Tempestade

9.1.15.jpegÉ claro que, lá para Junho, a terra se encherá de rebrilhâncias, as araucárias projectando contrastes na luz límpida da tarde. É claro que, antes ainda de os maios se erguerem nas varandas e os toiros descerem ao Arrabalde, anunciando a nova época, o povo encherá o Basílio Simões e a Feira do Gado, em busca de sementes e plantios.


É claro que o Inverno é longo e que, quando os amigos de Lisboa exalarem as primeiras feromonas, fotografando-se a almoçar na Praia da Morena e a brincar com o cão na Mata de Alvalade, a natureza ainda nos derramará por cima dois meses suplementares de chuva ininterrupta.


E, contudo, ouço o vento que investe agora contra a porta do jardim, como se ele próprio desejasse refugiar-se cá dentro, e acho que não há tempo mais romântico no ano.


A chuva matraqueia ao de leve o telhado. A salamandra difunde pela casa o cheiro doce da acácia queimada. O Melville estica o pescoço, para receber festas, e volta a enroscar-se em si próprio. Ouve-se jazz, muito baixinho. Trabalho o dia inteiro, sem nada que me distraia, e chego a desejar que o fim-de-semana venha longe.


Às quintas à tarde, se posso, faço um desvio ao campo de golfe. O fairway está vazio, um vento desolado assobiando nas criptomérias, e há uma espécie de conhecimento. Outras vezes vou apenas ali abaixo, a São Mateus, ver o mar que se atira contra a escarpa. Ou atravesso o cerrado e vou apanhar tangerinas, por entre o nevoeiro.


Já não há araçás, mas há tangerinas. E torresmos de cabinho. E uma espécie de conhecimento.


A intensa solidão das tempestades. Os poetas nem sempre souberam explicá-la, mas nunca ignoraram a sua existência. É mesmo possível que nasça aí, o ofício da poesia. Talvez também só comece aí a vida.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 08, 2015 00:54
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