Pedro Cipriano's Blog, page 72
August 6, 2012
O dia em que choveu fogo - parte 1/5
Era o quarto Domingo de Agosto quando Alexey ouviu os altifalantes anunciarem o bombardeamento. O jovem não esperou que os aviões surgissem no céu azul, onde o Sol brilhava intensamente, largando a pá e atirando-se para o fundo da trincheira. Não tinha capacete nem arma, por isso só lhe restava aninhar-se e proteger a cabeça com as mãos.- Atenção camaradas, um ataque aéreo está eminente! - repetia, ao longe e sem cessar, a gravação.Esperou pelos ruídos de motores e pelo rebentar de explosões, mas, do buraco cavado num campo de tomates, ouviu apenas risos.Desde o primeiro momento que achara que estava rodeado de idiotas. Era ridículo pensar que aquele bando de maltrapilhos, que nem sequer uniforme tinha, conseguiria parar a máquina de guerra nazi. Deduziu que se riam da sua reacção. Questionava-se como seria possível gozar com tal aviso e, por isso, achou melhor ignorar, permanecendo no seu refúgio.- Então Sacha, estás com medo?Reconheceu a voz como pertencendo a um dos rufias do batalhão. Cerrou os punhos e, de súbito, quis esmurrar a cara de quem o insultava.- Ser soldado não é para meninas - ouviu outra voz familiar acrescentar.Não iria deixar que gozassem com ele daquela maneira, erguendo-se para os enfrentar. Como previra, encarou um pequeno grupo de três recrutas, que o olhavam com um olhar divertido. O mais alto era o manda-chuva do gangue. Andava sempre acompanhado por um rapaz bastante musculado e de nariz achatado, que parecia sofrer de um atraso mental. Nunca tinha visto o outro rapaz, contudo o seu porte impunha igualmente respeito. À semelhança do restante destacamento, tinham entre 16 e 18 anos de idade.- Idiotas! Vão chatear outro! Era bem-feita que os Fritzes vos apanhassem - devolveu Alexey, desistindo de uma punição física.- Olha o pirralho! Parece que finalmente saiu debaixo das saias da mãe... - riu-se o de maior estatura.Tal era a confiança, que nem se apercebeu do projéctil que vinha na sua direcção. A pedra atingiu-o na testa, causando-lhe um corte pouco profundo.Ele não esperou pela reacção dos brigões, saltando para fora da vala e desatando a correr. Ao início, conseguira uma grande vantagem, já que os apanhara desprevenidos. Ao olhar por cima do ombro, viu que o líder vinha no seu encalço e que eles eram muito mais rápidos que ele.Com muito esforço, acelerou, numa tentativa de o fazer desistir da perseguição. Ouvia o passo de corrida atrás de si, cada vez mais perto. Não havia nenhum comandante à vista e os outros soldados iriam simplesmente ignorar a situação. Estremeceu ao perceber que iria apanhar uma sova monumental. No momento seguinte foi atirado ao chão, caindo com a face na poeira. O rufia tinha aterrado por cima dele. Lutou para sair debaixo do rapaz, numa tentativa coroada de insucesso, já que o peso do outro era suficiente para o manter ali. Sentiu que lhe agarravam e torciam o braço, imobilizando-o por via da dor.- Vais apanhar tantas... - prometeu o rufia com traços de fúria na voz.Quanto tentou virar a cara para enfrentar o seu adversário, o primeiro murro atingiu-o na bochecha. Apanhou mais dois, enquanto teve uma vaga percepção de que os restantes elementos se aproximavam. Sentiu que ele saía de cima de si. Ao tentar levantar-se, um poderoso pontapé alcançou a sua barriga e Alexey colapsou na poeira. Durante um momento rebolou, respirando com dificuldade. Sentiu medo ao ver as faces dos seus oponentes, fixando por uma fracção de segundo o sangue que corria copiosamente pela face do que fora atingido. A maioria dos soldados tinha-se refugiado nas trincheiras e não haviam quem os impedisse de o espancar até à morte. Tinha de lutar, tinha de pelo menos ganhar tempo. Tentou pontapear o líder, mas este recuou um passo, colocando-se fora do alcance do golpe. Os rapazes riram-se do seu coice falhado.O som estridente de um trompete de Jericó fez-se ouvir. Algures, ali perto, um bombardeiro alemão mergulhava em direcção à sua presa. Todos tiveram consciência de que alguém iria morrer nos próximos segundos. Num abrir e fechar de olhos, os brigões abrigaram-se também, deixando-o sozinho.O som despertou nele o mais profundo e inexplicável dos terrores. Fechou os olhos, não queria ver o que julgava ser o seu fim. Não se conseguia sequer mexer. Tremeu como uma criança enquanto uma lágrima lhe percorria a bochecha. Não queria morrer.O som continuou durante alguns segundos, sendo, de seguida, substituído pelo ruído do motor do avião. De imediato, uma explosão ensurdecedora fez-se ouvir. A terra estremeceu e a onda de choque atravessou-o.Abriu os olhos. Uma nuvem de poeira envolvia a bateria anti-aérea. Olhou para o céu e viu numerosos aviões. A cruz preta com contorno branco nas asas não deixava margem para dúvidas de que se tratava de aviões alemães. Não se via nenhuma aeronave soviética e a artilharia capaz de os abater estava silenciosa. Face ao poderio germânico, sentiu-se pequenino como uma formiga. Rastejou até ao buraco mais próximo e aninhou-se no fundo. Fechou os olhos e susteve a respiração em antecipação ao perigo. O coração batia a um ritmo desenfreado.
