Memórias de um Escritor em Construção

Young _Jovem_Roberto Denser_Criança Na foto, aos 6 anos. Já apaixonado pela leitura.

Estudei o primário na Escola Municipal Machado de Assis, no bairro do Tibiri II, em Santa Rita – PB, cidade onde cresci e onde passei quase toda a vida. Na época em que cursei a 4ª série do primário, as aulas eram ministradas por uma professora polivalente (Português, Matemática, Ciências e Estudos Sociais) de quem, por mais que me esforce, não consigo lembrar o nome — apesar de desconfiar que se chamasse Vânia ou algo do tipo —, mas que foi responsável por uma das experiências mais marcantes de minha vida. Quero falar sobre ela.

Era uma sexta-feira, portanto largávamos às 15h00 em ponto (não sei se as coisas ainda funcionam assim nas sextas-feiras do Machado de Assis), e como não tínhamos nenhuma tarefa de casa, a professora resolveu passar uma redação de no mínimo trinta linhas e com tema livre: “Escrevam sobre qualquer coisa”, disse, “e me tragam na segunda-feira”. A reação comum aos meus colegas de sala foram os resmungos e a insatisfação de ter que escrever o que na época parecia algo monstruoso: “Táááá, tia?! Trinta linhas?!”, reclamavam. Eu, por outro lado, não conseguia imaginar nada melhor para fazer no final de semana e, intimamente, agradecia por ela não ter passado alguns problemas matemáticos enfadonhos. Ora, o que mais eu iria querer fazer nos finais de semana? Não era o tipo de garoto que vivia na rua, tampouco gostava de futebol ou me identificava com os, nas palavras de Vinícius de Moraes, “impávidos colossos do esporte” de minha vizinhança. Não, minhas alternativas eram muito limitadas: reler os gibis da Turma da Mônica que ganhara de minha mãe (Nosso trato era simples: eu comeria toda a comida durante a semana e, aos sábados, ela me presentearia com um gibi), ler os livros infantis que surrupiava da escola (eles não emprestavam, então eu surrupiava e, após algumas leituras e releituras, os devolvia e pegava outros) ou então brincar no quintal com alguns bonecos dos Comandos em Ação.

Logo, escrever uma redação de trinta linhas seria algo muito divertido de se fazer. Assim, após chegar em casa, tomar banho e comer alguma coisa, me sentei diante da mesa com um caderninho de capa mole e algumas canetas Bic com a tampa mastigada, e comecei a escrever. Foi o meu primeiro contato com a página em branco: a encarava como se olhasse nos olhos do meu destino, e percebê-la branca era ser tomado, ao mesmo tempo, por um desejo de vencê-la e um medo de ser vencido por ela. Este anseio ambíguo ainda hoje persiste sempre que me coloco na iminência de trabalhar em um novo texto. Aquele, porém, logo foi tomando forma: era a história de um garoto órfão chamado Rafael que fugia do orfanato para as ruas e começava a se envolver com jovens delinquentes, os chamados cheira-colas — que naquela época me chamavam a atenção e me assustavam bastante, pois minha mãe sempre segurava minha mão com mais força e me puxava mais para perto de si quando estávamos próximos deles —, e acabava procurado e preso pela polícia (em minha cabeça de então, até mesmo uma criança poderia ser presa como se fosse um criminoso comum). Na penitenciária, o jovem Rafael se arrependia de todos os seus delitos e era salvo por Deus que, derrubando os muros de sua cela, o libertava e o perdoava de seus pecados (uma espécie de Deus ex machina inconsciente). Assim, Rafael se transformava num “homem de bem” e voltava aos seus antigos amigos com a missão de fazê-los enxergar a luz e testemunhar a benção com a qual fora privilegiado. Não lembro com exatidão qual era o final, mas lembro-me que se tratava de um final tão feliz que seria capaz de fazer inveja à Cinderela.

