Um abra��o em escuta

Photo by Bruce Francis Cole, courtesy of Sundance Institute.
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O primeiro plano, em contra luz e demorado, enuncia a ��rea de chegadas de um aeroporto, seus sons e imagens s��o por demais conhecidos. Por aqueles que chegam a um lugar, partindo de outro. Esse micro-lugar retratado no filme Farewell Amor, que �� das chegadas e partidas de um aeroporto, a representa����o ��ltima da ���liquidez do mundo��� de que nos falava Zigmund Bauman: o mundo da imprevisibilidade e da incerteza, a constante partida e a constante chegada.
A hist��ria recente de Angola �� uma hist��ria de longas guerras e desloca����es. Depois de catorze anos de uma guerra anti-colonial contra o regime do Estado Novo em Portugal, caiu numa guerra civil que correu de 1975 at�� 2002. O conflito civil atrasou a entrada no comboio do futuro. A assinatura da paz deu-se no ano de 2002 com os acordos de Luena. Quem escapou para o ���exterior���, antes da paz, acabou por funcionar como antenas do mundo em permanente movimento. Muitos desses angolanos e angolanas acabaram por exportar aquilo que tinham �� m��o – a dan��a, a m��sica e espiritualidades v��rias. A di��spora angolana funcionou como cola para utopias e futuros at�� ao calar das armas. A lenta consolida����o democr��tica continuam a adiar o sarar de feridas do passado.
No mundo a presen��a angolana est�� capilarmente distribu��da n��o havendo dados fidedignos. As vagas de migra����o deram-se sobretudo devido �� guerra civil durante as d��cadas de 1980 e 1990. Algumas cidades europeias como Roterd��o, Paris, Lisboa t��m muitos angolanos. Nos Estados Unidos da Am��rica a cidade de Houston tem uma forte comunidade ligada �� ind��stria petrol��fera. A di��spora angolana nos Estados Unidos da Am��rica est�� estimada em sete mil residentes. Farewell Amor fala dessas comunidades espalhadas pelo mundo atrav��s da reuni��o de uma fam��lia.
A reuni��o de uma fam��lia, que j�� n��o se via h�� dezassete anos, �� o mote para o filme Farewell Amor, da realizadora Ekwa Msangi, que se estreia na realiza����o de longas metragens. Uma realizadora que �� da Tanz��nia e da Am��rica e que vive na Qu��nia. Rotas e ra��zes que permitiram tra��ar este gui��o que acompanha tr��s membros de uma fam��lia.
A narrativa em altern��ncia segue as viv��ncias desse reencontro familiar na cidade de Nova Iorque. Os gestos e discursos de Walter, o pai, Esther, a m��e e Sylvia, a filha. Esta trindade ser�� o mote para discutirmos a mem��ria, o trauma e a m��sica e a dan��a como compet��ncias capazes de curar, mas tamb��m de projetar imagens, afetos t��o desconhecidos, as formas de que se reveste a angolanidade.
Walter partiu �� frente por causa da guerra. �� taxista numa cidade estere��tipo da grande metr��pole, ao mesmo tempo do sonho americano, mas tamb��m daquilo que se entende por modernidade. As di��sporas e desejos de muitas pessoas terminam e come��am em Nova Iorque. Ao longo do filme percebe-se que Walter est�� desconfort��vel com o reencontro. Afinal teve de refazer a sua vida. Encontrar novas sociabilidades, novas amantes. At�� aprendeu a cozinhar de forma saud��vel. Integrou-se nas rotinas da pen��nsula de Manhattan, lugar de filmes e fic����es. E claro, as pausas para dan��ar semba e kizomba na discoteca. O novo mil��nio assistiu �� explos��o e expans��o da circula����o destas dan��as angolanas um pouco por todo o mundo. Os Estados Unidos n��o foram excep����o. Muitos at�� come��aram a enquadrar a kizomba naquilo que nas pistas de dan��a se escutava como ���african tango���. A poderosa m��quina da sensualidade que estas dan��as angolanas conseguem vender numa altura de grande individualismo.
