A Rosa Adoecida: Parte II (e novidades)
A Rosa Adoecida Parte IIDurante o início de 2012 escrevi para a Carta Potiguar aquilo que chamei de webfolhetim, que nada mais era que uma versão para internet dos antigos folhetins que eram publicados periodicamente em jornais. Dividi a noveleta em 5 partes, publiquei aos sábados, e foi uma experiência marcante, sobretudo porque muitos leitores queridos acompanharam ansiosos a saga da jovem Adriele, me mandando mensagens elogiosas, críticas e até mesmo algumas intimações para que eu lhes contasse o que diabos aconteceria a seguir.
Acredito que esse reconhecimento seja a coisa mais gratificante para qualquer autor.
De qualquer forma, durante o processo de escrita descobri que não estava nada satisfeito com a história e que em alguma oportunidade futura me dedicaria a reescrevê-la, estendendo-a e modificando sobretudo o precoce e, na minha opinião ridículo, final.
Está perto agora: em breve me sentarei diante da página em branco e retomarei as vozes daquele aspirante a escritor e entregador de jornais, daquela jovem advogada com crises existenciais que decide largar tudo e passar dois anos mochilando pela Europa.
Dessa vez, espero alcançar um resultado satisfatório.
O texto que segue é a segunda parte, das cinco a minha favorita. A novela inteira foi dedicada a minha querida amiga Indi, a quem mando um beijo.
Espero que gostem.
“QUANDO CONVERSAMOS PELA ÚLTIMA VEZ eu estava decidida a acabar com minha vida. Tudo estava planejado: iríamos nos encontrar como quase nunca fazíamos, transar como sempre transávamos quando isso acontecia, conversar como sempre conversávamos após nossas transas, e nos despedir como sempre nos despedíamos após nosso café da manhã improvisado e com sabor de uma intimidade ancestral: um beijo leve no rosto, um abraço apertado, e a promessa de que nos veríamos em breve. Após a despedida, eu iria até o Best Western Premier Majestic, onde estava hospedada, avisaria para não me transferirem nenhuma ligação, pois estava com uma cólica terrível e precisava descansar, me trancaria em minha luxuosa suíte com decoração neoclássica e vista para o Morro do Careca escolhida cuidadosamente para aquela ocasião, me deitaria na cama arrumada com esmero, e injetaria na veia cinquenta mililitros de ar de uma única vez com uma seringa comprada previamente numa farmácia Dia e Noite por seis reais e oitenta e sete centavos. Ar, porque foi a forma mais limpa na qual consegui pensar, e pensei em várias: me atirar da varanda, me enforcar, cortar os pulsos, preparar um coquetel de leite com Racumin, Ratonil, Bromy-L ou outro raticida qualquer, e um pouco de talvez Nescau talvez Nesquik morango talvez pedaços de maçã e banana cujo único objetivo seria dar um pouco de sabor docinho, sabor de infância, de inocência à vida que então se iria. Não sei. E de todas as formas que consegui pensar, a mais conveniente delas me pareceu injetar ar na veia e provocar assim um ataque cardíaco que me retiraria a agonia provocada por não sei quê, e que me tomava a vida.
