A Fugitiva ((Parte 2 de "Tempestades e Desconhecidos"))



(Para a primeira parte Tempestades e Desconhecidos clicar aqui)
Corre.Não pares agora.Corre!Sentia as pernas pesadas, cansadas do esforço por correr naquele chão instável e pegajoso. Pior do que correr na areia da praia - a qual, já por si, torna as passadas mais lentas e difíceis -, aquele solo escuro parecia prender-lhe os pés, levando-a a concentrar a maior parte do esforço na parte inferior do corpo. Nunca fora dada ao exercício físico e tinha a tendência para acumular a gordura nas ancas, a tal camada protectora da sua fertilidade enquanto mulher. Embora muitas companheiras do sexo feminino se queixassem com frequência do corpo que lhes calhara, assim como recorriam ao uso de diversos métodos – desde as dietas aos comprimidos, ou mesmo a operações – para o modificarem, Marta nunca se importou muito com a sua cintura estreita e ancas amplas. Talvez por ter uma afincada faceta introspectiva, Marta focava-se sobretudo nas questões existenciais do ser humano. Bem, a verdade é que se perdia durante longos períodos na contemplação da vida e da morte, na ilusória manifestação do tempo, na subjectividade do espírito de cada um, entre outros tantos temas. Claro que, por vezes, influenciada pelo mundo à sua volta, olhava para si com rispidez, mas logo a sua mente lhe dava a volta e esquecia a parte física do corpo, encarando-o como mero instrumento prático.Naquele momento, numa corrida pela própria vida, arrependia-se de ter recusado o convite da mãe e da sua amiga de longa data, Sara, para iniciarem uma rotina no ginásio. A sua recusa levou a mãe a desistir, também, da ideia, e só a outra se aventurou a participar nas aulas que o estabelecimento de fitness oferecia. Se Sara estivesse no seu lugar, pensou, decerto que faria um melhor trabalho a escapar dos seus perseguidores. E por falar neles, o barulho que faziam na busca indicava que se aproximavam rapidamente, graças às longas pernas que possuíam, típicas naquele mundo de esgoto onde se atrevera a entrar. Apesar da dor pulsante nas pernas preguiçosas de Marta, esta continuou a correr, aos tropeções, pois sabia que, caso parasse, não seria capaz de mexer estes “instrumentos” inferiores até que estas restabelecessem. O céu depressa escurecia, o que dava esperança à jovem mulher na sua fuga. Uma das coisas que aprendera era que os habitantes daquele mundo temiam a noite, domínio de predadores ferozes. Embora não tivesse visto tais seres, já que ninguém a deixava sair para lá dos limites da cidade depois do pôr-do-sol, as histórias que lhe contaram eram o suficiente para também ela temer a noite. Todavia, em tais circunstâncias preferia arriscar com os monstros nocturnos, pois sempre havia a possibilidade de serem um mito. Ninguém se atrevia a confirmar a existência dos R’hor, devido ao crescente medo fomentado pelas histórias que ouviam desde que eram crianças, tipicamente atrevidas e curiosas. Assim, se conseguisse aguentar só mais uns minutos, correndo entre os arbustos selvagens, muito em breve ouviria a patrulha recolher. Enroscou-se entre dois arbustos, ignorando os acúleos que arranhavam os braços nus e húmidos, e, com as faces coradas, esperou que a escuridão a engolisse. Uma névoa branca formava-se à sua frente, devido à respiração ofegante; a custo, ouvindo o raspar das longas pernas dos seus perseguidores demasiado perto de si, susteve a respiração desordenada.- Vamos embora… - Ouviu uma voz medrosa.- Ele tem razão. Está muito escuro. Ela não vai sobreviver durante a altura dos R’hor e amanhã procuramos pelo seu corpo. - Ou o que sobrar dele. – Sussurrou de novo a primeira voz.