in YGGDRASIL, PROFECIA DO SANGUE - cap 2
DOIS- Viste a lata daquele gajo? - Rita cuspia o café que tinha conseguido não entornar, quando um miúdo passara por elas de skate e lhe dera um valente encontrão. Não importava que se tivesse desculpado, nada lhe mudaria a disposição - Estou imunda e já não tenho tempo de regressar a casa para mudar de roupa. Vou para as aulas a parecer um borrão de tinta.- Mas cheiras bem. - Cheiro bem? - a sua voz quase inaudível soava ameaçadora, encarava Maria como se a quisesse esbofetear - Então, talvez queiras trocar de roupa comigo? Maria olhava para a amiga tentando não sorrir. - A minha roupa não te serve, mas podemos comprar uma daquelas t-shirtstemáticas na loja da esquina, fica mesmo a caminho da universidade e podes vesti-la na casa de banho.- Pois, deves ter razão, é que a impressão que quero causar aos meus colegas e professores é a de uma saloia. Argh! Estou mesmo danada!- Não dá para perceber! - perante o olhar glacial que Rita lhe lançou, Maria evitou tecer mais comentários ou fazer sugestões. Sabia que a exasperação da amiga não se devia ao insignificante acidente com o café, andava irritada desde o dia seguinte à chegada a Dublin e a culpa era do homem que viera com elas no avião. Tinham passado duas semanas desde esse dia e ainda não dissera nada. A amiga passava a maior parte do seu tempo a olhar para o telemóvel à espera que tocasse. A verdade é que mais vezes do que gostaria de confessar, dava por si a pensar no irmão dele, o que se chamava Rhenan, um nome diferente para um homem enigmático. Esperava paciente que a sua curiosidade acabasse brevemente ou ainda se arriscava a ficar como a amiga ou pior.Fizeram o resto do percurso até ao Trinity College, em silêncio. Àquelas horas, Grafton Street já se encontrava pejada de turistas. Andava fascinada pela maneira descontraída como os irlandeses encaravam a vida, sentia-se em casa. Era como se já ali tivesse estado numa outra existência.Rita resmungava entredentes. O melhor era continuar a ignorá-la. A verdade é que a vida dava muitas voltas. No último ano do secundário com o exame de admissão, a sua média dava-lhe entrada na Universidade Nova de Lisboa, a pouco mais de cinco minutos de casa. Porém, os pais sabendo da atracção que sentia pela Irlanda tinham-lhe proporcionado a experiência única de estudar em Dublin. A mãe inicialmente resistira por não lhe agradar a ideia de ter a filha longe da sua alçada.Para a convencer Maria contara com a feroz ajuda da avó. Estava decidida a provar-lhes que tinham tomado a decisão acertada e estava mais do que preparada para iniciar um novo capítulo da sua vida.A escolha da casa tinha sido feita pelos pais de ambas. Tendo visitado um número incontável de habitações na cidade e de alojamentos universitários, tinham-se decidido pelos arredores de Dublin. A decisão recaíra em afastá-las da cidade evitando que sucumbissem às inúmeras distracções que esta oferecia. Na opinião de Maria, a casa escolhida estava localizada num local demasiado sossegado. Rita continuava a resmungar, fechando o casaco.Maria ignorava a amiga o melhor que conseguia. Recordava com satisfação o dia em que entrara pela primeira vez na casa. Tinham encontrado tudo preparado ao pormenor para as receber. Camas feitas, frigorifico e despensa cheios. Algumas garrafas de vinho alentejano que sabia só podiam ter sido os pais a deixá-las. Sorriu ao pensar na cara reprovadora da mãe.Num bilhete colado na porta do frigorifico, tinham instruções detalhadas como aquecer o jantar que lhes tinham deixado preparado para aquele dia, frango de caril, que o seu pai fizera propositadamente para as acolher na sua nova casa. Só tinham de o descongelar e aquecer.Sentia-se feliz, durante