A segunda parte pode ser encontrada em : http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-segunda-parte.html
Published on August 06, 2012 04:00
O dia em que choveu fogo - primeira parte
Era o quarto Domingo de Agosto quando Alexey ouviu os altifalantes anunciarem o bombardeamento. O jovem não esperou que os aviões surgissem no céu azul, onde o Sol brilhava intensamente, largando a pá e atirando-se para o fundo da trincheira. Não tinha capacete nem arma, por isso só lhe restava aninhar-se e proteger a cabeça com as mãos.- Atenção camaradas, um ataque aéreo está eminente! - repetia, ao longe e sem cessar, a gravação.Esperou pelos ruídos de motores e pelo rebentar de explosões, mas, do buraco cavado num campo de tomates, ouviu apenas risos.Desde o primeiro momento que achara que estava rodeado de idiotas. Era ridículo pensar que aquele bando de maltrapilhos, que nem sequer uniforme tinha, conseguiria parar a máquina de guerra nazi. Deduziu que se riam da sua reacção. Questionava-se como seria possível gozar com tal aviso e, por isso, achou melhor ignorar, permanecendo no seu refúgio.- Então Sacha, estás com medo?Reconheceu a voz como pertencendo a um dos rufias do batalhão. Cerrou os punhos e, de súbito, quis esmurrar a cara de quem o insultava.- Ser soldado não é para meninas - ouviu outra voz familiar acrescentar.Não iria deixar que gozassem com ele daquela maneira, erguendo-se para os enfrentar. Como previra, encarou um pequeno grupo de três recrutas, que o olhavam com um olhar divertido. O mais alto era o manda-chuva do gangue. Andava sempre acompanhado por um rapaz bastante musculado e de nariz achatado, que parecia sofrer de um atraso mental. Nunca tinha visto o outro rapaz, contudo o seu porte impunha igualmente respeito. À semelhança do restante destacamento, tinham entre 16 e 18 anos de idade.- Idiotas! Vão chatear outro! Era bem-feita que os Fritzes vos apanhassem - devolveu Alexey, desistindo de uma punição física.- Olha o pirralho! Parece que finalmente saiu debaixo das saias da mãe... - riu-se o de maior estatura.Tal era a confiança, que nem se apercebeu do projéctil que vinha na sua direcção. A pedra atingiu-o na testa, causando-lhe um corte pouco profundo.Ele não esperou pela reacção dos brigões, saltando para fora da vala e desatando a correr. Ao início, conseguira uma grande vantagem, já que os apanhara desprevenidos. Ao olhar por cima do ombro, viu que o líder vinha no seu encalço e que eles eram muito mais rápidos que ele.Com muito esforço, acelerou, numa tentativa de o fazer desistir da perseguição. Ouvia o passo de corrida atrás de si, cada vez mais perto. Não havia nenhum comandante à vista e os outros soldados iriam simplesmente ignorar a situação. Estremeceu ao perceber que iria apanhar uma sova monumental. No momento seguinte foi atirado ao chão, caindo com a face na poeira. O rufia tinha aterrado por cima dele. Lutou para sair debaixo do rapaz, numa tentativa coroada de insucesso, já que o peso do outro era suficiente para o manter ali. Sentiu que lhe agarravam e torciam o braço, imobilizando-o por via da dor.- Vais apanhar tantas... - prometeu o rufia com traços de fúria na voz.Quanto tentou virar a cara para enfrentar o seu adversário, o primeiro murro atingiu-o na bochecha. Apanhou mais dois, enquanto teve uma vaga percepção de que os restantes elementos se aproximavam. Sentiu que ele saía de cima de si. Ao tentar levantar-se, um poderoso pontapé alcançou a sua barriga e Alexey colapsou na poeira. Durante um momento rebolou, respirando com dificuldade. Sentiu medo ao ver as faces dos seus oponentes, fixando por uma fracção de segundo o sangue que corria copiosamente pela face do que fora atingido. A maioria dos soldados tinha-se refugiado nas trincheiras e não haviam quem os impedisse de o espancar até à morte. Tinha de lutar, tinha de pelo menos ganhar tempo. Tentou pontapear o líder, mas este recuou um passo, colocando-se fora do alcance do golpe. Os rapazes riram-se do seu coice falhado.O som estridente de um trompete de Jericó fez-se ouvir. Algures, ali perto, um bombardeiro alemão mergulhava em direcção à sua presa. Todos tiveram consciência de que alguém iria morrer nos próximos segundos. Num abrir e fechar de olhos, os brigões abrigaram-se também, deixando-o sozinho.O som despertou nele o mais profundo e inexplicável dos terrores. Fechou os olhos, não queria ver o que julgava ser o seu fim. Não se conseguia sequer mexer. Tremeu como uma criança enquanto uma lágrima lhe percorria a bochecha. Não queria morrer.O som continuou durante alguns segundos, sendo, de seguida, substituído pelo ruído do motor do avião. De imediato, uma explosão ensurdecedora fez-se ouvir. A terra estremeceu e a onda de choque atravessou-o.Abriu os olhos. Uma nuvem de poeira envolvia a bateria anti-aérea. Olhou para o céu e viu numerosos aviões. A cruz preta com contorno branco nas asas não deixava margem para dúvidas de que se tratava de aviões alemães. Não se via nenhuma aeronave soviética e a artilharia capaz de os abater estava silenciosa. Face ao poderio germânico, sentiu-se pequenino como uma formiga. Rastejou até ao buraco mais próximo e aninhou-se no fundo. Fechou os olhos e susteve a respiração em antecipação ao perigo. O coração batia a um ritmo desenfreado.
Published on August 06, 2012 04:00
August 3, 2012
A alergia
Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando Roberto acabou de armar a bomba. Desprendeu o recipiente de latão cheio de um líquido amarelo com tons esverdeados, que ficou num equilíbrio precário em cima de uma das barras laterais. Limpou o suor da testa e beijou o anel que trazia no dedo. Ajeitou o fato, colocou a cartola e afastou-se da ponte de ferro cruzado.
Àquela hora só os bêbados e as prostitutas percorriam a cidade, por isso, não achou que houvesse o risco de ser reconhecido mais tarde. Que sociedade mais decadente, pensou, sabia que cada um daqueles homens era capaz de matar por um fato de cerimónia. Não esperava que o atentado causasse muitas vítimas, já que escolhera um comboio de mercadorias numa zona ocupada por armazéns.
Enquanto caminhava pelas ruas, combatia o desejo de se enfiar por um dos becos, pois pressentia que todos os olhos estavam voltados para ele. Sabia que teria de se deslocar pelas vias principais para não chamar a atenção. Os nervos eram tantos que se assustou com uma mera buzina. Quase se riu histericamente quando viu tratar-se apenas dum veículo com rodas de coche e muitas rodas dentadas que operavam fora da carroçaria. Já mais calmo, saltou para a berma de modo a deixar passar o mostrengo a vapor conduzido por algum ricalhaço.