Foi com o propósito de vê-lo pela última vez que vim aqui, e como não gosto de despedidas, fiz todo o possível para que aquele encontro jamais ganhasse esse tom. Escovei os cabelos, fiz as unhas, vesti minha melhor roupa, meu melhor lingerie, me depilei cuidadosamente para ficar do jeito que, eu sabia, você gostava, usei o creme mais afrodisíaco, pitadas do perfume mais delicado, e comprei uma garrafa de La Linda Malbec na Loja Vinhedos do Midway Mall por que um dia você havia provado e dito que era magnífico e que quando fosse um autor consagrado teria dinheiro suficiente para beber daquele vinho sempre que quisesse. Você, porém, grande observador que sempre foi, deformado por essa vocação que lhe obriga a sê-lo, percebeu cada detalhe, do vermelho-sangue do esmalte ao cheiro da nova marca de shampoo que eu havia começado a usar alguns meses antes. E também percebeu que algo não estava bem, que eu, a garota que segundo suas palavras vivia procurando motivos para sorrir, ainda segundo suas palavras sorria apenas com os lábios. Que os olhos, nos quais você costumava dizer que queria se afogar, traziam o brilho desesperado do olhar dos loucos, perdidos e ensimesmados. Foi ao ouvi-lo dizer isso que me dei conta de que pouco antes, enquanto você me penetrava com força e rapidez porque assim o meu corpo pedira, porque logo eu gozaria e você havia percebido isso apenas interpretando o ritmo do meu corpo sem que eu precisasse dizer ou fazer nenhum sinal, ao mesmo tempo em que me olhava nos olhos e eu distinguia neles não apenas prazer e desejo, mas também o amor que você nunca me prometeu e a compreensão que nunca tive de nenhuma outra parte, foi nesse momento em que me dava conta disso que veio a explosão: e joguei meu quadril para frente e meu tronco para trás ao mesmo tempo em que meus braços agarraram tuas costas, puxando teu corpo com força para perto e dentro do meu, e minha vagina teve uma série de contrações e se encheu ainda mais de secreção enquanto as pernas, erguidas para te receber melhor, espasmavam descontroladas do mesmo modo que minha respiração. E espasmava também o meu corpo, e os gemidos que irromperam da minha garganta saíam sem que eu me desse conta deles, e eu já não te via, e meu corpo já não me pertencia, e meu coração socava o peito num ritmo descompassado e tudo isso não parecia ter fim, pois recomeçava de forma mais ou menos intensa sem nenhum intervalo que me pudesse dar um tempo para pensar a respeito do que estava acontecendo, e eu nunca havia gozado de forma tão intensa e avassaladora, e presa a esse êxtase que parecia não ter fim e que terminaria por me matar, você gozou e eu senti e, mesmo que fosse impossível, puxei você com ainda mais força porque o queria ainda mais dentro de mim. E foi só no momento em que você quedou me abraçando e eu senti seu pênis perder um pouco a rigidez que tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: que eu já não tinha forças pra nada, que minha visão estava turva, embaçada como se eu estivesse em vias de desmaiar, e que estivera chorando durante todo o orgasmo.
Nossos corpos ficaram abraçados por um ou dois minutos, pegajosos de suores, secreções e lágrimas, mas nossas almas estavam longe dali. Não sei bem se isso é verdade ou se você se sentiu da mesma forma, mas foi a impressão que tive naquele momento. Então você se levantou, saiu de mim, esticou-se para a mesa-de-cabeceira, pegou um cigarro, acendeu, deu um trago demorado, deliciando-se talvez com o sabor do cigarro talvez com o seu desempenho na cama, e me ofereceu em seguida. Eu não aceitei. Você continuou fumando em silêncio, depois perguntou o que havia de errado, o que estava acontecendo comigo, por que eu estava triste.
E então você me alojou em seus braços desnudos e eu encostei minha cabeça em seu peito, e enquanto você se distraía amassando o cigarro no cinzeiro sobre a pequena cômoda ao lado da cama, uma lágrima caiu e ficou presa no emaranhado dos seus pelos. Não sei se você percebeu, mas logo em seguida afagou meus cabelos delicadamente e beijou minha cabeça e após alguns segundos de silêncio disse simplesmente que me entendia, e isso foi assustador, foi pior do que qualquer coisa que eu poderia esperar, foi como o golpe imprevisto da faca de Brutus no peito de César. E então não me contive, e as lágrimas acumuladas durante tanto tempo voltaram a jorrar dos meus olhos como se uma represa tivesse rompido dentro deles, e você me abraçou com mais força, e me beijou com mais carinho, e tentou limpar minhas lágrimas com a mão livre pacientemente enquanto eu desviava meu