os próximos anos Dublin seria o centro de toda a sua existência. Aproximavam-se da universidade atravessando a estrada. Maria estremeceu ao transpor a porta da entrada, sentira um estranho calafrio, a sensação de que alguém as observava. Sem voltar a cabeça examinou discretamente o campus, não via nada diferente. Não era a primeira vez que se sentia seguida e começava a tornar-se bastante incomodativo até um pouco assustador.Decidira não falar com Rita sobre os seus receios, não a queria assustar, afinal podia não passar do resultado dos filmes que via. Mas a verdade é que todas as noites a estranha sensação regressava, obrigando-a a levantar-se e percorrer a casa para se certificar se deixara tudo trancado. Sempre munida de uma faca de cozinha que colocara estrategicamente debaixo do colchão. Inexplicavelmente sentia que algo estava para acontecer, que alguém se movia no exterior, porém não conseguia explicar sem parecer louca. Todas as noites fazia o seu mais recente estranho ritual e pouco dormia. Descia a escadaria, entrava na sala, afastava os cortinados o suficiente para observar a rua mal iluminada onde só se vislumbravam sombras. Antes de regressar para o conforto da sua cama confirmava se as portas e janelas estavam fechadas. Preocupava-a que as noitadas forçadas a verificar a segurança da casa lhe viessem a prejudicar os estudos, andava sonolenta e pouco concentrada durante o dia. No entanto a estranha sensação mantinha-a alerta. Lembrava-se da vez em que carregada de sacos sentiu alguém a segui-la, mas quando se virara só vira um corvo. Se dissesse a Rita que andava a ser seguida por pássaros era garantido que a internaria, ou pior, chamava os pais.Foram recebidas por caras sorridentes que contrastavam com a disposição da amiga. Tinham um grupo restrito que primava pela sua diversidade cultural. Pedro era do Porto. Sergiu, romeno. Daniel, búlgaro e a animada espanhola Carmen. Tinham ficado todos na mesma residência universitária perto do campus. A moradia delas, tinha dois pisos com jardim, ficava em Coolamber Park, nos subúrbios, em Templeogue. Cada uma tinha no primeiro andar a sua própria suite e ainda dois quartos extras permanentemente preparados para receber as famílias. No andar de baixo existia um quarto de arrumos, uma sala onde estudavam e comiam, a cozinha que dava acesso a um pátio onde existia uma pequena e impessoal sala e um jardim onde no Verão já pensavam fazer churrascos com os amigos, caso o tempo o permitisse. Já as tinham avisado que na Irlanda chovia trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Foi arrancada aos seus devaneios, quando Sergiu lhe tocou no braço apontando para o relógio. Não devia chegar atrasada, os professores não gostavam. Acelerou o passo tentando acompanhar a passada larga de Sergiu. Nem se apercebera que já tinham ido todos para as respectivas salas. Suspirou desanimada. Ia estar a maior parte do tempo isolada do grupo. Quem lhe mandara escolher História e Cultura Medieval, um curso que aparentemente ninguém queria. Sergiu era o único que tinha uma disciplina em comum com ela. Na maior parte dos dias era a última a terminar as aulas e tinha de regressar a casa, sozinha. Não lhe agradava andar de noite sem companhia, ter de atravessar a ponte sobre o rio Liffey e apanhar a camioneta para uma viagem que durava entre trinta e cinco a quarenta minutos. À sua frente, os seus poucos colegas de curso entravam no enorme anfiteatro. Felizmente por sugestão de Pedro tinham percorrido os corredores dias antes do início das aulas para se irem familiarizando com o espaço. O que na altura parecera um absurdo provava ter sido uma excelente ideia. A verdade é que ainda não se perdera uma única vez. Pedro também