A noite estava abafada e o calor já se fazia sentir à várias semanas. O mundo mudava a olhos vistos e quase ninguém se parecia aperceber disso. Cada ano que passava era mais quente que o anterior, o fumo cobria as grande metrópoles e o nível do mar subia cada vez mais. Ninguém queria ouvir falar desses problemas, enquanto o seu estilo de vida pudesse ser mantido, todos eram alérgicos à mudança, como qualquer civilização que se aproxima do seu fim.
Tudo fora planeado para que o atentado fosse atribuído aos alérgicos, um grupo extremista que defendia o uso de técnicas amigas do ambiente. Estes perseguiam uma miragem semelhante à energia solar, que se supunha ter existido há quinhentos anos atrás e que se perdera no grande holocausto. Apesar de se identificar com algumas dessas ideias, Roberto nunca fizera parte de tais círculos e não contava começar naquele momento. As suas razões eram bem diferentes.
Prédios de estilo Neovitoriano passaram a ladear os dois lados da rua. Aqueles apartamentos de madeira de recortes arredondados e telhados oblíquos eram relíquias de outra era. As varandinhas cercadas de madeira branca trabalhada davam-lhe vontade de rir. Não percebia porque é que os haviam recriado, nem porque os restauravam vezes sem fim. Parecia que tinham medo de avançar no tempo, receio das incertezas do futuro e pavor de quebrar as restrições tecnológicas estabelecidas. Tudo porque outrora a espécie quase se extinguira por via das suas próprias invenções. Uma guerra nuclear não era mais possível, contudo, um desastre ambiental teria os mesmo efeitos. A humanidade estava na sua hora dourada, no seu mais importante ponto de viragem, e poucos eram os que conseguiam aperceber disso.
Parou e retirou o relógio do bolso para ver as horas. Faltavam dois minutos para o comboio se encontrar com o seu destino. Ele odiava engenhos que levassem muitas engrenagens, por isso aquele era muito simples. O tremer da ponte, aquando da passagem da locomotiva, iria lançar o recipiente cheio de nitroglicerina contra um dos postes e isso bastaria para detonar o engenho. Os maquinistas nunca se atrasavam.
Um portão preto de cemitério marcava o fim da sua caminhada. Rangeu terrivelmente quando o empurrou, dando-lhe entrada para um espaço completamente deserto e sombrio. Uma árvore frondosa dominava a paisagem, projectado estranhas sombras no pavimento. A tranquilidade do local contrastava com a inquietação que sentia. Caminhou pelo passeio central, passando pelo poço, dirigindo-se à campa da sua noiva.
Sentou-se no túmulo e acariciou a gravura do túmulo, desejando sentir novamente o toque dela. A vida não lhes fora gentil. O forte sentimento que os unia só teve como par o nefasto fim. Ela morrera atropelada por um condutor descuidado. Culpar o condutor era demasiado fácil, pois ele era apenas um produto da sociedade decadente em que estava mergulhado.
Ficara fechado em casa, sem querer comer durante dias a fio. Teria morrido ali se não tivesse recebido uma visita de um dos seus amigos. A conversa que tiveram mudou-lhe a vida, conseguira canalizar o seu desespero. Desde esse dia, Roberto ouviu falar dos alérgicos pela primeira vez e, tal como eles, passara a odiar toda a tecnologia. Passara a ser alérgico a toda a roda dentada e a todo o eixo móvel. Consumido pela mágoa, quase caiu num estado de demência, até que percebeu o que deveria fazer. Tinha de destruir estes malditos monstros com corações de corda e cérebros a vapor. O seu amigo nunca o abandonou e nem negou qualquer tipo de ajuda, nem sequer quando precisou de ajuda para levar a cabo o seu plano pernicioso.
Como previra, a explosão deu-se à meia-noite em ponto. Ouviu de seguida mais três rebentamentos. O clima seco e as matérias inflamáveis, tanto do comboio como dos armazéns, mergulhavam a cidade em chamas. As labaredas subiam mais alto do que esperava, o comboio deveria transportar algum tipo de mercadoria muito inflamável. Impávido, observou o fogo que galgava metro após metro sem que ninguém o pudesse deter.
A tragédia abateu-se sobre a cidade. O número de vítimas escalou de dezenas para a centenas e finalmente atingiu o milhar. Quarteirões inteiros foram devastados. Não houve quem duvidasse que os alérgicos fossem os responsáveis e ninguém se preocupou com o corpo que se afogara no poço do cemitério.
Este conto foi publicado na revista Nanozine.
http://nanoezine.wordpress.com/
Podem efectuar download da revista aqui: http://nanoezine.files.wordpress.com/2012/07/nanozine6_versc3a3o-impressa.pdf
Link no Goodreads: http://www.goodreads.com/book/show/15767109-nanozine-n-6
Published on August 03, 2012 04:00
August 2, 2012
O monstro e a musa - parte 12/12
O início da história pode ser encontrado em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html
A décima primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-primeira-parte.html
Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e Artur entrou.
– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal
Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter.
– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura.
O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atirou-lho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.
– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?
Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.
– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir?
– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha.
Artur soltou uma gargalhada enorme.
– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução.
Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma.
– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matar-te. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.
– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição.
– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha.
– É tudo? – admirou-se Walter.
– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim...
FIM
A décima primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-primeira-parte.html
Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e Artur entrou.
– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal
Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter.
– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura.
O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atirou-lho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.
– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?
Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.
– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir?
– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha.
Artur soltou uma gargalhada enorme.
– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução.
Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma.
– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matar-te. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.
– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição.
– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha.
– É tudo? – admirou-se Walter.
– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim...
FIM
Published on August 02, 2012 04:00
August 1, 2012
O monstro e a musa - décima segunda e última parte
Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e Artur entrou.
– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal
Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter.
– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura.
O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atirou-lho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.
– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?
Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.
– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir?
– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha.
Artur soltou uma gargalhada enorme.
– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução.
Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma.
– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matar-te. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.
– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição.
– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha.
– É tudo? – admirou-se Walter.
– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim...
