A Garota que lia Clarice Lispector demais¹ #4
NOTA:A crônica a seguir foi escrita e publicada originalmente em 2010. Depois de uma pequena repercussão positiva aqui no blog, recebi a proposta para publicá-la no Contraponto (periódico local) e também numa antologia bilíngue, publicada nos Estados Unidos no ano passado, com tradução de Rafa Lombardino. Decidi repostá-la por aqui, apesar de ter perdido um pouco, só um pouco, de sua atualidade (lembrem-se que 2010 foi o auge da onda Crepúsculo).
Os que tiverem interesse em adquirir o livro com sua versão em inglês, poderão comprá-lo na página da Amazon. Lembro, contudo, que se trata de uma obra de autoria coletiva, como o próprio título deixa claro: Contemporary Brazilian Short Stories.
No mais, boa leitura.
Estava no ponto de ônibus da universidade, e para passar o tempo relia o livro Entrevista com o Vampiro, da Anne Rice. Relia porque o li pela primeira vez em meados do ano 2000, e porque estava disposto a ler toda sua obra, de quem só conhecia, até então, o referido livro.
Como eu ia dizendo, estava lá, cara enfiada na trágica aventura de Louis e Babette, quando uma garota parou ao meu lado e me desejou bom dia. Retribuí o cumprimento e observei que ela segurava o livro A Paixão Segundo G.H., de minha querida Clarice Lispector. Resolvi puxar assunto:
— Ah, Clarice Lispector! Legal. Já fui leitor assíduo da Clarice, mas hoje em dia tenho lido bem menos, quase nada para falar a verdade.
Ela sorriu.
— Bem menos por quê?
Dei de ombros.
— Sei lá, devo ter enjoado. Talvez seja apenas uma fase, provavelmente voltarei a ler mais depois de um tempo.
Ela assentiu, depois olhou para a capa do meu livro e perguntou:
— E o que você tá lendo?
— Entrevista com o Vampiro — respondi.
Ela ergueu as sobrancelhas numa expressão de quem acaba de confirmar uma conclusão a qual já havia chegado.
— Ah, é, a modinha dos vampiros…
A princípio, apenas franzi o cenho. Depois, ao constatar que o tom de desprezo com o qual enunciara a frase não fora apenas uma impressão, sorri, educado.
— Exato. Modinha.
A mudança foi instantânea, ela assumiu um ar de superioridade, inflou os pulmões e declarou, soberba:
— Isso, para mim, é subliteratura.
Olhei para o outro lado e vi que meu ônibus estava se aproximando. Não perdi tempo:
— Subliteratura, né? Engraçado. Essa não era a opinião da Clarice, afinal de contas, quem traduziu ESTE livro foi ela — E, abrindo-o, mostrei a folha de rosto, onde se lia: “Tradução de Clarice Lispector” — Não é o máximo?
A garota não respondeu, apenas olhou boquiaberta para a página do livro, como se tentasse entender o que o nome da sua deidade literária estava fazendo escrito naquela obra de “subliteratura”. O ônibus parou.
— Bem, tenho que ir. Boa leitura.
E, sempre com um sorriso, subi no ônibus levando comigo uma maravilhosa sensação de xeque-mate. Ou touché, caso prefiram.
A moral da história é aquela de sempre: antes de criticar, não custa nada se informar um pouco a respeito.
O título desse post é baseado no título do filme O Homem que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock.
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