O Reformatório Nickel

Livro de Colson Whitehead, 2019 + Filme de Ramell Ross, 2024, EUA

Em 2011, o reformatório para jovens Dozier, no estado da Florida, foi desativado, após cento e onze anos de funcionamento. Denúncia de abusos, torturas físicas e psicológicas ao longo de quase toda sua história decretaram, finalmente, o fechamento. Corpos mutilados, baleados, com sinais de desnutrição foram encontrados por pesquisadores forenses em um cemitério improvisado no próprio terreno da instituição, e outros em covas clandestinas fora desse cemitério.

A maioria desses abusos e mortes aconteceram nos anos 1960, no auge da era Jim Crow, quando se exacerbou a luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos causando uma forte reação dos racistas, principalmente nos estados sulinos.

A notícia do escândalo em Dozier inspirou Colson Whitehead a escrever um romance sobre a amizade entre dois internos negros de personalidades e antecedentes muito diferentes.  Elwood é inspirado pelos discursos de Martin Luther King que ouvia quase diariamente de um disco de sua avó, antes de ser preso. Turner é um cético, um sobrevivente desde sua mais tenra infância.

A escrita de Whitehead é áspera, seca, de frases curtas e sem enfeites, como era a vida daqueles personagens naquela época e lugar. E mesmo assim é uma escrita cativante, que impacta emocionalmente, como foram impactadas todas as vidas que passaram naquele “reformatório”, como impacta a revelação que lugares como esses existem. O romance faturou o prêmio Pulitzer em 2020.

Impactado ficou também o cineasta Ramell Ross, ex-jogador de basquete que teve que abandonar a carreira prematuramente em função de várias lesões. Inicialmente migrou para a fotografia, mas um documentário seu, Hale County, This Morning This Evening, vencedor de Sundance e nomeado ao Oscar, alçou-o definitivamente para o cinema. Estreou na ficção com a adaptação do livro de Whitehead. Filme que também teve duas indicações ao Oscar de 2025: Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme, embora não tenha sido premiado em nenhuma delas.

O filme é ousado no uso da linguagem audiovisual, porém difícil. O trabalho de câmera se amalgama com o trabalho de ator, representando o protagonista. A primeira parte é filmada toda como ponto de vista de Elwood. O espectador vê o que os olhos dele enxergam, ou o que ele sonha. Conseguimos ver seu rosto muito pouco, através de um reflexo no ferro de passar roupa, ou no retrovisor do carro em que pega carona rumo ao seu destino trágico.

Assim que encontra Turner, no refeitório do reformatório Nickel, a câmera divide-se em representar o ponto de vista dos dois. Através das câmeras subjetivas de ambos, conseguimos enxergar mais os protagonistas, um através do olhar do outro. Uma forma interessante de falar sobre amizade.

O filme é também rodado em uma janela quase quadrada, como dos antigos aparelhos de TV. E a narrativa acaba sendo muito fragmentada, despertando mais dúvidas do que entendimentos. O curioso é que para conseguir desfrutar plenamente da estética ousada do filme, é melhor ter lido o romance antes.

Com o conhecimento da trama e dos personagens, o espectador fica livre para apreciar os artifícios fílmicos, sem ficar se perguntando se entendeu bem o que aconteceu na cena.  E consegue se impactar da qualidade artística do discurso audiovisual de Ross. Nesse caso, a subjetividade da câmera nos aproxima dos personagens, em vez de nos afastar.

O nome original de ambas as obras é Nickel Boys, os garotos Nickel, muito mais apropriado do que o título em português, já que nenhuma delas é sobre o reformatório e sim sobre dois adolescentes negros na América racista dos anos 1960. O trocadilho do nome da instituição com a moeda de 5 centavos é explicitado no livro, mostrando o quanto valia a vida do jovem que ali ingressava.

O filme pode ser visto na Amazon Prime Vídeo. Antes, porém, leia o romance publicado pela Harper Collins, você não vai se arrepender.

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Published on April 17, 2025 06:28
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