FIM
– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal
Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter.
– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura.
O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atirou-lho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.
– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?
Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.
– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir?
– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha.
Artur soltou uma gargalhada enorme.
– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução.
Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma.
– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matar-te. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.
– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição.
– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha.
– É tudo? – admirou-se Walter.
– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim...
FIM
Published on August 01, 2012 16:29
O monstro e a musa - parte 11/12
A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html
A décima parte pode ser acedida em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-decima-parte.html
– Sim, só me dói um pouco o ombro – queixou-se com um gemido.
O cavalo havia tropeçado numa depressão do terreno. Ao palpar-lhe o ombro, percebeu que se tratava apenas de uma ligeira contusão. O maior problema era o cavalo que não se conseguiria levantar, pois tinha partido uma pata ao embater numa rocha. Eva aproximou-se dele e afagou-lhe a cabeça com carinho.
– Deixa o cavalo! – protestou o inventor.
– Cala-te! – ordenou a rapariga. – Não podemos deixá-lo aqui assim!
– O que é que queres fazer, ficar aqui até que nos apanhem?
– Não, dá-me só um momento.
Walter não respondeu, tentando tolerar as manias dela. Pouco depois, viu uma gorda lágrima a descer pela bochecha de Eva, enquanto esta afagava a cabeça do cavalo.
– Desculpa Elea – murmurou, beijando a testa da égua.
Subitamente, empunhou a faca que trazia ao cinto e, apontando ao pescoço, deu-lhe o golpe de misericórdia.
Seguiram caminho a galopar no outro cavalo. Porém, devido ao peso excessivo do par, este cansou-se rapidamente, tendo eles de prosseguir a trote. Quando o céu começou a clarear, estavam perto de uma vila abandonada da época do pré-Rerenascimento. Os telhados estavam caídos, carcaças de veículos antigos jaziam pelos cantos e a fauna e flora tinham invadido o espaço. Não parecia que nenhum humano ali tivesse posto os pés durante anos. O cavalo estava exausto e, por isso, consideraram que seria melhor passar o dia na cave do que fora outrora um prédio. O espaço era amplo, de modo que puderam prender o cavalo num dos pilares e instalar-se a alguma distância, para evitar o forte cheiro. Comeram restos que ela havia trazido da cozinha e adormeceram nos braços um do outro.
Walter despertou com uma voz de comando. A primeira impressão fora que a voz havia sido fabricada na sua mente. Contudo, ao ver que Eva também acordara, percebeu que estava enganado. O medo tomara conta dele, ao ponto de querer ser apenas um rato e esconder-se num canto. Ao ver a angústia no olhar dela, percebeu que não tinham saída. Paralisados pelo receio, não ousaram mexer-se, na esperança que não os encontrassem.
Tudo se revelou inútil já que, poucos minutos depois, os soldados do castro entravam no antigo estacionamento. Sem oferecer resistência, foram ambos escoltados para o exterior. Nenhum dos dois conseguiu apreciar a brisa daquela tarde de Outono. As pernas de Walter estavam como borracha, em antecipação ao momento em que iria enfrentar Artur. Apesar de saber que era apenas uma questão de tempo, suspirou de alívio ao descobrir que ele não estava naquele grupo de busca.
Durante o resto do dia, caminhou de volta para a cidade, pois não havia nenhum cavalo para ele. À noite não lhe deram nada para comer e ele sabia qual a razão. Era um homem morto. Durante a noite, não conseguiu dormir, na esperança em que houvesse uma oportunidade de fuga. Não teve sorte, já que um dos homens ficou de sentinela o tempo todo.
Eva seguia no outro extremo da fila. As vezes em que conseguira ver a sua expressão, encontrara-a sempre com os olhos vermelhos. Walter sabia que ela sofreria, mas o pai não iria castigá-la severamente. Ao fim de contras, Walter não tinha ilusões em quem Artur iria colocar as culpas.
A meio da manhã do terceiro dia, voltaram à cidade. O espírito de Walter estava completamente quebrado, pois era a segunda vez que percorria aquela rua como prisioneiro. Desta vez levaram-no para as catacumbas, por baixo do quartel militar. Trancaram-no numa cela minúscula, a qual continha somente um recipiente com água e um penico. As paredes eram de pedra nua e a luz entrava por uma fresta diminuta, que ficava acima do nível do olhar.
A parte final pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-segunda-e.html
Published on August 01, 2012 04:00
O monstro e a musa - décima primeira parte
– Sim, só me dói um pouco o ombro – queixou-se com um gemido.
O cavalo havia tropeçado numa depressão do terreno. Ao palpar-lhe o ombro, percebeu que se tratava apenas de uma ligeira contusão. O maior problema era o cavalo que não se conseguiria levantar, pois tinha partido uma pata ao embater numa rocha. Eva aproximou-se dele e afagou-lhe a cabeça com carinho.
– Deixa o cavalo! – protestou o inventor.
– Cala-te! – ordenou a rapariga. – Não podemos deixá-lo aqui assim!
– O que é que queres fazer, ficar aqui até que nos apanhem?
– Não, dá-me só um momento.
Walter não respondeu, tentando tolerar as manias dela. Pouco depois, viu uma gorda lágrima a descer pela bochecha de Eva, enquanto esta afagava a cabeça do cavalo.
– Desculpa Elea – murmurou, beijando a testa da égua.
Subitamente, empunhou a faca que trazia ao cinto e, apontando ao pescoço, deu-lhe o golpe de misericórdia.
Seguiram caminho a galopar no outro cavalo. Porém, devido ao peso excessivo do par, este cansou-se rapidamente, tendo eles de prosseguir a trote. Quando o céu começou a clarear, estavam perto de uma vila abandonada da época do pré-Rerenascimento. Os telhados estavam caídos, carcaças de veículos antigos jaziam pelos cantos e a fauna e flora tinham invadido o espaço. Não parecia que nenhum humano ali tivesse posto os pés durante anos. O cavalo estava exausto e, por isso, consideraram que seria melhor passar o dia na cave do que fora outrora um prédio. O espaço era amplo, de modo que puderam prender o cavalo num dos pilares e instalar-se a alguma distância, para evitar o forte cheiro. Comeram restos que ela havia trazido da cozinha e adormeceram nos braços um do outro.
