O problema com ‘Black Panther’

Still from Black Panther.
Pantera Negra se tornou um fen��meno cultural sem precedentes na hist��ria recente. Audi��ncias arrebatadoras t��m idolatrado este��blockbuster, remake da hist��ria em quadrinho sobre o super-her��i da m��tica na����o africana de Wakanda.
Assistir o filme tem se sido especialmente cat��rtico para aqueles sufocados pela pol��tica racial americana, com nacionalistas brancos marchando abertamente nas ruas e um governo que parece conspirar para aumentar o sofrimento das pessoas n��o-brancas, o espet��culo de eleg��ncia negra no filme oferece mais do que entretenimento, �� uma fonte de ��guas doces em meio ao deserto.
Dada a escassez de imagens relativas �� afirma����o negra na m��dia popular, o impulso de canonizar o filme �� compreens��vel. Mas Pantera Negra �� mais do que a celebra����o da dignidade negra e sua sofistica����o, �� tamb��m um discurso de liberta����o,��uma paisagem on��rica��baseada nas tradi����es negras de pensar e buscar construir sociedades ideais al��m do alcance da supremacia branca.
Pantera Negra exige uma��leitura��cr��tica porque vis��es ut��picas s��o inevitavelmente pol��ticas. S��o elas algumas das principais ferramentas usadas por pessoas oprimidas para pensar um futuro mais justo. Infelizmente, qualquer pessoa comprometida com um conceito amplo de liberta����o Pan-Africana ��� desenhada para libertar africanos e descendentes de africanos no mundo todo ��� precisa considerar Pantera Negra como uma imagem n��o-revolucion��ria.
Essa afirma����o pode parecer injusta, at�� uma blasf��mia para f��s do filme, porque, apesar de tudo, Pantera Negra apresenta um elenco de personagens negros nobres e complexos (numa sociedade obcecada por pele clara, �� importante notar que o filme oferece um suntuoso desfile de personagens de pele negra retinta).
Wakanda, al��m disso, �� um modelo de autodetermina����o negra, aben��oada com um suprimento inesgot��vel de um mineral valioso conhecido como vibranium. A na����o prosperou por gera����es, escapando da coloniza����o e de outras influ��ncias��perversas, protegida por uma c��pula m��gica que oculta o reino do mundo exterior.
Wakanda �� tecnologicamente avan��ada e povoada por cidad��os orgulhosos e leais, incluindo um regimento de formid��veis mulheres guerreiras.
O problema, do ponto��de vista��progressista,��est�� no nacionalismo conservador de Wakanda. Governantes da na����o rejeitam as sugest��es de que o uso de sua tecnologia possa empoderar outras pessoas negras no continente Africano e ao redor do mundo. Os l��deres de Wakanda mant��m um teimoso isolacionismo, enviando agentes secretos em miss��es��benevolentes��em terras estrangeiras de forma pontual, mas evitando qualquer programa significativo de solidariedade internacional.
Essa �� uma pol��tica extremamente limitada. No filme, assim como na vida real, pessoas negras que n��o tem a sorte de possuir uma fant��stica fonte de energia m��gica enfrentam s��culos de escravid��o, colonialismo, imperialismo e subjuga����o. Elas s��o sistematicamente exploradas e brutalizadas, mesmo quando seu trabalho �� a fonte de riqueza de seus opressores. Ainda assim, as pessoas em Wakanda permanecem��isoladas, cercadas por luxo e conforto no que poderia ser considerado um grande condom��nio fechado. Em outras palavras, elas se comportam como qualquer elite capitalista moderna.
No filme, o personagem mais ressentido com o isolacionismo de Wakanda �� Killmonger, o filho afro-Americano de um expatriado morto. Criado na periferia de Oakland, Calif��rnia, Killmonger �� uma alma perturbada, uma crian��a problem��tica da di��spora que promete retornar �� terra de seus antepassados para tomar o poder e distribuir as armas incompar��veis de Wakanda para pessoas negras oprimidas em todo o mundo.