- Raios! – Esta ela conhecia bem, era David. Furioso, o jovem alto e magro anunciou ao pequeno grupo que estava na altura de regressar. – Mantenham-se perto uns dos outros e com as armas apostos. Os R’hor estão a acordar.Marta ouviu os soldados afastarem-se e soltou o ar, sentido o coração acelerado devido ao medo e ao cansaço. Esperou, ali agachada, enquanto recuperava da corrida, e sentiu o silêncio da noite, um silêncio caracterizado pelos sons da natureza, a cair sobre si. A ideia de seres monstruosos, negros como a própria noite, de olhos amarelos, garras afiadas e mandibulas sangrentas, a acordarem ao seu redor não permitia que a jovem fosse capaz de relaxar um pouco que fosse. Estava sozinha, num bosque desconhecido e frio, onde a escuridão parecia criar formas sobrenaturais. Envolvendo os joelhos com os braços, a jovem desejou estar em casa, protegida no seio familiar, ao abrigo daquele tempo, daqueles monstros e daquele povo passado dos carretes. Não foi capaz de evitar que lágrimas se manifestassem, num misto de desespero e esperança, sentimentos que entravam em conflito dentro de si. Por um lado, a razão dizia-lhe que o quadro era negro, com ou sem animais perigosos, a noite estava gelada e o dia seguinte prometia outra perseguição; por outro, ouvia a voz do feio Páris assegurando-a de que a chama interna era capaz de iluminar o mais escuro dos caminhos, isto é, explicara ele atrás das grades apenas algumas horas antes, se acreditarmos, seremos capazes de tudo.- Menina! Oh, menina!Encolhida na terra, perdida nas recordações daquela dupla gigante e estranha, teve a sensação de ouvir a voz sussurrada de Páris.- Menina Marta, co’ a breca! A jovem mulher levantou a cara, não estava a imaginar, ele estava mesmo ali. Os seus olhos de humana tentaram distinguir a sua forma entre a escuridão, sem sucesso.- Páris? Não vejo nada.- Efectivamente, com esta escuridão queria o quê?O homem saiu de trás do enorme pedregulho e Marta foi capaz de distinguir o seu vulto desajeitado aproximar-se, com a mão esticada a fim de apalpar o terreno. Aliviada, saltou do meio dos arbustos e aninhou-se entre os braços finos do seu amigo, sentindo-se segura por ele estar ali.- Ah! Pronto, pronto, menina. Temos de nos despachar a encontrar um refúgio, antes que eles nos encontrem a nós.Com “eles”, Páris referia-se aos R’hor, os monstros da noite que ninguém realmente vira. A humana duvidava da existência de tal seres, todavia, o receio estampado na cara dos habitantes de Somo, a cidade onde vivia Páris, sempre que aquele nome vinha à baila não lhe incitava o desejo de descobrir até que ponto essa história era verdadeira.Caminharam de mãos dadas, o homem sempre à sua frente, guiando-a por caminhos que nem o próprio conhecia durante a noite. Não muito longe de Somo encontrava-se o antigo refúgio dos viajantes, uma série de cabanas abandonadas depois da grande tempestade. Não tinham grande aspecto, pois desistiram da sua reconstrução quando fora decidido construir uma outra estalagem para os que viajavam entre as cidades Somo e Omos, as cidades gémeas. As cabanas ficavam dentro de um declive depois do bosque, motivo porque não foram reconstruídas depois daquele temporal que durara um mês; eram comuns as inundações. Andavam a fugir de Somo há um dia, embora sem rumo certo não deviam estar muito longe das cabanas. Nenhuma estalagem entre as cidades gémeas ficava demasiado afastada, já que era imprescindível refúgio da noite. Portanto, independentemente da direcção que fossem, existiria um lugar de descanso. Páris atreveu-se a parar e olhou para cima, para o céu estrelado. Se ao menos Helena ali estivesse, ela conseguiria ler o caminho naqueles pontos brilhantes, como se formassem um mapa claro e exacto. Aquela cabeça deslumbrante procurou ensinar-lhe os segredos da natureza uma e outra vez, mas o homem perdia-se na contemplação de tal beleza, descorando os ensinamentos da sua amante. Esforçando-se para colocar de lado a imagem da mulher, Páris concentrou-se nas suas palavras sobre a navegação através das estrelas. Não era assim muito difícil; não podia ser.