Walter despertou com uma voz de comando. A primeira impressão fora que a voz havia sido fabricada na sua mente. Contudo, ao ver que Eva também acordara, percebeu que estava enganado. O medo tomara conta dele, ao ponto de querer ser apenas um rato e esconder-se num canto. Ao ver a angústia no olhar dela, percebeu que não tinham saída. Paralisados pelo receio, não ousaram mexer-se, na esperança que não os encontrassem.
Tudo se revelou inútil já que, poucos minutos depois, os soldados do castro entravam no antigo estacionamento. Sem oferecer resistência, foram ambos escoltados para o exterior. Nenhum dos dois conseguiu apreciar a brisa daquela tarde de Outono. As pernas de Walter estavam como borracha, em antecipação ao momento em que iria enfrentar Artur. Apesar de saber que era apenas uma questão de tempo, suspirou de alívio ao descobrir que ele não estava naquele grupo de busca.
Durante o resto do dia, caminhou de volta para a cidade, pois não havia nenhum cavalo para ele. À noite não lhe deram nada para comer e ele sabia qual a razão. Era um homem morto. Durante a noite, não conseguiu dormir, na esperança em que houvesse uma oportunidade de fuga. Não teve sorte, já que um dos homens ficou de sentinela o tempo todo.
Eva seguia no outro extremo da fila. As vezes em que conseguira ver a sua expressão, encontrara-a sempre com os olhos vermelhos. Walter sabia que ela sofreria, mas o pai não iria castigá-la severamente. Ao fim de contras, Walter não tinha ilusões em quem Artur iria colocar as culpas.
A meio da manhã do terceiro dia, voltaram à cidade. O espírito de Walter estava completamente quebrado, pois era a segunda vez que percorria aquela rua como prisioneiro. Desta vez levaram-no para as catacumbas, por baixo do quartel militar. Trancaram-no numa cela minúscula, a qual continha somente um recipiente com água e um penico. As paredes eram de pedra nua e a luz entrava por uma fresta diminuta, que ficava acima do nível do olhar.
Published on August 01, 2012 04:00
July 31, 2012
O monstro e a musa - parte 10/12
A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html
A nona parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-nona-parte.html
– Não! – respondeu bruscamente.
– Ainda bem – aceitou Artur, retirando-se de seguida.
O inventor não sabia se as palavras dele haviam sido sinceras. A negação fora demasiado brusca para passar despercebida. Era irrelevante, concluiu, pois ganhara tempo, que era o que mais precisava naquele momento. Achou melhor voltar aos seus aposentos.
Ao entrar, viu que Eva o esperava. Pareceu-lhe estar muito mais alegre que naquela manhã. Ela veio ao seu encontro e deu-lhe um abraço reconfortante, acompanhado de um beijo carinhoso.
– É perigoso vires aqui – protestou o inventor assim que se separaram.
– Já não faz diferença. Está tudo arranjado, deves descansar. Iremos partir ao fim da tarde.
– Qual é o plano?
– Confias em mim ou não? – devolveu ela, com um sorriso.
Dadas as circunstâncias, não sabia o que responder. Queria confiar contudo, a sua intuição dizia-lhe para ter cuidado. Detestava tomar decisões sem ter todas as informações.
– Se não confias em mim, o melhor é a nossa relação acabar aqui. Não precisamos de fugir. É mais fácil, nem sequer preciso de arriscar a minha vida por ti. Tu continuas com a tua vida e eu com a minha. Como fui parva ao achar que te preocupavas com os meus sentimentos... – escarneceu Eva, ao aperceber-se da hesitação.
– Chega! – interrompeu-a, falando num tom de voz mais elevado. – Não sabes do que falas! Se formos apanhados, os nossos destinos serão muito diferentes, vê se percebes isso! Se eu tivesse sabido quem eras desde o início, isto nunca teria acontecido.
– É isso que querias? Que a nossa relação nunca tivesse acontecido? – perguntou, com as lágrimas a galgarem-lhe as faces.
Detestava quando as conversas enveredavam por estes caminhos tão rapidamente. Por mais que lhe custasse a engolir o orgulho, não conseguia ficar zangado com ela.
– Não! – confessou, combatendo também a vontade de chorar.
Num impulso abraçou-a, apertando-a com força.
– Desculpa, eu não queria ter dito aquilo.
– Eu também não.
Esta pequena zanga fê-lo perceber que temia mais perdê-la do que a ira de Artur. Quebraram o abraço e beijaram-se apaixonadamente.
Como precisava de limar algumas arestas do plano, Eva deixou-o pouco depois.
Walter enfiou os seus parcos pertences na pasta e esperou pelo almoço. Este foi-lhe servido ao meio-dia exacto e consistia somente num peixe salgado acompanhado por um pão de trigo. Ao comer, não pôde deixar de pensar que aquela poderia ser a sua última refeição. Quando terminou, colocou o prato de lado, descalçou-se e fechou a portada. A escuridão invadiu a divisão.
Deitou-se, mas não conseguiu adormecer imediatamente. A sua mente tentava discernir qual o melhor caminho a seguir. À medida que acrescentava dados à equação, esta ia ficando mais complexa e os resultados mais confusos.
Acordou sobressaltado com duas pancadas suaves na porta. Era o sinal que ela lhe costumava dar. Levantou-se estremunhado e dirigiu-se à porta. Não falou, já que receava uma armadilha.
Num movimento, abriu a porta e deu de caras com Eva, que trazia o mesmo capuz daquela manhã. Num impulso, espreitou para o corredor e, não vendo mais ninguém, deixou-a entrar.
– Está na hora – explicou-lhe ela, estendendo-lhe outro capuz, antes de continuar. – Toma, veste isto.
O inventor obedeceu-lhe e ambos abandonaram o palácio pela escada de serviço pouco depois. Haviam sido abençoados com corredores vazios, de modo que não se cruzaram com ninguém até chegarem à rua. Deram a volta ao edifício e dirigiram-se aos estábulos.
– Vamos sair pelo portão principal antes que o fechem para a noite. Ainda pensei que podíamos sair pela antiga porta de carga, só que podia soar demasiado suspeito – revelou-lhe enquanto selava um garanhão castanho-escuro.