O resultado final do meu texto, porém, passava em muito às trinta linhas recomendadas pela professora: trinta e duas páginas do caderninho de capa mole e lombada de mola se encontravam diante de mim. Estava tão orgulhoso de meu trabalho que o reli várias vezes e quis mostrar para todo mundo, mas meus pais não se mostraram muito interessados em minha redação e acabei tendo que esperar ansioso para entregá-la à professora. No outro dia, comprei cartolina, desenhei e pintei uma capa — as grades de uma janela de presídio sendo atravessadas por uma luz dourada —, escrevi o título “O Destino de Rafael” abaixo do meu nome completo, e o encadernei.

Até hoje me divirto tentando imaginar o que se passava em minha cabeça naquela época e o que eu queria dizer com esse título, e tenho cá minhas teorias...

Chegando à segunda-feira, alguns entregaram, emburrados, suas redações (as caligrafias forçadamente inchadas), enquanto outros inventaram mil desculpas pelo fato de não as terem escrito. Acanhado, depositei meu livrinho em cima do birô da professora e disse: “Aqui, tia, minha redação”. Ela me encarou com ar interrogativo, eu confirmei com a cabeça e voltei para o meu lugar. Mal via a hora da correção, mas, para minha infelicidade, ela as levou para corrigir em casa. No outro dia, após eu ter passado por uma péssima noite de sono, ela entregou a redação de todos com um visto escrito em vermelho e acrescido de algum comentário do tipo “bom”, “ótimo”, “muito bem”, etc., mas não entregou a minha. Fiquei preocupado e confuso, mas não comentei nada. Talvez ela ainda não tivesse terminado a leitura, claro, o que era bastante aceitável, uma vez que eu muito extrapolara o limite estabelecido por ela. Quando o alarme tocou anunciando o recreio, porém, ela pediu para que eu ficasse um pouco na sala, pois queria falar comigo. Esperei todos saírem e me dirigi ao seu birô, onde ela me olhou por sobre os óculos e perguntou: “Essa história foi você mesmo quem escreveu?”, olhei e vi meu livreto, ligeiramente amassado em sua mão suja de giz. “Sim, tia”, respondi. “Sozinho? Alguém lhe ajudou?” “Não, tia, ninguém me ajudou”. Inflei o peito, orgulhoso; ela ficou pensativa, sem dizer nada por alguns instantes, e só depois do que pareceu uma boa ponderação, falou: “Nunca deixe de escrever, viu? Se você continuar escrevendo, ainda se tornará um grande escritor. Gostei muito de sua história”. Aquelas palavras explodiram como fogos de artifício em minha mente e tudo o que consegui dizer em resposta foi: “Obrigado, tia”. “De nada”, disse ela, “agora vá lanchar”.

Roberto Denser_WritingAos 16 anos, com minha segunda máquina de escrever, a boa e

velha Olivetti, que ainda conservo em algum lugar do meu escritório.

É impossível explicar a importância que essa experiência teve em minha vida, mas creio que se trata de uma das experiências escolares mais importantes que tive — ao lado do jornalzinho Vírgulas Aéreas, no Ensino Médio, que editei ao lado do velho Toupeira — e pela qual sempre serei grato à professora de quem sequer lembro o nome, mas que, em minhas recordações, se chama Vânia. Talvez tenha sido naquele momento que decidi me tornar escritor, independente dos caminhos que tivesse que trilhar para chegar a isso — do curso incompleto de Letras ao atual curso de Direito, do trabalho como vendedor ambulante de produtos magnéticos, passando pelo de açougueiro e tantos outros —, e, um dia, escrever histórias que, quem sabe, pudessem encantar ou desencantar algumas pessoas que, como eu, jamais conseguiriam passar sem elas.

Hoje me peguei pensando sobre isso. Olho para minha mesa e vejo algumas páginas soltas, não revisadas, de Bernardo (meu primeiro romance), assim como olho para o futuro e vejo os tantos outros livros que escreverei depois dele, então lembro que tudo isso começou lá naquele dia, e que, em parte, devo isso àquela professora a quem, agora, deixo um recado:

Cresci, tia Vânia, mas ainda sou aquela criança magricela e míope que, um dia, a senhora aconselhou a jamais parar de escrever. Não parei, não pararei, mas parafrasearei Pessoa e sempre repetirei: enquanto houver vida, continuarei escrevendo. Muito obrigado, professora. Por tudo. Mesmo.

 

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Published on May 04, 2013 13:00
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