rosto do seu, meus olhos dos seus, ao mesmo tempo em que não queria te largar. E foi esse abraço nervoso que aos poucos me acalmou, e eu te falei que não sabia, que minha vida não era ruim, que eu era jovem bonita saudável e bem sucedida, que havia conseguido conquistar tudo aquilo que me propus, do domínio de três idiomas à carreira jurídica bem sucedida, que tinha dinheiro e uma mãe maravilhosa que me amava incondicionalmente e que não era apenas mãe, mas também amiga e cúmplice, e que além dela tinha outras amigas que também não eram apenas amigas, mas irmãs com as quais podia não apenas curtir, mas também contar. Tinha tudo pelo que a maioria das pessoas luta, mas era tão infeliz e vazia quanto, achava, alguém que não tinha nada. Então você ergueu sua espada sempre tão afiada e certeira e aplicou o golpe impiedoso que mudou a minha vida para sempre: Você disse ‘Van Gogh’, eu perguntei ‘O quê?’, e você repetiu: ‘Van Gogh’. E acrescentou logo em seguida que era preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente, e voltou a repetir Van Gogh e me contou a história do grande pintor neerlandês e me falou sobre suas cartas. E disse ainda que eu me encontrava numa zona de conforto, e que eu precisava de sofrimentos reais e de uma vida que fosse sobretudo minha, que a melhor coisa para uma pessoa na minha situação seria não ter um amanhã de modo que eu pudesse viver o hoje sem pretensões com o futuro, que eu era uma prisioneira, que precisava ganhar e gritar minha liberdade do púlpito mais alto que conseguisse encontrar, gritar, gritar, gritar, para que todos pudessem ouvir, para que não restassem dúvidas, que a partir do momento que eu vivesse minha vida sinceramente e fosse verdadeiramente livre eu talvez, e só talvez, compreendesse que a felicidade não passa de um mito, mas mesmo assim podemos viver com tranquilidade ou satisfação ou qualquer coisa que torne nossas horas mais suportáveis. ‘Lenitivos’, disse você, ‘pois que uma cura não há’, e me falou em tom de desafio que eu deveria largar tudo o que tinha, pegar todo o dinheiro que estava economizando desde que terminara a faculdade para comprar um apartamento com vista pro mar, colocar uma mochila nas costas e viajar pela Europa. Eu perguntei incrédula o que você estava sugerindo e você sorrindo disse ‘Eu sei, falo da Europa por causa do meu romantismo incorrigível, mas pode ser qualquer lugar, de preferência um de língua não apenas estrangeira, mas também estranha, no meu caso escolheria a Europa ou a Ásia. Mais precisamente a Índia’. E eu perguntei de novo o quê e você pareceu não ouvir, pois continuou falando sobre o quanto era importante que eu fizesse isso sozinha e sem planejar meus passos de modo que pudesse aceitar todas as coisas que se pusessem em meu caminho. E eu questionava incrédula e no fundo já cogitava a possibilidade e já pensava é mesmo por que não? Eu iria me matar mesmo, não tinha nada a perder, quais os riscos que o mundo poderia oferecer a alguém nessas condições?
E eram esses os pensamentos que saltitavam em minha cabeça quando nos despedimos algumas horas depois: você não aceitando muito bem a ideia de que não dormiríamos juntos, eu respondendo que precisava correr para resolver uma coisa urgente e que tornaríamos a nos falar em breve. Então você disse espere, foi até a estante de livros, pegou um exemplar bastante envelhecido de Cartas a Théo, rabiscou uma dedicatória, e me entregou dizendo que eu só deveria ler quando estivesse longe. ‘A dedicatória?’, perguntei. ‘Sim’, você respondeu e eu disse então tudo bem. E sorri, e você sorriu de volta dizendo ‘Assim tá melhor, bem melhor, um sorriso de verdade.’ E eu fui embora, e por algum motivo não abri o livro até que me encontrasse deitada na poltrona da varanda da suíte do Best Western Premier Majestic, de onde podia ver uma escurecida Ponta Negra, um sombrio Morro do Careca, um mar imperscrutável, e um céu que parecia dizer ‘não tente’ enquanto o vento gelado e salgado da noite, do mar, congelava meu rosto e principalmente meu nariz e minhas orelhas.
E quando abri o livro na folha de rosto dei de cara com sua dedicatória, a dedicatória que não era sua, era, descobri mais tarde, do Van Gogh, mas que mesmo sendo dele era sua, tão sua que pude ouvi-lo dizendo ‘Ache belo tudo o que puder, a maioria das pessoas não acha belo o suficiente.’
E eu fechei o livro e fiquei na varanda fumando e pensando sobre aquelas palavras, e foi naquele momento, só naquele momento, que eu decidi: faria exatamente o que você me aconselhou.”
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