida e ocupada, não teria tempo para cargos públicos. Serão, como é óbvio, para alguém da minha inteira confiança.
-Pois, compreendo. Mas, sinceramente, não sei até que ponto posso ajudá-lo.
Jany ficou sério, com um frio glacial nos olhos, que causou um arrepio a Hugo. Depois o sorriso voltou, não quente e convidativo, mas cínico e ameaçador.
-Sr. Hugo, acredite-me, eu sei como me pode ajudar. Além disso, aparte resolvermos problemas que ambos temos, há sempre a hipótese de o Hugo ganhar algo para si…
-Acredite, Sr. Jany, não quero nada para mim. Posso não ter muito, mas o que vou tendo chega-me…
-Ora, ora, caramba, não estava a falar de dinheiro. Sei que não tem muito, mas também sei que consideraria um insulto da minha parte. É um homem de palavra, como já disse, um homem de honra. Faço questão de saber sempre muito bem com quem falo.
-Se sabe que assim é…
-Claro que sei. Mas também sei de outra coisa: cada homem tem um preço. A única coisa que precisava de saber era qual é o seu. – pegou no auscultador do telefone e disse – Agora.
E eis que ela entrou na sala, fazendo o coração de Hugo saltar uma batida e trazendo-lhe à memória as noites e noites que tinha passado acordado a sonhar com um mero beijo daquela mulher.
A visão de Júlia, ali, naquele momento, era, simplesmente, arrebatadora…
Hugo e Jorge haviam nascido e crescido naquele bairro. Os seus pais tinham ido para lá aquando da construção e por ali ficaram. O bairro da sua infância e juventude tinha desaparecido à muito. À medida que se foi degradando, foi-se transformando num território de lutas entre gangues rivais e um local onde a segurança tinha desaparecido, onde a toxicodependência e a prostituição reinavam e onde as pessoas viviam com medo.
Quando, há dois anos atrás, Hugo ficou desempregado, começou a querer ocupar o seu tempo livre com algo de proveitoso para a comunidade, cansado como estava de ver a degradação do sitio onde sempre vivera, e começou a tentar dinamizar aquela comunidade.
As pessoas, como reconhecimento do seu esforço, foram-lhe fazendo as penhoras das suas cartas locais, sabendo que se ele conseguisse mais peso, a sua voz seria ouvida com mais facilidade. E Hugo foi fazendo a sua voz ser ouvida, o mais que pôde.
Foi então que apareceu Jany.
Jany era, à superfície, uma pessoa ligada à construção e ao imobiliário, mas toda a gente dizia que ele não era só isso. Na verdade, Jany era o Chefe da cidade. Tudo quanto se passava de ilegal estava de alguma maneira ligado a ele, embora nunca ninguém o tivesse conseguido provar.
Num dia como outro qualquer, um mercedes enorme entrou no bairro e parou à porta de Hugo. Saiu de lá de dentro um tipo qualquer que entregou um pequeno envelope a Hugo e ficou à espera enquanto este lia. Era uma “solicitação” de Jany para que Hugo se encontrasse com ele.
Hugo pensou em dizer que não estava interessado. Sabia bem quem era Jany. Aliás, a maior parte dos problemas do bairro deviam-se às actividades dele. Mas Hugo sabia que as fundações de muitos edifícios da cidade estavam cheios de pessoas que tinham dito que não, por isso entrou para o carro.
Quando chegaram ao destino, uma mansão nos arredores, Hugo foi conduzido a um escritório que revelava uma falta de gosto extrema, em que peças, presumivelmente de alto valor, estavam praticamente encavalitadas umas nas outras num arranjo estético que causava estranheza e desconforto.
-Boa tarde Sr. Hugo – recebeu-o Jany, com um ar simpático, amável mesmo, num contraste notável com aquilo que Hugo sabia dele.
-Boa tarde – Respondeu timidamente.
-Sente-se, por favor. Posso oferecer-lhe algo para beber?
-Apenas se for beber algo também.
