A seca quando chove

No sul de Angola, para al��m do infind��vel ciclo de seca, a crise humanit��ria cresce por causa de raz��es n��o climatol��gicas.



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Locals working on the reconstruction of a broken water canal in Humpata, Hu��la. Photo by Helder Alicerces Bahu, 2020.






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No passado m��s de Fevereiro de 2020, as autoridades de Ondjiva, na prov��ncia do Cunene, no sul de Angola, divulgaram um aviso p��blico anunciando que a barragem local do Calueque atingira a sua capacidade m��xima, implicando um s��rio risco de inunda����o para as comunidades que vivem ao longo do rio Cunene a jusante. No mesmo m��s, chuvas na vizinha prov��ncia da Hu��la provocaram o transbordo do rio Caculuvar e deixaram isolados 21 mil habitantes da comuna de Humbe, devido aos danos causados ​​na estrada e na ponte que a ligava a Ondjiva.


Apesar desta introdu����o aqu��tica, n��o nos enganemos: a prov��ncia do Cunene, juntamente com as vizinhas Hu��la e Namibe, continua a sofrer um ciclo de seca de longa dura����o que afetou milhares de pessoas desde pelo menos 2012. Estimativas da UNICEF de Julho de 2019 apontam para 2.3 milh��es de pessoas afetadas, incluindo quase 500 mil crian��as menores de cinco anos, e 35% de gado morto. As comunidades mais afetadas t��m sido os pastores locais das ��reas mais remotas dessas prov��ncias, que dependem do acesso recorrente �� ��gua para suas atividades de pastoreio. Al��m do n��mero de mortes de humanos e animais, as not��cias ressaltam outras consequ��ncias do ciclo da seca: fome e inseguran��a alimentar, migra����o for��ada, aumento de surtos de doen��as, abandono escolar, conflito inter��tnico e assim por diante. Subsequentemente, v��rias ONGs e a Igreja Cat��lica exortaram o governo angolano a reconhecer a cat��strofe humanit��ria e declarar o estado de emerg��ncia, a fim de fornecer ajuda imediata e sustentada.


Assentamento em Salinas (Bentiaba, Namibe). Foto de Ruy Blanes, 2013.

Em resposta, ap��s a aprova����o no parlamento de um Plano de Emerg��ncia contra a Seca em Maio de 2019, com um pacote de USD $ 200 milh��es, o governo angolano est�� lentamente a desenvolver uma interven����o hidro-infraestrutural nas prov��ncias do sul, tanto com opera����es de pequena escala ��� por exemplo, reabilitando ou produzindo novos po��os e reservat��rios ��� e projetos de grande escala ��� por exemplo, o sistema de transfer��ncia de ��gua do rio Cunene para a regi��o do Cuamato. (Antes deste investimento, as principais infraestruturas hidrol��gicas e energ��ticas da regi��o eram ainda vest��gios de investimentos feitos no final do per��odo colonial (d��cada 1960) pelas autoridades portuguesas.)


O ���combate �� seca���, como �� frequentemente referido nos media locais, parece, assim, estar a avan��ar.


O sul de Angola �� tradicionalmente uma paisagem ��rida e des��rtica, onde a escassez de ��gua moldou os meios de subsist��ncia das comunidades locais durante s��culos, sem realmente prejudicar sua subsist��ncia. Este foi brilhantemente captado, por exemplo, pelo antrop��logo Ruy Duarte de Carvalho no seu livro Vou L�� Visitar Pastores (1999), onde descreveu como os pastores Kuvale da prov��ncia do Namibe realizavam os seus ciclos de transum��ncia em busca de ��gua entre 3 rios locais (Bero, Curoca, Cunene). Al��m disso, como vimos no par��grafo inicial, a esta����o das chuvas continua a alimentar os rios e os len����is fre��ticos. O que est�� a causar, ent��o, esta crise particularmente aguda neste preciso momento? O governo e os meios de comunica����o locais t��m usado o ���El Ni��o��� como justifica����o principal da situa����o e para enquadrar a resposta governamental como uma rea����o contra um ���fator externo���. No entanto, embora possamos de facto identificar um fen��meno climatol��gico mais abrangente que afetou a ��frica Austral nos ��ltimos anos, tamb��m �� verdade que existe outra ordem de raz��es que explica esta crise ambiental e humanit��ria.


Habitantes locais a desassorear uma chimpaca para consumo do gado e irriga����o, ao lado de uma fazenda. Foto de Helder Alicerces Bahu, 2020.