Para Walter a dan��a e a m��sica atua como ritual de liga����o �� terra atrav��s das letras de Bonga, Carlos Lamartine e Eddy Tussa. As passadas da vida feitas desejo, no entra e sai da pista de dan��a de um bar. A dan��a como lugar para mostrar o corpo em p��blico, ao mesmo tempo processar as emo����es privadas daquilo que Marc Aug�� chama de ���n��o-lugar���. A ideia de que aquele lugar chamado Angola nunca se consumar�� em Nova Iorque, ao mesmo tempo aquele n��o-lugar de Angola, na Am��rica do Norte, nunca se poder�� apagar. Porque as mem��rias s��o feitas de sil��ncios e esconderijos. Walter tenta apagar o rasto do segundo amor, ���a outra��� na voz de Matias Dam��sio. As roupas da mulher que entretanto aprendeu a amar, o colar no peito, igual ao da filha Sylvia.
Esther come��a a intuir o que se est�� a passar. A sua vida foi feita de espera e projec����o. Espera de voltar a ter Walter nos seus bra��os, a projec����o de um futuro melhor para a fam��lia. Afinal, a dist��ncia acaba por fazer mossa. A guerra deixou as suas marcas. A incerteza transforma prioridades. E a f�� pode ser o porto seguro. Enquanto que a dan��a e a m��sica seguravam Walter, Esther foi-se aproximando do divino. Foi diluindo os seus sonhos em pequenas moralidades, n��o beber ��lcool, n��o querer dan��ar, n��o deixar a filha Sylvia perseguir os seus sonhos.
A Sylvia quer estudar, mas tamb��m quer dan��ar kuduro. Mostrar-se no liceu em Nova Iorque. As angolanas levam isso na bagagem: performatividades capazes de trazer duas coisas importantes, afirma����o e vaidade. E o kuduro tem o poder de transformar imagens. At�� quando Sylvia mente e diz que �� filha de diplomatas angolanos em Nova Iorque.
Walter j�� tinha chamado �� aten����o. A cidade dos filmes pode ser um lugar terr��vel para quem �� negro. Ao mesmo tempo pode ser um lugar de possibilidades. Possibilidades perdidas em Angola envolta numa maldi����o de conflitos e guerra, enredada em dilemas: como �� que um pa��s cheio de recursos e riquezas continua votado ao falhan��o?
O filme �� sobre o poder do amor. Do amor e dos afetos. A reuni��o da fam��lia coloca em cena tr��s processos de memorializa����o e trauma. Mas tamb��m de afectos capazes de curar as feridas do passado, o perd��o, capazes de fazer o futuro nos gestos de uma batalha de kuduro. Os desafios, os ���bifes��� de kuduro como imagem de ���guerra��� e paz, mas tamb��m de brincadeira e folia.
Com uma banda sonora muito cuidada, personagens muito bem trabalhados, Farewell Amor reformula a pergunta ���Waatao���? da m��sica do Puto Prata: ���muita drena, nossa Luanda���… enquanto caem as l��grimas da cara de Esther seguindo da pergunta: O que fazemos agora? Walter responde num abra��o e em sil��ncio tenta curar as feridas de muitos anos de traumas e sofrimentos.
Sylvia consegue ganhar o concurso de dan��a e no final a reconcilia����o familiar acontece em torno da mesa e da comida. A di��spora angolana tem com este filme mais um contributo. Um deslocamento que acontece h�� centenas de anos entre a viol��ncia e genoc��dio do tr��fico escravista e a necessidade de fugir da guerra colonial e civil.
A parte coreogr��fica e cin��tica do filme est�� a cargo do grande bailarino e coreografo Manuel Canza, que felizmente acompanho desde o seu in��cio quando ganhou a primeira edi����o do concurso de dan��a Bounce emitido em 2008 na Televis��o P��blica de Angola. A forma como tem estruturado os passos do kuduro e as suas potencialidades t��m neste filme especial destaque. A dan��a tem sido um importante b��lsamo para a altera����o das imagens e pol��ticas dos angolanos e angolanas no mundo.
Os angolanos e angolanos t��m-se constru��do socialmente tamb��m fora de Angola e em di��logo com o mundo. Nessas partidas e chegadas levam uma bagagem do intang��vel, o imaterial: a intui����o, a f��, a dan��a e o olhar triste e profundo da permanente incerteza. E o sorriso como resist��ncia ��ltima de se esconder a tristeza, os infort��nios da vida.
Talvez �� chegada e na partida n��o seja preciso falar muito. Talvez seja preciso escutar em sil��ncio e num abra��o. Um abra��o em escuta.
Andr�� Soares trabalhou como jornalista cultural na r��dio e televis��o e �� actualmente doutorando em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa e no ISCTE-IUL estudando semba como patrim��nio cultural intang��vel em Angola.
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