Ele assentiu e, uns minutos depois, atravessavam a entrada da cidade, cada um no seu cavalo, sem que ninguém os tentasse parar. Ainda nervosos, desceram a encosta do planalto, usando a mesma rota que os restantes viajantes. Sempre receosos, tomaram a direcção Sul no caminho principal. Durante um par de horas seguiram pela estrada a trote, até ao pôr-do-sol. Quando ficaram sozinhos, ao escurecer, abandonaram o caminho, seguindo a corta-mato.
Era lua nova, por isso inicialmente avançaram com cautela. Contudo, por insistência dela, desataram a galope pouco depois. Ambos queriam afastar-se tanto quanto possível da cidade antes do amanhecer. Por aquela altura, já deveriam ter dado pela sua falta. Todavia, pela primeira vez não se preocupou com isso. A sensação de liberdade apoderara-se inteiramente dele.
Inesperadamente, Eva foi projectada para a frente e Walter só teve tempo de fazer o seu cavalo parar
– Eva! Estás bem? – perguntou ao desmontar.
A décima primeira parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-primeira-parte.html
Published on July 31, 2012 04:00
O monstro e a musa - décima parte
– Não! – respondeu bruscamente.
– Ainda bem – aceitou Artur, retirando-se de seguida.
O inventor não sabia se as palavras dele haviam sido sinceras. A negação fora demasiado brusca para passar despercebida. Era irrelevante, concluiu, pois ganhara tempo, que era o que mais precisava naquele momento. Achou melhor voltar aos seus aposentos.
Ao entrar, viu que Eva o esperava. Pareceu-lhe estar muito mais alegre que naquela manhã. Ela veio ao seu encontro e deu-lhe um abraço reconfortante, acompanhado de um beijo carinhoso.
– É perigoso vires aqui – protestou o inventor assim que se separaram.
– Já não faz diferença. Está tudo arranjado, deves descansar. Iremos partir ao fim da tarde.
– Qual é o plano?
– Confias em mim ou não? – devolveu ela, com um sorriso.
Dadas as circunstâncias, não sabia o que responder. Queria confiar contudo, a sua intuição dizia-lhe para ter cuidado. Detestava tomar decisões sem ter todas as informações.
– Se não confias em mim, o melhor é a nossa relação acabar aqui. Não precisamos de fugir. É mais fácil, nem sequer preciso de arriscar a minha vida por ti. Tu continuas com a tua vida e eu com a minha. Como fui parva ao achar que te preocupavas com os meus sentimentos... – escarneceu Eva, ao aperceber-se da hesitação.
– Chega! – interrompeu-a, falando num tom de voz mais elevado. – Não sabes do que falas! Se formos apanhados, os nossos destinos serão muito diferentes, vê se percebes isso! Se eu tivesse sabido quem eras desde o início, isto nunca teria acontecido.
– É isso que querias? Que a nossa relação nunca tivesse acontecido? – perguntou, com as lágrimas a galgarem-lhe as faces.
Detestava quando as conversas enveredavam por estes caminhos tão rapidamente. Por mais que lhe custasse a engolir o orgulho, não conseguia ficar zangado com ela.
– Não! – confessou, combatendo também a vontade de chorar.
Num impulso abraçou-a, apertando-a com força.
– Desculpa, eu não queria ter dito aquilo.
– Eu também não.
Esta pequena zanga fê-lo perceber que temia mais perdê-la do que a ira de Artur. Quebraram o abraço e beijaram-se apaixonadamente.
Como precisava de limar algumas arestas do plano, Eva deixou-o pouco depois.
Walter enfiou os seus parcos pertences na pasta e esperou pelo almoço. Este foi-lhe servido ao meio-dia exacto e consistia somente num peixe salgado acompanhado por um pão de trigo. Ao comer, não pôde deixar de pensar que aquela poderia ser a sua última refeição. Quando terminou, colocou o prato de lado, descalçou-se e fechou a portada. A escuridão invadiu a divisão.
Deitou-se, mas não conseguiu adormecer imediatamente. A sua mente tentava discernir qual o melhor caminho a seguir. À medida que acrescentava dados à equação, esta ia ficando mais complexa e os resultados mais confusos.
Acordou sobressaltado com duas pancadas suaves na porta. Era o sinal que ela lhe costumava dar. Levantou-se estremunhado e dirigiu-se à porta. Não falou, já que receava uma armadilha.
Num movimento, abriu a porta e deu de caras com Eva, que trazia o mesmo capuz daquela manhã. Num impulso, espreitou para o corredor e, não vendo mais ninguém, deixou-a entrar.
– Está na hora – explicou-lhe ela, estendendo-lhe outro capuz, antes de continuar. – Toma, veste isto.
O inventor obedeceu-lhe e ambos abandonaram o palácio pela escada de serviço pouco depois. Haviam sido abençoados com corredores vazios, de modo que não se cruzaram com ninguém até chegarem à rua. Deram a volta ao edifício e dirigiram-se aos estábulos.
– Vamos sair pelo portão principal antes que o fechem para a noite. Ainda pensei que podíamos sair pela antiga porta de carga, só que podia soar demasiado suspeito – revelou-lhe enquanto selava um garanhão castanho-escuro.
Ele assentiu e, uns minutos depois, atravessavam a entrada da cidade, cada um no seu cavalo, sem que ninguém os tentasse parar. Ainda nervosos, desceram a encosta do planalto, usando a mesma rota que os restantes viajantes. Sempre receosos, tomaram a direcção Sul no caminho principal. Durante um par de horas seguiram pela estrada a trote, até ao pôr-do-sol. Quando ficaram sozinhos, ao escurecer, abandonaram o caminho, seguindo a corta-mato.
Era lua nova, por isso inicialmente avançaram com cautela. Contudo, por insistência dela, desataram a galope pouco depois. Ambos queriam afastar-se tanto quanto possível da cidade antes do amanhecer. Por aquela altura, já deveriam ter dado pela sua falta. Todavia, pela primeira vez não se preocupou com isso. A sensação de liberdade apoderara-se inteiramente dele.
Inesperadamente, Eva foi projectada para a frente e Walter só teve tempo de fazer o seu cavalo parar
– Eva! Estás bem? – perguntou ao desmontar.