- Se encontrares a cabeça do alce… mesmo ao lado da rainha, vês? Se a encontrares e seguires o seu olhar, irás dar com aquele grupo muito próximo de estrelas. Vem-me sempre a ideia de estarem a combinar algo secreto, estas estrelas confidentes. – Helena riu timidamente, vulnerável ao partilhar os seus pensamentos.- Estão a comentar a tua beleza, divididas entre a inveja e a admiração.- Páris! – Agora riu mais, ao mesmo tempo que apertava o braço daquele que raptara o seu coração. Depois, continuou: - Bem debaixo destas estrelas confidentes, fica a antiga estalagem dos viajantes, situada numa depressão. Os antigos, muito antes do surgimento dos R’hor, seguiam estes pontos no céu para lá chegarem. Claro que, com a chegada dos monstros, deixámos de nos interessar pelo maravilhoso mapa astral. Há antigos textos que referem a importância das estrelas noutras áreas para além da orientação geográfica, como previsões do tempo, influência nos mares, na terra e nas próprias pessoas!- Tu e os teus papéis e documentos velhos. A única estrela que me interessa é aquela que vai abençoar a nossa união.
Uma união que nunca aconteceu. A bela Helena partira para Omos, onde viviam os pais, amigos íntimos do rei Menelau. Desde então que não sabia nada sobre a alta e graciosa senhora do seu amor, tendo desistido de a contactar ao perceber que esta não o desejava. Agora olhava o céu escuro e decorado pelos únicos brilhantes dignos de enfeitarem o cabelo dourado de Helena, à procura das marcas que lhe indicariam o caminho.- O que se passa? – Perguntou Marta, surpreendida com a atenção singular do seu companheiro.- Procura a cabeça de alce.- Desculpa?- Nas estrelas! Procura as estrelas que formam a cabeça de um alce. Apesar de confusa, ela assim o fez. Não tinha tempo nem ânimo para questionar as atitudes estranhas do seu amigo.- Ali! Está ali o alce!Páris semicerrou os olhos seguindo a direcção para onde a pequena a seu lado apontava. Viu-se frustrado por não distinguir qualquer forma.- Raios, menina! Não vejo nada! Enfim, segue o olhar do alce até encontrares um pequeno conjunto de estrelas, como se estivessem reunidas a combinar alguma coisa.- Sim, estão ali. - Óptimo! É para lá que temos de seguir.Com um aceno que Páris não reparou, Marta voltou a pegar-lhe a mão enorme e, desta vez, foi ela a indicar o caminho, sempre atenta ao céu, enquanto o outro procurava ampará-la quando tropeçava ou não reparava nas árvores à volta. Não demoraram muito até encontrarem a tal depressão. As cabanas estavam em pior estado que o homem ao início julgara: com a madeira apodrecida e vários buracos que deixavam entrar o frio e a chuva. No entanto, era melhor do que nada. Páris colocou algumas tábuas no chão, criando uma separação entre eles e o chão húmido e pegajoso. Desejava ter alguns cobertores e almofadas a fim de tornar a noite mais confortável, todavia, isso era um luxo que lhes fora negado ao decidirem fugir da prisão de Somo. O gigante pele e osso aninhou aquela minúscula humana em si, gestos que outrora poderiam tê-la deixada incomodada. Aconchegada o melhor possível nos seus braços, a jovem relembrou a atitude altruísta e fiel que ele lhe mostrara dois dias antes. Desde que a ameaça caíra sobre ela, a dupla que lhe destruíra os canos da cozinha saltou em sua defesa sem um pingo de hesitação. Páris e Golias foram, assim, também eles condenados a prisão. Golias. Pobre Golias! A última vez que o vira era arrastado por outros guerreiros gigantes e musculados. A força daquele homem era demasiada para o estabelecimento prisional da cidade de Somo, sendo, então, levado até ao exílio. Marta, recebendo o calor do corpo de Páris, voltou a ver as lágrimas furiosas deste aquando a sentença do amigo e companheiro de longa data.- Páris… - chamou na noite fria.- Sim, menina?- O que aconteceu a Golias? Houve um momento de silêncio, o que levou Marta a fitar as faces cadavéricas do companheiro. Apesar da escuridão, a sua visão já se adaptara o suficiente para a permitir reparar na dura máscara que o transformava assustadoramente. Apenas vira aquele outro homem uma única vez, no decorrer de uma discussão antiga que a recém-chegada era incapaz de perceber. Abriu a boca para pedir desculpa e assegurar-lhe que não era necessário responder, quando Páris falou.