-Mas claro. O que vai desejar?
-Aquilo que for tomar também. Faço-lhe companhia.
Jany serviu dois copos de Vodka, pura, entregou um a Hugo e deu a volta a seguir, sentando-se à secretária, sendo o gesto imitado por Hugo.
-Deve estar a perguntar-se porque é que eu quero falar consigo…
-Sim, estou curioso.
-Pois bem. Já ouvi dizer que é um homem directo, um homem de palavra. Já não há muitos assim, como nós…
“Como nós?” pensou Hugo.
-…e por isso vou directo ao assunto. Quase todo o bairro dos Alamos lhe penhorou os votos, não é verdade?
-Sim, quase todo.
-Seja lá o que for que está a fazer, deve estar a fazê-lo bem…
-Vou tentando, mas há demasiada burocracia…
-Pois. Eu sei. Tenho o mesmo problema com os meus empreendimentos. Dai eu ter pensado que, se juntássemos os nossos esforços talvez conseguíssemos alguma coisa…
-Juntar os nossos esforços?
-Sim, Sr. Hugo. Preto no branco, quero as suas cartas.
Hugo olhou-o, procurando uma resposta para lhe dar. Era óbvio que lhe queria dizer um “não” bem redondo, mas essa era capaz de não ser a melhor opção para a sua saúde.
-Compreendo a sua hesitação, Sr. Hugo. Acredite que compreendo mesmo. Sei tão bem como o senhor as calunias que circulam por aí a meu respeito.
-Calunias?
-Vá lá, Sr. Hugo, não precisa de estar com pezinhos de lã. Mas posso dizer-lhe que são só mesmo isso, calunias, mentiras sem qualquer fundamento. Sou só um emigrante de origens humildes que tenta cuidar da sua família…
-Tenta com muita eficácia…
-Tenho uma família grande… - disse com um sorriso cínico.
-Nota-se…
-De qualquer forma, acredito que se me ceder as suas cartas, poderei ficar em posição de resolver alguns problemas meus, bem como muitos dos seus.
-Mas compreenderá que, se eu lhe ceder as cartas, vou perder a confiança de quem as penhorou em mim. Não creio que os meus vizinhos tenham alguma confiança em si.
-Claro, não me conhecem…
“mas sentem na pele o resultado dos ”negócios” que fazes” pensou Hugo.
-…daí eu querer falar consigo pessoalmente. Se o Hugo falar com eles, por certo que reconsiderarão. Além disso, não serão para mim, as cartas. Tenho uma vida muito preenchida e ocupada, não teria tempo para cargos públicos. Serão, como é óbvio, para alguém da minha inteira confiança.
-Pois, compreendo. Mas, sinceramente, não sei até que ponto posso ajudá-lo.
Jany ficou sério, com um frio glacial nos olhos, que causou um arrepio a Hugo. Depois o sorriso voltou, não quente e convidativo, mas cínico e ameaçador.
-Sr. Hugo, acredite-me, eu sei como me pode ajudar. Além disso, aparte resolvermos problemas que ambos temos, há sempre a hipótese de o Hugo ganhar algo para si…
-Acredite, Sr. Jany, não quero nada para mim. Posso não ter muito, mas o que vou tendo chega-me…
-Ora, ora, caramba, não estava a falar de dinheiro. Sei que não tem muito, mas também sei que consideraria um insulto da minha parte. É um homem de palavra, como já disse, um homem de honra. Faço questão de saber sempre muito bem com quem falo.
-Se sabe que assim é…
-Claro que sei. Mas também sei de outra coisa: cada homem tem um preço. A única coisa que precisava de saber era qual é o seu. – pegou no auscultador do telefone e disse – Agora.
E eis que ela entrou na sala, fazendo o coração de Hugo saltar uma batida e trazendo-lhe à memória as noites e noites que tinha passado acordado a sonhar com um mero beijo daquela mulher.
A visão de Júlia, ali, naquele momento, era, simplesmente, arrebatadora…
Published on June 18, 2015 01:26
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