E ainda cenas que têm a ver com Tretas de Cabos e afins...

XIII

A Marateca era, no final do milénio passado, como sempre foi e continuou a ser, um local com uma fervilhante vida nocturna.
As coisas por ali eram de tal forma agitadas que os cães se abstinham de ladrar à noite, uma vez que o silêncio era pesadíssimo e, caso o quebrassem, alguém se poderia cortar nos estilhaços!
Quando os Undercover foram contratados para ir tocar a um bar na Marateca Ninguém ficou surpreendido! Não por serem contratados para lá ir, diga-se, que por esta altura os Undercover começavam a ser uma maquina bem oleada, apesar da ocasional ferrugem nas dobradiças, mas pelo facto de existir um bar na Marateca!
Ei-los que, chegados lá em final de tarde de verão, constatam que o bar é, na realidade, um snack bar! No fundo, e se pensarmos bem, um snack bar é uma espécie de upgrade a um bar, não é verdade?
Não percebendo muito bem onde podiam montar o material, foram informados que o poderiam fazer no espaço que ficava logo a seguir à vitrina dos bolos e ao lado da porta. A porta, ou por outra, as portas, que faziam lembrar as portas de um saloon nos western Spaguetti, faziam o curioso efeito de, cada vez que alguém as empurrava para entrar no bar taparem a banda. Ainda assim, quase como que por milagre, lá conseguiram montar o material no espaço exíguo e fazer o som para o concerto à noite.
A simpatia dos donos e o acolhimento foram ímpares, vivendo ainda na memória o jantar (frango de cerveja com batata cozida) feito pela jovem dona do estabelecimento.
Quando estavam já todos refastelados e de barriga cheia, o Caracolinhos foi falar com a Senhora para saber a que horas deveriam começar a tocar. Ela respondeu:
-Entre um quarto para as dez e as dez.
Percebeu-se claramente que, devido à tipologia do estabelecimento este provavelmente encerraria pouco depois da meia-noite, pelo que era uma hora razoável para se começar. Ninguém ficou feliz. Chegaria mais cedo à sua cama…
Algures entre um quarto para as dez e as dez da noite os Undercover começaram a sua primeira actuação na Marateca, entre a vitrina dos bolos e a porta, num snack-bar tão cheio, mas tão cheio, que a proximidade do público se fez verdadeiramente sentir. Estavam a uns dez centímetros dos executantes!
Durante duas horas os Undercover desfilaram os sucessos mais recentes de bandas antigas e os temas mais antigos de bandas recentes num sítio que tinha uma lotação para umas quarenta pessoas mas onde estavam seguramente mais de duzentas, onde toda a gente falava de tal maneira aos gritos para se ouvirem por cima da música que era tocada que acabavam por a abafar.
Ainda assim, quando acabava uma música e a FF pedia, como começava a ser o seu costume e com um ar de radioso contentamento “PALMIIIIIINHAAAAAAAS!”, o resultado era uma curta salva de palmas que era seguida de imediato por um “Atão?!” colectivo que indiciava que o silêncio da banda se estava a prolongar por demasiado tempo. Aliás, todos os intervalos entre músicas que tivessem uma demora superior a dez segundos eram logo brindados com um “Atão?!” colectivo.
Claro que, assim que a música recomeçava, também recomeçavam as conversas aos gritos, pelo que é seguro dizer que ninguém fez sequer a mínima ideia do que foi tocado naquela noite…
E eis que, às cinco para a meia-noite (não, não tem nada a ver com o programa de televisão, que ainda não existia no final do milénio passado) a FF, que foi renomeada nessa noite para Palminhas, fruto do numero de vezes que repetiu o pedido, ao todo vinte e oito, uma vez para cada musica do reportório, anuncia a ultima música da noite, o que faz levantar um coro de protestos, que quase conduz a um motim!
A jovem dona do estabelecimento lá põe água na fervura e vem ter connosco afirmando:
-Vocês têm de tocar até à uma!
-Até à uma? Nós temos duas horas de reportório... Quanto tempo é que as outras bandas que cá vem costumam tocar?
-Mais ou menos duas horas, como vocês.
-Então e eles acabam à uma?
-Sim, mas costumam começar já depois das onze. Vocês é que começaram cedo…
-Começamos à hora que nos disse…
Ela fez um sorriso amarelo, meio culpado e encolheu os ombros.
-Vocês têm de tocar até à uma. – Repetiu.
Tendo em conta o ambiente que se começava a viver no bar, foram repetidas umas quantas músicas do inicio da noite e, quando já não se sabia mais o que fazer, começou um dos maiores improvisos na história do Metal Nacional, com uma música instrumental escrita na hora a que foi dado o nome de “Mi menor”, onde houve solos de guitarra à fartazana, de baixo e até a estreia do Giga num maravilhastico e bestofenomenal solo de bateria de quase quinze minutos!
E depois disto, finalmente o silêncio e a possibilidade de respirar ar no exterior.
Ninguém estava com o Especiaria, ambos sentados a apanhar o fresco da noite num banco de jardim à porta do bar, perdão, do snack-bar, quando são interpelados por uma multidão de fãs em delírio que perguntam curiosos:
-Aquela música instrumental era vossa?
Ambos os dois olham um para o outro em sincronia. Se fossem “animes” Japoneses teriam, sem dúvida, um ponto de interrogação e um de exclamação por cima da cabeça. Uma vez que não o são, só tinham mesmo cara de parvos, e por fim respondem:
-Ya!
-Fosga-se, e a música está editada?
-Nop!
-Este país é mesmo uma treta! Gajos que fazem músicas como a vossa andam por aí sem serem editados e depois só se ouve é trampa na rádio…
E foi assim que nesse dia os Undercover descobriram o poder brutal que o acorde de Mi menor tem…



(C. N. Gil in "Treta de Cabos - Vidas de Rocker (as histórias secretas dos XXL Blues)")

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Published on April 08, 2016 01:30
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