Em Novembro de 2019, a Amnistia Internacional publicou um relat��rio angustiante sobre a situa����o na regi��o dos Gambos (prov��ncia da Hu��la), onde o desenvolvimento de uma agro-ind��stria e pecu��ria comercial em grande escala patrocinada pelo Estado ocupou at�� dois ter��os (67%) das pastagens comunais locais na regi��o desde o fim da guerra civil em 2002, sem qualquer due process e atroplenado as pr��prias leis ambientais do pa��s. Este desenvolvimento provocou uma redu����o dr��stica das fontes de ��gua acess��veis para os pastores locais, levando-os a uma maior inseguran��a alimentar em tempos de seca. Mais especificamente, empurrou-os a vender suas vacas por pre��os m��nimos, a recorrer �� ingest��o de folhas silvestres (lombi), a queimar lenha para vender como carv��o a dezenas de quil��metros de suas casas. Os media locais tamb��m noticiaram casos de viol��ncia entre comunidades pastoris devido �� disputa por aqueles poucos recursos h��dricos dispon��veis. Nessa perspetiva, a seca decorre tanto de um ciclo clim��tico como da crescente neoliberaliza����o da paisagem rural no sul do pa��s.


Este tipo de desapropria����o n��o �� exclusivo dos Gambos: no Cunene, um conflito eclodiu em 2015, depois de o projeto agroindustrial ���Horizonte 2020��� ter sido autorizado a ocupar um per��metro de 85 ha nos munic��pios de Curoca e Ombadja, que usurpou as terras ancestrais e respetivos recursos ambientais. Em resposta, as comunidades locais mobilizaram-se e confrontaram os trabalhadores, colocando-se no caminho dos tratores, mas sem sucesso.


Este tipo de conflitos sobre o deslocamento da popula����o e acesso �� ��gua tem uma longa hist��ria. Como observaram v��rios historiadores, desde o final dos anos 1800, quando o Estado portugu��s ensaiava uma explora����o eficaz e em larga escala da regi��o atrav��s de campanhas de coloniza����o e desenvolvimento agr��rio, o acesso �� ��gua tornou-se uma fonte de conflito ��� como foi o caso not��rio das ���Guerras Mucubais��� em 1940-1, que resultou no massacre, pris��o e deporta����o de membros dessa etnia na regi��o de Gambos. Neste contexto, as investigadoras Elisete Marques da Silva (2003) e Cl��udia Castelo (2018) detalham como o uso do arame farpado se tornou uma t��cnica comum de usurpa����o e defesa territorial.


Tenda provis��ria Kuvale no Namibe. Foto de Ruy Blanes, 2013.

Em 2020, enquanto o ���combate �� seca��� continua, come��amos a ouvir relatos recorrentes sobre a falta de manuten����o das infraestruturas h��dricas e de desvio da ajuda financeira e material destinada �� popula����o local para uso privado de funcion��rios p��blicos. Ao mesmo tempo, as campanhas altamente cerimonializadas e divulgadas de distribui����o de alimentos promovidas pelas autoridades para apoiar as comunidades locais v��o cobrindo apenas alguns meses de subsist��ncia.


Rapidamente percebemos que as consequ��ncias dram��ticas do recente ciclo de seca fazem muito mais do que adicionar outra linha narrativa �� quest��o do desaparecimento dos estilos de vida pastoris e �� marginaliza����o social e econ��mica dos pastores por toda a ��frica devido a fatores ambientais. Elas exp��em uma arquitetura de preda����o governamental e privada de recursos ambientais, �� custa da dignidade humana e dos direitos humanos (ver, por exemplo, o caso do Samburu no norte do Qu��nia). Neste quadro, o ���combate �� seca��� assenta num paradoxo subjacente: �� dirigido pelas autoridades locais e nacionais com o objetivo de oferecer solu����es para os problemas que as pr��prias autoridades permitem, seja por omiss��o e falta de provis��o, seja atrav��s do patroc��nio de iniciativa privada sem o devido due process.











Ruy Llera Blanes, antrop��logo, professor associado na School of Global Studies, Gothenburg University.


Carolina Valente Cardoso, antrop��loga, investigadora na School of Global Studies, Gothenburg University.


Helder Alicerces Bahu, antrop��logo, professor no ISCED-Hu��la.


Claudio Fortuna, investigador do Centro de Estudos Africanos (UCAN, Luanda) Programa de Doutoramento em Antropologia Sociak, ISCTE-IUL (Lisboa).

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Published on October 06, 2020 17:00
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