Em resumo, Killmonger ����um��revolucion��rio. O fato de ele ser apresentado como sociopata �� um dos aspectos mais problem��ticos do filme.
Superficialmente, Killmonger serve para real��ar o protagonista do filme. Como um dispositivo pol��tico, no entanto, ele desempenha um papel muito maior, pois seu personagem existe para desacreditar um movimento radical internacional. Na verdade, Killmonger �� um mecanismo atrav��s do qual Pantera Negra reproduz uma s��rie de id��ias perturbadoras.
Id��ia Perturbadora n��mero 1: A desaven��a entre africanos e afro-americanos
Killmonger incorpora a m��xima de ���voc�� n��o pode voltar pra casa���. Sua busca pelo ���retorno��� para o solo de seus antepassados (um lugar onde ele nunca esteve) �� apresentado como tr��gico e inalcan����vel. No entanto, h�� uma grande hist��ria por detr��s desse impulso.
Por s��culos, afro-americanos e outros membros da Di��spora Africana tem buscado a repatria����o para o continente africano.��Esse anseio pela reunifica����o e restaura����o dos la��os de parentesco �� um subproduto da experi��ncia hist��rica de dispers��o for��ada.��Desgastados e explorados em todo o mundo, gera����es de pessoas negras ansiavam por uma terra onde pudessem encontrar seguran��a, prosperidade e poder. Muitas vezes eles viram na ��frica esse alicerce.
Entretanto, ap��s a Segunda Guerra Mundial, houve uma nega����o de qualquer forma de internacionalismo negro popular por parte dos l��deres que conduziram a guerra fria no frente americano. Intelectuais argumentavam que ���o negro��� era exclusivamente norte-americano, que norte-americanos e africanos eram separados e desconhecidos e que o Pan-africanismo era uma fantasia f��til e perigosa.
Todavia, afro-americanos nunca abandonaram o esfor��o para recuperar e reivindicar os la��os africanos. Esse objetivo inspirou atividades simb��licas nos anos 60 e 70, incluindo a ado����o de roupas, penteados e nomes africanos. Tamb��m ajudou a reviver uma consci��ncia revolucion��ria, uma cren��a de que o processo de descoloniza����o poderia vencer o imperialismo ocidental e libertar n��o apenas africanos, mas tamb��m afro-americanos e outras pessoas subjugadas ao redor do mundo.
Isso n��o era apenas um ideal negro. Foi o princ��pio do Movimento dos N��o Alinhados, uma luta pela autonomia e poder do ent��o Terceiro Mundo endossada pela confer��ncia ���Afro-Asi��tica��� em Bandung, Indon��sia, em 1955. Os herdeiros espirituais de Bandung, incluindo Malcolm X, rejeitavam a auto-proclama����o dos Estados Unidos de “l��der do mundo livre”.��Eles viam os Estados Unidos como um imp��rio violento e insistiam que “as na����es mais��escuras” (alus��o ao livro Darker Nations de��Vijay Prashad)��deveriam adquirir poder – militar ou de outra forma – para resistir �� viol��ncia norte- americana.
Killmonger, ao que parece, �� um neto fict��cio de Bandung, mesmo ele tendo falhado em apresentar um movimento pac��fico com ��nfase nos direitos humanos como alternativa ao expansionismo. Ainda assim, a verdadeira estrutura de poder americana ainda teme qualquer alian��a global que possa representar uma contra-for��a ideol��gica �� hegemonia dos Estados Unidos. Assim, Killmonger �� retratado como louco e sua trama para armar aqueles que Frantz Fanon chamou de “os miser��veis da terra” �� lan��ada como uma amarga cruzada por vingan��a, e n��o como uma resposta racional aos horrores da supremacia branca e do imperialismo.
Nesse sentido, defensores do imperialismo s��o capazes de distorcer o projeto hist��rico da esquerda no Terceiro Mundo enquanto equalizam �� terrorismo toda vis��o de globaliza����o que n��o seja organizada pelo capitalismo norte-americano e seus aliados.
