Paus

A gente conversava sobre fúria. Sobre ódio mesmo. Ele chegava e dizia que não valia a pena odiar qualquer coisa. É muita energia, muita força para desperdiçar com mesquinharias. Daí criticava quem odiava o novo layout de uma rede social, odiava o sabor de um doce ou de uma fruta. Odiar a chuva? Bobagem, é inevitável e fundamental. Odiar o Sol? Estupidez, ele está lá indiferente ao ódio. Odiar uma viagem? Que imbecilidade, ela pode ser evitada ou apreciada, inútil odiá-la; ela já está a acontecer.

A gente conversava sobre ódio e ele ia desfiando os motivos pelos quais a gente não deveria odiar as coisas pequenas, aquelas que não são possíveis de serem mudadas ou que são apenas resumo do nosso ego; “o ódio é a redução do ego magoado”, dizia ele. E emendava no que valia a pena odiar, segundo ele. Claro que cada um podia escolher algo diferente, o ódio é pessoal, mas ele enfatizava que deveria ser algo ligado a um valor maior.

O ódio, dizia ele, era para ser motor. Motor de transformação e revolução. Revolução de voltas, de RPM, de rodar o mundo. O ódio tinha que ser uma canga para puxar em direção a uma ideia, para cavar o solo e plantar bons frutos, para carregar boas pessoas para bons lugares, para levar os bons frutos para quem precisa. O ódio precisa de uma causa.

Daí essa fúria tinha que ser bem estudadinha, bem decantada. Como nitroglicerina, deveria mover muito e rapidamente com pouco. Pouco porque foi bem trabalhada. Bem trabalhada porque não era mesquinha. Porque há causas e causas; há aquelas que movem o mundo e há aquelas que fazem o mundo continuar sendo o que é. Para essas causas, basta a frieza da indiferença.

Além disso, ódio mesquinho, das coisas impensadas, faz você colocar outras coisas na carroça. Ideias que não são suas, pessoas que você não sabe se são boas. O solo deixa de ser arado e passa a ser queimado, carcomido. Não dá mais frutos. O ódio mesquinho faz a gente se perder nos detalhes e se rasgar enquanto o rio passa e carrega as tragédias do seu lado. Te faz arrancar os olhos e os teus filhos passam a lutar entre si. Nem enterrar os teus queridos tu consegues, porque ficas a odiar o pequeno, o ínfimo, o que não foi decantado.

Ele contava e a gente pensava: “Que papo mais moralista. Quer dizer que tem um ‘certo’ e um ‘errado’ para o que queremos fazer na vida?” Ele dizia que sim. Mas não é um ‘certo’ místico ou um certo ‘moralista’. É uma certa Moral. É pensar para o todo. A Moral é exógena, afinal de contas. É o que o coletivo precisa para funcionar bem, harmonicamente. E a Moral corrente, quando deixa de atender à sociedade, precisa ser mudada, ser moldada na força do ódio. Quase que literalmente.

“Quer dizer que o ódio é uma força que deve ser usada para mudar os valores morais?” Aí ele falava, tranquilamente: “Sim. É para isso que ele serve. Odeio a exclusão, a disparidade social, a injustiça, a falta de abrigo a quem precisa, a falta de futuro, a remoção da voz, a remoção do pensamento. Esses são meus ódios. E os seus?”

A gente conversava sobre fúria e mal abria a boca. Nos entendíamos de olhos abertos, braços entrelaçados, nus e suados. E planejávamos o fim do mundo como quem arava um campo fértil.

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Published on November 07, 2020 05:17
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A casa do Zander

Zander Catta Preta
Pensamentos esparsos de uma mente desconexa
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