Published on July 31, 2012 04:00
July 30, 2012
O monstro e a musa - nona parte
– Espero converter os moinhos em geradores eólicos, guardar a energia obtida em condensadores e usá-la quando não houver vento...
– O que é um condensador e como é que funciona? – interrompeu Aristides.
– Muito simples. Pegamos num recipiente com líquido e mergulha-se dois fios de cobre nele. Ao passar corrente eléctrica, iremos carregar o líquido com energia. Basta ligar esses dois cabos e recebemos essa energia de volta.
– E isso funciona? – duvidou Aristides.
– Sim, o aparato que construí nos jardins prova isso mesmo.
– Parece-me um bom tópico. Por favor, fale-nos da máquina que instalou no jardim – solicitou Artur.
– Alguns metais geram corrente eléctrica quando expostos à luz solar. Tendo isso em conta, eu montei um aparato que recolhe essa energia e a guarda nesses tais condensadores. O objectivo é providenciar iluminação durante a noite. Para tal fazemos passar corrente por um filamento de tungsténio dentro de uma ampola, cujo ar foi previamente retirado. Isso poderia poupar bastante óleo ao castro...
– Óleo não é um recurso crítico! – protestou Igor, o mais velho dos assessores.
– É verdade, mas o facto de reduzirmos a quantidade de materiais que temos de elevar diariamente cria-nos a possibilidade de reduzir a velocidade do elevador e assim operá-lo somente com a força da água.
– Parece-me ser um bom curso de acção – decidiu Artur, fazendo sinal aos assessores para não interferirem mais na conversa. – Agora diga-me, o que pretende fazer nos próximos três meses?
– Vou represar o curso de água e usá-lo para mover o elevador. Como já referi, quero mudar os moinhos de vento para poderem abastecer a cidade com água. Por fim, quero alargar o experimento com os condensadores, para tentar iluminar uma parte da cidade.
– E que dificuldades técnicas espera encontrar?
– Os fios condutores não são puros o suficiente, causando aquecimento e perdas consideráveis. Espero que a metalurgia consiga providenciar melhores materiais. Os condensadores não possuem uma grande capacidade, contudo espero conseguir melhorá-la substancialmente nas próximas semanas...
Hesitou, pois havia outro problema, um pouco mais grave. A energia eléctrica gerada pelos metais irradiados e pelos geradores era diferente. Só a primeira podia ser guardada e não podia ser usada para mover motores. Não sabia qual a diferença entre as duas e, como tal, não fazia ideia de como ultrapassar este obstáculo. Algo lhe dizia que Artur não iria aceitar bem tal limitação e sabia que na era nuclear aquele problema havia sido resolvido, de modo que optou pela via do silêncio.
– Creio que esses problemas podem ser resolvidos com tempo. Estamos muito satisfeitos com o teu desempenho, o consumo de carvão tem diminuído gradualmente. Esperamos que, ao estenderes as invenções para outros sistemas, nos poderemos libertar desta dependência. Se ninguém tem mais nada a dizer, eu darei esta reunião por terminada – concluiu o líder do castro.
Ninguém ousou contrariá-lo. Assim que os assessores começaram a dispersar, Artur veio ao seu encontro. A expressão amistosa tinha desaparecido de todo.
– Preciso de falar contigo, em privado. Espera por mim no corredor – pediu, enquanto cumprimentava o inventor.
O sangue gelou-se-lhe nas veias ao apertar a mão do governante.
– Sim, claro... – balbuciou em pânico, sabendo que Artur leria facilmente as suas expressões.
Abandonou a sala, completamente alheado da realidade e tomado pelo medo. Houve um momento de hesitação em que pensou em fugir. Todavia, em plena luz do dia, isso seria suicídio. Deu voltas e mais voltas, percorrendo o corredor de ponta a ponta. A sua cabeça dava ainda mais voltas, pois não sabia o que fazer.
Quando o pai de Eva apareceu, já Walter estava no mais profundo dos abismos psicológicos.
– Desculpa ter-te feito esperar. Vou ser directo e sincero contigo, eu sei que me estás a esconder algo. Tens duas hipóteses: dizes-me o que é, ou eu descubro e tu sofrerás as consequências. O que preferes?
Quis falar, mas as palavras não lhe obedeciam. Gostava de pelo menos saber a que é que ele se referia. Se lhe falasse sobre Eva, talvez pudesse escapar vivo, pois ainda precisavam dele. Ao revelar sobre os problemas técnicos, poderia ter algum tipo de complacência, já que o obstáculo poderia ainda ser ultrapassado. Recordou-se que Eva prometera-lhe uma fuga, de modo que o mais sensato seria falar do problema técnico e esperar que a fuga se consumasse com sucesso.
Ao explicar as limitações entre os dois tipos de corrente eléctrica, viu que a expressão de Artur se ia suavizando.
– Ainda bem que me contaste. Não precisas de te preocupar, os teus esforços estão a dar-nos tempo. E tempo poderá dar-nos mais soluções. Tenta resolver o problema e, mesmo que não consigas, havemos sempre de conseguir diminuir o consumo de carvão – Artur fez uma pausa, olhando-o nos olhos. – Há uma coisa que te quero contar. A mina tem mais carvão do que te dissemos. O grande problema é a presença de metais pesados, que tememos serem radioactivos. A cada ano que passa, a concentração tem aumentado, o que está a provocar doenças nos trabalhadores e até mesmo nas pessoas da cidade. É certo que a queima de carvão provoca doenças respiratórias, contudo o ritmo a que têm aumentado nos últimos cinco anos deixou-nos alarmados. Não são dezenas nem centenas, isto pode afectar uma em cada cinco pessoas em menos de vinte anos. Percebes agora a urgência do projecto?
Walter acenou com a cabeça, sabendo que a sua fuga seria ainda mais difícil do que antecipara.
– E claro, a capacidade da mina é finita. Não haverá carvão, mesmo contando com o que está contaminado, para mais de quinze anos. Peço desculpa por não te ter dito antes, mas o conselho não havia autorizado – explicou o líder do castro.
– Vou dar o meu melhor – prometeu Walter, esperando que o tom soasse convincente.
