Eu TAMBÉM vi a criatura #3
Já faz alguns meses: sonhei que uma criatura pálida, nua, sem pelo algum no corpo, agachada ao lado de uma muralha no meio de um deserto, comia o seu próprio coração e cantava. Seu canto, na verdade, estava mais para um choro, um lamento ou... um choro cantado, creio que isso defina melhor. Ao final do sonho — numa dessas transições sem nenhum nexo causal que se possa notar —, eu me encontrava numa roda de amigos e uma das presentes, ao que tudo indicava nossa anfitriã, falava acerca da criatura, revelando que se tratava de um projeto experimental de um jovem artista, que queria testar a reação das pessoas diante de uma cena tão, digamos, bizarra. “Tudo aquilo era maquiagem e interpretação”, dizia, e concluía com a notícia de que a experiência não dera certo, pois um dia um sujeito armado, ao se ver diante da “abominável criatura”, puxou um revólver e descarregou-lhe alguns tiros no peito.
Até aí tudo bem, foi apenas um sonho.
Ocorre que, semana passada, comecei a ler Four past midnight, do Stephen King, um livro que reúne quatro novelas, incluindo Secret Window, Secret Garden, que deu origem ao filme estrelado por Johnny Depp, e que todos conhecem bem. Seria apenas uma leitura como qualquer outra, não fosse o seguinte detalhe, a epígrafe do livro:
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Aqui vai uma traição minha (traduzir poesia é sempre traição):
No deserto¹
(Stephen Crane)
No deserto
eu vi uma criatura, nua, bestial
que, de cócoras no chão,
segurava nas mãos seu coração
e o comia.
Eu disse, “Isso é bom, amigo?”
“Isso é amargo — amargo,” ela respondeu;
“Mas eu gosto disso
porque é amargo
e porque é meu coração.”
Assustador, não? Vocês também notaram a semelhança entre o poema e meu sonho? Eu não o conhecia, tampouco havia ouvido falar de Stephen Crane, que só conheci graças a isso. Quando o li, naturalmente fiquei todo arrepiado com a — sombria — coincidência, depois fui procurar outros poemas de Crane. Gostei de quase todos, mas permaneço intrigado.
O livro de King, por sua vez, é excelente. Taí um autor que descobri muito cedo — o primeiro dele, Pet Sematary, li aos 14 anos —, mas que certamente lerei enquanto tiver algo disponível. Sorte minha que o mestre seja tão prolífico.
Minha, e de todos os seus leitores.
¹ Tradução Roberto Denser, 2013.
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