Pão-por-Deus
É evidente que alguma coisa se perdeu já, e nós sabemo-lo quando vemos os pais caminhando ao lado dos miúdos. O trânsito tornou-se perigoso, e se não fosse o trânsito seriam outros perigos, que a televisão é bem clara.
No meu tempo não era assim. Andávamos pela rua sozinhos, um quilómetro para baixo e outro para cima, e ao fazer doze anos púnhamo-nos de parte. Tínhamos crescido.
E, todavia, aí vinham eles de novo, estrada fora, com as suas saquinhas de atilhos, tocando às campainhas. Foi no sábado: aqui mesmo, na freguesia da Terra Chã – pela Terceira toda.
Alguns já haviam ido para a escola, na véspera, vestidos de bruxa ou vampiro. O Halloween está em todo o lado. Mas, ainda assim, continua a pedir-se o Pão-por-Deus, nestas ilhas como em cada vez menos lugares de Portugal.
Antigamente, o que mais queríamos era dinheiro, mesmo do preto. Mas estávamos dispostos a aceitar guloseimas, e de qualquer maneira também aí havia pelo que aspirar:
Hoje, ainda não percebi. Estudo-lhes as reacções e não as distingo. Mas, se não abro a porta, ainda me cantam:
Soca vermelha
Soca rajada
Tranca no cu
A quem não dá nada
E, ao ouvi-lo, volto a considerá-lo um resto de tudo o que houve um dia de belo e de recto e de generoso.
Aqui, Deus ainda não morreu. Sagrado e profano deram as mãos e, afinal, protegeram-se um ao outro. E eu, que sou ateu, torno a comover-me.
Diário de Notícias, Novembro de 2014