– Eu acredito que sim. Já agora, estás a esconder-me mais alguma coisa? – inquiriu de surpresa.
– O que é um condensador e como é que funciona? – interrompeu Aristides.
– Muito simples. Pegamos num recipiente com líquido e mergulha-se dois fios de cobre nele. Ao passar corrente eléctrica, iremos carregar o líquido com energia. Basta ligar esses dois cabos e recebemos essa energia de volta.
– E isso funciona? – duvidou Aristides.
– Sim, o aparato que construí nos jardins prova isso mesmo.
– Parece-me um bom tópico. Por favor, fale-nos da máquina que instalou no jardim – solicitou Artur.
– Alguns metais geram corrente eléctrica quando expostos à luz solar. Tendo isso em conta, eu montei um aparato que recolhe essa energia e a guarda nesses tais condensadores. O objectivo é providenciar iluminação durante a noite. Para tal fazemos passar corrente por um filamento de tungsténio dentro de uma ampola, cujo ar foi previamente retirado. Isso poderia poupar bastante óleo ao castro...
– Óleo não é um recurso crítico! – protestou Igor, o mais velho dos assessores.
– É verdade, mas o facto de reduzirmos a quantidade de materiais que temos de elevar diariamente cria-nos a possibilidade de reduzir a velocidade do elevador e assim operá-lo somente com a força da água.
– Parece-me ser um bom curso de acção – decidiu Artur, fazendo sinal aos assessores para não interferirem mais na conversa. – Agora diga-me, o que pretende fazer nos próximos três meses?
– Vou represar o curso de água e usá-lo para mover o elevador. Como já referi, quero mudar os moinhos de vento para poderem abastecer a cidade com água. Por fim, quero alargar o experimento com os condensadores, para tentar iluminar uma parte da cidade.
– E que dificuldades técnicas espera encontrar?
– Os fios condutores não são puros o suficiente, causando aquecimento e perdas consideráveis. Espero que a metalurgia consiga providenciar melhores materiais. Os condensadores não possuem uma grande capacidade, contudo espero conseguir melhorá-la substancialmente nas próximas semanas...
Hesitou, pois havia outro problema, um pouco mais grave. A energia eléctrica gerada pelos metais irradiados e pelos geradores era diferente. Só a primeira podia ser guardada e não podia ser usada para mover motores. Não sabia qual a diferença entre as duas e, como tal, não fazia ideia de como ultrapassar este obstáculo. Algo lhe dizia que Artur não iria aceitar bem tal limitação e sabia que na era nuclear aquele problema havia sido resolvido, de modo que optou pela via do silêncio.
– Creio que esses problemas podem ser resolvidos com tempo. Estamos muito satisfeitos com o teu desempenho, o consumo de carvão tem diminuído gradualmente. Esperamos que, ao estenderes as invenções para outros sistemas, nos poderemos libertar desta dependência. Se ninguém tem mais nada a dizer, eu darei esta reunião por terminada – concluiu o líder do castro.
Ninguém ousou contrariá-lo. Assim que os assessores começaram a dispersar, Artur veio ao seu encontro. A expressão amistosa tinha desaparecido de todo.
– Preciso de falar contigo, em privado. Espera por mim no corredor – pediu, enquanto cumprimentava o inventor.
O sangue gelou-se-lhe nas veias ao apertar a mão do governante.
– Sim, claro... – balbuciou em pânico, sabendo que Artur leria facilmente as suas expressões.
Abandonou a sala, completamente alheado da realidade e tomado pelo medo. Houve um momento de hesitação em que pensou em fugir. Todavia, em plena luz do dia, isso seria suicídio. Deu voltas e mais voltas, percorrendo o corredor de ponta a ponta. A sua cabeça dava ainda mais voltas, pois não sabia o que fazer.
Quando o pai de Eva apareceu, já Walter estava no mais profundo dos abismos psicológicos.
– Desculpa ter-te feito esperar. Vou ser directo e sincero contigo, eu sei que me estás a esconder algo. Tens duas hipóteses: dizes-me o que é, ou eu descubro e tu sofrerás as consequências. O que preferes?
Quis falar, mas as palavras não lhe obedeciam. Gostava de pelo menos saber a que é que ele se referia. Se lhe falasse sobre Eva, talvez pudesse escapar vivo, pois ainda precisavam dele. Ao revelar sobre os problemas técnicos, poderia ter algum tipo de complacência, já que o obstáculo poderia ainda ser ultrapassado. Recordou-se que Eva prometera-lhe uma fuga, de modo que o mais sensato seria falar do problema técnico e esperar que a fuga se consumasse com sucesso.
Ao explicar as limitações entre os dois tipos de corrente eléctrica, viu que a expressão de Artur se ia suavizando.
– Ainda bem que me contaste. Não precisas de te preocupar, os teus esforços estão a dar-nos tempo. E tempo poderá dar-nos mais soluções. Tenta resolver o problema e, mesmo que não consigas, havemos sempre de conseguir diminuir o consumo de carvão – Artur fez uma pausa, olhando-o nos olhos. – Há uma coisa que te quero contar. A mina tem mais carvão do que te dissemos. O grande problema é a presença de metais pesados, que tememos serem radioactivos. A cada ano que passa, a concentração tem aumentado, o que está a provocar doenças nos trabalhadores e até mesmo nas pessoas da cidade. É certo que a queima de carvão provoca doenças respiratórias, contudo o ritmo a que têm aumentado nos últimos cinco anos deixou-nos alarmados. Não são dezenas nem centenas, isto pode afectar uma em cada cinco pessoas em menos de vinte anos. Percebes agora a urgência do projecto?
Walter acenou com a cabeça, sabendo que a sua fuga seria ainda mais difícil do que antecipara.
– E claro, a capacidade da mina é finita. Não haverá carvão, mesmo contando com o que está contaminado, para mais de quinze anos. Peço desculpa por não te ter dito antes, mas o conselho não havia autorizado – explicou o líder do castro.
– Vou dar o meu melhor – prometeu Walter, esperando que o tom soasse convincente.
– Eu acredito que sim. Já agora, estás a esconder-me mais alguma coisa? – inquiriu de surpresa.
Published on July 30, 2012 04:00