já as tinha conseguido familiarizar com a vida nocturna da cidade. Conheciam a maior parte dos bares de Dublin apesar de acabarem sempre no Temple Bar. Maria escolheu um dos últimos lugares na parte de trás do anfiteatro com receio de adormecer, Sergiu sentou-se a seu lado. Aquele professor tinha o dom de actuar sobre o seu já cansado corpo como um soporífero. Tentava manter-se desperta, listando mentalmente o que necessitava fazer até ao final do dia, colocando no topo da lista uma visita à biblioteca do campus. Os professores já tinham atribuído trabalhos, os exames estavam marcados, tinha de se apressar a requisitar os livros de que necessitava e organizar muito bem o seu horário. Com tanto para fazer nos tempos mais próximos ficaria sem tempo para os bares e restaurantes de Dublin. Acabava de se aperceber que deixara de ter vida própria até ao final do semestre. Foi com um extraordinário esforço que não adormeceu durante aquelas duas horas, o tempo que durava a aula. Sergiu despediu-se, ia ter com o grupo ao McDonalds na Grafton Street. Juntar-se-ia a eles após requisitar os livros de que necessitava na biblioteca da universidade. Adorava aquela biblioteca, sentia sempre uma estranha nostalgia quando lá entrava. Gostava de imaginar monges absortos no seu voto de silêncio no meio dos empoeirados livros. Lera que era a maior biblioteca da República da Irlanda com mais de quatro milhões de exemplares. Que guardava a harpa mais antiga da Irlanda e o Livro de Kells, também conhecido como o Grande Evangelho de São Columba, feito por monges celtas, cerca de oitocentos anos antes de Cristo. Adorava o misticismo que envolvia aquele local, uma mescla entre o moderno e o antigo. O cheiro do chão encerado, a serenidade que o silêncio lhe transmitia, percorrer os largos corredores, tocar nas lombadas dos livros, a agradável sensação de ter regressado no tempo,Contudo, naquele dia a biblioteca parecia abandonada. Voltou a sentir o estranho desconforto, aquela sensação de estar a ser observada, o frio no estômago avisava-a para estar alerta. Tentou parecer descontraída procurando com o olhar a bibliotecária sem a encontrar. Sentia os pêlos da nuca arrepiarem-se, o coração batia descompassadamente, respirou fundo tentando acalmar-se ao mesmo tempo que pensava no que fazer. Munida da pouca coragem que ainda mantinha levantou a cabeça observando atentamente o piso superior parecendo-lhe vislumbrar um vulto esconder-se.Antes que os seus nervos a abandonassem acelerou o passo para a saída, por muito que necessitasse dos livros não ficaria ali nem mais um segundo. De todas as vezes que ali estivera, a biblioteca tinha sempre alguém a atender, grupos de turistas, alunos, naquele dia estava deserta o que a deixava mais nervosa do que gostaria de confessar. Colocou a mala a tiracolo alcançando a porta sem nunca se voltar, sentindo a leve chuva que começava a cair. Respirou de alívio por já não estar sozinha. Olhando sempre em frente, caminhava o mais depressa que os seus pés lhe permitiam, ia ao encontro dos amigos. Não ouvia passos, mas sentia alguém aproximar-se.
Era o que a Profecia dizia e as ordens que tinha eram para a proteger, vindo o pedido de quem viera não seria discutido, mas obedecido. Não seria uma tarefa fácil, a humana conseguia sentir a sua presença, pior, conseguia vê-lo mesmo quando estava invisível. Ia sendo descoberto quando a seguia e inesperadamente se voltara. Fizera-o tão depressa que a sua única reacção tinha sido transformar-se num corvo. Não era algo de que se orgulhasse, nem seria certamente o seu melhor disfarce, mas teria de viver com a memória dessa infeliz circunstância. Tinha a certeza que instantes antes, na biblioteca, olhara na sua direcção.