Id��ia Perturbadora n��mero 2: A patologia afro-americana
Retratar o Killmonger como demente n��o apenas difama o radicalismo, tamb��m recria temas racistas sobre corrup����o e imoralidade ligados ��s pessoas negras. Ironicamente, esse aspecto de Pantera Negra tem sido amplamente ignorado em meio �� alegria por representa����es mais promissoras de negritude. Na verdade, as representa����es lisonjeiras s��o desiguais. Pantera Negra define a virtude africana contra a imoralidade afro-americana.
A justaposi����o �� perniciosa. Afinal, as afirma����es da degenera����o negra acompanham narrativas de decl��nio cultural, incluindo a id��ia de que os traumas da escravid��o ou da vida urbana prejudicaram permanentemente os afro-americanos. Como o historiador Daryl Scott mostrou, tais mitos geraram desprezo e pena pela Am��rica negra. O que eles nunca fizeram �� honrar a resili��ncia que permitiu que os negros americanos sobrevivessem aos pesadelos do Novo Mundo.
Isolada e provinciana, Wakanda carece de uma heran��a revolucion��ria que possa ajudar a moldar suas institui����es sociais ou rela����es internacionais. Oakland, por outro lado, possui um legado de luta radical enriquecida pelo esp��rito irreprim��vel dos afro-americanos.
Id��ia Perturbadora n��mero 3: O Salvador branco
Se Pantera Negra refaz imagens feias de afro-americanos, tamb��m reafirma o ideal de salvador branco. Em uma reviravolta especialmente grotesca (alerta de spoiler), este papel �� feito por um agente da CIA, que �� levado a Wakanda para tratamento m��dico, e acaba ajudando o reino a derrotar Killmonger. As ironias aqui s��o in��meras. �� um desafio identificar um inimigo maior das massas africanas do que a CIA, a ag��ncia que ajudou a assassinar ou subverter algumas das luzes mais brilhantes do continente, desde Patrice Lumumba, no Congo, at�� Nelson Mandela na ��frica do Sul.
Apresentar os Estados Unidos como um guardi��o dos interesses africanos camufla o conglomerado das for��as ocidentais, de bancos globais �� corpora����es multinacionais, que continuam a roubar a riqueza da ��frica mesmo muito depois do fim formal do colonialismo. Tamb��m obscura a extens��o impressionante em que o militarismo dos Estados Unidos penetrou no continente africano em nome de uma incessante “Guerra ao Terror”.
Se o povo de Wakanda tivesse lido o te��rico de Martinica, Aim�� C��saire, eles poderiam reconhecer o imperialismo americano como ���a ��nica domina����o da qual nunca se recupera���. Em vez disso, as cenas finais de Pantera Negra sugerem que a colabora����o entre o reino e a superpot��ncia global �� o futuro.
Pantera Negra cont��m outros elementos vexat��rios. �� curioso, por exemplo, que uma sociedade t��o avan��ada quanto Wakanda n��o tenha renunciado ao governo mon��rquico. (Talvez os criadores do filme compartilhem a preocupa����o rom��ntica do Afrocentrismo com a nobreza.)
No entanto, a recusa do internacionalismo radical pode ser o maior pecado do filme. Por caricaturar a filosofia, Pantera Negra repudia a consci��ncia global que permanece essencial para combater a guerra, a domina����o e explora����o na ��frica, Am��rica e al��m.
Solidariedade n��o significa unanimidade. Estere��tipos e suspeitas continuam a colorir muitos encontros africanos com a di��spora. No entanto, a reciprocidade baseada em princ��pios compartilhados pode superar tanto a aliena����o quanto a mentalidade de eleva����o condescendente que leva Wakanda, no final do filme, a propor a instala����o de um centro de apoio��em Oakland.
Pantera Negra capturou nossa aten����o. Mas��o filme��n��o pode restringir nossa imagina����o. Devemos transcender as fronteiras conceituais do filme, restaurando uma pol��tica que valoriza toda a vida negra, enquanto exige a libera����o de pessoas oprimidas em��por volta do mundo.
Sean Jacobs's Blog
- Sean Jacobs's profile
- 4 followers