- O exílio fica para lá de Omos. Sinceramente, não faço ideia da sua localização, muito menos o que é em concreto o exílio. – Suspirou para cima da jovem humana sem se preocupar, enquanto vasculhava na memória algo que explicasse a necessidade do exílio. – Hm. É preciso cometer algo terrível para tal sentença. Ao defendermos-te, nós traímos o nosso rei, logo, o nosso povo. Nem mesmo os soldados gostam de lá ir, recorrendo às prisões das cidades o máximo possível. Quando há um crime grave, as prisões de Omos são as mais indicadas, pois, efectivamente, a cidade onde pertencemos é pequena e a prisão não passa de um pobre edifício onde os prisioneiros têm aulas de correcção. Ora, Golias, efectivamente, não se manteria fechado em lado nenhum. Ele é um gigante entre nós, possuidor de uma força incrível!- Sim. Estranhei ele ser tão diferente dos outros. Todos vocês são pequenos gigantes em relação a mim, e Golias é monumental.Páris sorriu, encostou Marta ao seu peito e acariciou a sua cabeleira abundante, lastimavelmente suja aos olhos da rapariga, ao mesmo tempo que comentava:- A menina é que me saiu uma bela pequena gigante. Esse coração é maior do que muitos de nós.Marta sorriu, grata por tal carinho honesto e inocente.- Enfim, comigo certamente que me iriam colocar nessas aulas de correcção. Nem todos saem de lá, mas aos que são restituídos a liberdade, vêm com uma forma de estar, de facto, deveras diferente. Muitos tornam-se parte da equipa de soldados.- Isso soa-me a lavagem cerebral.- Talvez. Têm medo do grandalhão, sabes? Por isso o prenderam daquela forma, acorrentado como se se tratasse de um R’hor, e o levaram para longe.- Temos de o ir buscar, Páris. – O sussurro atraiçoava a coragem em tais palavras, revelando medo e dúvida.- Shh. Agora, menina, temos é de sobreviver à noite. Vá, tente dormir. Eu estou aqui.Pouco depois, já o cansaço saíra vitorioso sobre o medo e o estado de alerta, um resfolgar acordou-os. Algo se movia mesmo atrás da parede que mal os protegia do frio e dos perigos exteriores. Não foram necessárias palavras, Páris moveu-se para a frente da humana que protegia e fez-lhe sinal para que ficasse em silêncio. Ouviram uma respiração intensa, como se um cão – um cão enorme e barulhento – farejasse o chão lamacento. A criatura soltou um gemido curto, comunicando aos outros que tinha apanhado algum cheiro, pois ouviram mais narizes farejadores, mais passos, e até, curiosamente, um tilintar de metal. Os dois fugitivos estavam de pé, encostados à parede de trás, atentos ao buraco que fazia de porta, numa espera assustada para que as criaturas surgissem.Uma bola de pêlo com olhos amarelos e rasgados entrou, apoiado nas duas patas de trás, as da frente penduradas à sua frente a revelarem as garras afiadas. Desta vez não soltava um gemido, e sim um rugido alto e digno das histórias de terror contadas entre o povo. Logo, duas criaturas semelhantes entraram de rompante, soltando rugidos excitados pela descoberta da refeição. Tal espectáculo invadiu-os de terror e, em vão, afastaram-se ainda mais do buraco por onde os monstros haviam entrado.- Os R’hor!Páris soava mais espantado do que receoso. Marta julgou que o homem, até certo ponto, duvidava das próprias histórias que costumava contar. Alguns momentos passaram, acompanhados pelas vozes enervantes dos monstros, e a jovem percebeu que eles não os atacavam. Estavam apenas ali, mantendo-se de pés, maiores que Páris, a gritar. De um momento para o outro, surgiu entre eles um vulto encapuzado. Parecia minúsculo entre aquelas criaturas monstruosas; vendo bem, não devia ser muito maior do que Marta. A rapariga apertou a mão do companheiro, com a curiosidade a sobrepor-se ao temor da morte que experimentara segundos antes. A figura retirou o capuz para trás e sorriu:- Está aqui! Encontrei-a!Ouviram outros passos apressados e num instante, Marta e Páris estavam rodeados por R’hor e… humanos.     


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Published on April 07, 2014 11:07
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