Maria estava assustada. Só conseguia pensar que tinha de deixar de ver tantos filmes de terror, começavam a afectá-la. Parou à frente de uma loja de roupa na Grafton Street fingindo admirar a montra, quando teve a confirmação de que não enlouquecera. Conseguia ver reflectido no vidro, parado a poucos metros de si, um homem alto, cabelo preto comprido batendo-lhe nos ombros que a observava. Tentou manter a cabeça fria, apesar do coração bater descompassadamente ameaçando saltar-lhe do peito. De tão nervosa que estava, os rins começavam a doer-lhe com a descarga de adrenalina que libertavam perante o medo que sentia. Era prudente que agisse o mais descontraidamente, fingindo não se ter apercebido da sua presença. Afastou-se da montra evitando olhar na sua direcção, sabia que na companhia dos amigos estaria em segurança. Entrou no McDonalds, não os viu de imediato até localizar Rita. - Onde estavas? Temos estado à tua espera. Os homens já devem ter bebido toda a coca-cola, se não começamos a comer avançam para algo mais forte e ainda temos aulas à tarde. - puxou-a pelo braço – O teu colega já pediu por ti. – Rita sorria-lhe provocadoramente - Conta lá onde descobriste aquele naco de homem. No meu curso não tenho ninguém com tão bom aspecto, com que então a manteres segredos da tua amiga. Queria-lo só para ti! - piscou-lhe o olho divertida.- Do que estás a falar? - Maria sentia-se perdida, o que Rita dissera não fazia sentido - Colega? Que colega? – mas a amiga já não a ouvia.O homem que acabara de ver reflectido na montra estava sentado entre os amigos, observando-a com ar zombeteiro. - Finalmente chegaste. - Pedro parecia realmente feliz ao vê-la. - Este teu colega é o máximo. Estávamos agora mesmo a falar de ti. Perguntávamo-nos se te terias esquecido de almoçar, tu e aquela biblioteca são um caso perdido.Maria não conseguia tirar os olhos do estranho. - Já nos conhecemos? Os amigos pareciam ignorar a presença deles. Os lábios do estranho não se mexiam, porém conseguia ouvir a sua voz dentro da cabeça. - Ainda não, mas podemos.- Podemos? - as suas próprias palavras não lhe soavam convincentes. Ouvir aquela voz dentro da sua cabeça estava a deixá-la agoniada, sentia-se zonza, a cair, quando duas fortes mãos a ampararam obrigando-a a sentar-se.- O que pretende? O que fez aos meus amigos? O grupo continuava embrenhado na sua própria conversa alheados ao que se passava.- Tudo a seu tempo. Come! - colocou-lhe um tabuleiro à frente com um hambúrguer de peixe, batatas fritas e uma água. - É o que normalmente pedes. – sorria misteriosamente.- Não me respondeu. Quem é? O que pretende de mim? - sentia uma forte dor de cabeça. - A pergunta é o que posso fazer por ti, mas primeiro come. Depois saímos daqui e conversamos.- Não quero ir! Não tenho por hábito sair com estranhos.- Em breve deixarei de ser um estranho.Maria tentava comer, mas o hambúrguer formava uma bola que não conseguia engolir. Via uma névoa rodeá-los, os amigos continuavam a ignorá-los, não se apercebiam que algo estava errado. Tentava manter os sentidos alerta apesar de se sentir cada vez mais agoniada, queria vomitar.- Fala-me de ti. Quero perceber porque deves ser protegida. Quem és? - segurou-a por um braço saindo do McDonalds levando-a com ele. Os amigos ficavam para trás conversando sem notarem a sua súbita saída.Sentia-se a pairar no ar, podia jurar que os seus pés mal tocavam no chão, no entanto caminhava. Estava de regresso ao campus sentada no seu banco preferido, oculta de olhares indiscretos. Gostava particularmente daquele local, talvez por ser o que maior tranquilidade lhe transmitia, algo que naquele momento estava longe de sentir. Não passava ninguém. Estavam sozinhos e sentia cada vez mais medo. Queria gritar por ajuda, no entanto o seu corpo não reagia, era como se tivesse tomado um relaxante muscular. Apesar do receio não conseguia deixar de pensar em como aquele homem era atraente, não parecia humano.- Comecemos. - o estranho debruçava-se sobre ela quando uma sombra se abateu sobre eles atirando-o para trás. Maria viu um vulto segurá-lo pelo pescoço levantando-o uns bons centímetros no ar. Caiu para o lado, sentindo umas fortes mãos ampararem-na. - Quem julgas que és para me tratares assim? – o estranho soava surpreso. A resposta já não a ouviu, desmaiando embalada pelo som de vozes exaltadas.
Published on March 18, 2020 03:00
No comments have been added yet.


