Pedro Cipriano's Blog, page 71

August 27, 2012

A selva


Nada deixava Guchu mais deprimido do que relembrar os três anos que passara naquele planeta azul. Poderia até ser interessante a posição de diplomata numa civilização de macacos, contudo, as suas atitudes deixavam-no quase sempre à beira de um ataque de fúria. Felizmente, a manhã estava solarenga e a comissão terminava nesse dia. O seu transporte não tardaria.

À primeira vista até se podia pensar que estávamos perante uma civilização evoluída e inteligente. Havia uma sociedade e a tecnologia desenvolvia-se a bom ritmo. Ainda bem que o tinham enviado, caso contrário iriam achar que estavam perante seres sofisticados.

A coisa mais irritante acerca daqueles macacos era sem dúvida o cuidado que tinham em manter certos rituais obsoletos. Todas aquelas formas demoradas de cumprimento esgotavam rapidamente a sua paciência.

A segunda coisa era no mínimo idiota, pois aqueles macacos adoravam manter aparências. Uma facção podia estar no limiar da pobreza ou derrota, contudo os seus líderes comportavam-se como se nada se passasse. Mais valia manter as aparências na queda do que descuidar o sorriso na vitória.

A última, e não menos ridícula, era o facto destes primatas passarem grande parte do tempo a tentarem enganar-se uns aos outros. Todas as regras e costumes eram tais que era sempre possível tirar partido do outro de maneiras muito pouco claras e nada justas. Este tipo de falcatruas era bastante frequente.

Apesar da bazófia e de se acharem com um grande poderio militar e armas devastadoras, estes mamíferos não faziam ideia do que se passava no resto do universo. Se imaginassem, nunca quereriam deixar aquela rocha periférica. No somatório de tudo, se lhe pedissem um relatório detalhado, ele poderia resumir a sua experiência, em jeito de anedota, numa palavra “inofensivo”.

Naquele momento recebeu uma mensagem, avisando-o que rebentara uma nova guerra no sector Gamma contra os lagartos e que os transportes poderiam estar condicionados durante a duração do conflito. Pouco depois recebeu outra e quase adivinhou o seu conteúdo. A missiva informava-o que acabara de ser promovido e que a sua comissão se prolongaria por outros três anos.

Frustrado, passou o resto do dia a escrever um relatório detalhado sobre o que se passara durante os últimos 36 meses. Já caíra a noite quando ele o leu e alterou pela última vez. Então, num instante de fúria, apagou todo o texto e enviou apenas “Inofensivo e primitivo. Tirem-me daqui!”.

Este texto foi escrito como trabalho de um grupo de escrita.
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Published on August 27, 2012 04:00

August 24, 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 3/3


O início está presente em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-primeira-parte.html

A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-segunda-parte.html

Os relatórios das preparações alemãs continuaram a chegar mas, como ditador autoritário, não pudera crer que a situação pudesse ficar fora do seu controlo. Quando finalmente se convenceu que a invasão era iminente, dera as ordens para ficarem em alerta máximo contra uma ofensiva. Muitos dos oficiais da marinha e do exército simplesmente ignoraram-nas, por não acreditarem nessa possibilidade. Para a maioria das unidades, a ordem não chegou sequer a tempo.
Quando as notícias catastróficas da invasão chegaram aos seus ouvidos, ele simplesmente se deixara afundar na cadeira, ficando calado. Se o avanço alemão se tivesse mantido com a mesma velocidade, teria chegado a Moscovo em poucas semanas, como fizera em França. As suas assumpções erradas e maus cálculos tinham-no levado àquele ponto, e o pior era que, em grande parte, a culpa fora sua. Durante as primeiras horas, face aos relatórios desastrosos da frente, até considerara a hipótese duma tentativa de acordo de paz com a Alemanha, concedendo os territórios dos países de Leste.
A Rússia perdera quantidades gigantescas de homens e material nos primeiros dias da guerra. Naquele momento, mais de um ano depois, estava em risco não só o plano, como também a sobrevivência da própria nação.
Ioseb soubera exactamente quais as forças dos alemães e quais as suas, previra uma vitória fácil, mas não havia sido esse o resultado. O factor surpresa, aliado a tácticas militares mais avançadas, fora decisivo. Definitivamente, tinha sobrestimado a sua força militar e subestimado a do inimigo. Tinha ignorado os sinais antes da invasão, pensando não passarem de um jogo político de Hitler para ganhar mais alguns territórios.
Ioseb ainda não se convencera totalmente que a sua interferência política no exército, durante os anos 30, pudesse ter sido o ponto de partida para esta situação, apesar de saber que algumas pessoas fossem secretamente dessa opinião.
A culpa era, sem dúvida, do exército, que não cumprira o seu propósito. Tinha enviado divisão atrás de divisão contra os alemães no ano anterior, tudo sem qualquer resultado aparente, nada tinha sido capaz de pará-los. Corriam informações controversas de que alguns russos não só se haviam rendido, como haviam escolhido lutar ao lado dos alemães. Era verdadeiramente ultrajante alguém trair assim a Terra-Mãe.
O problema da disciplina era o único que poderia resolver naquele momento, esperando que isso fosse suficiente para virar o rumo dos acontecimentos.
― Faltam-nos ordem e disciplina nas companhias, nos regimentos e nas divisões, nas unidades blindadas e nos esquadrões da Força Aérea. Esta é a nossa maior falha. Temos que introduzir a mais precisa e forte disciplina no nosso exército, se queremos salvar a situação e defender a Terra-Mãe. Não podemos mais tolerar comandantes, comissários e oficiais políticos cujas unidades deixam a defesa relaxar. Não podemos mais tolerar o facto de que comandantes, comissários e oficiais políticos deixem os cobardes mandarem no campo de batalha, que os vendilhões de pânico levem outros soldados na sua fuga e deixem o caminho aberto para os inimigos. A partir de agora, vendilhões de pânico e cobardes deverão ser mortos no local.
Ioseb iria basear-se no que os alemães haviam feito para aumentar a disciplina na Wehrmacht. Bastava copiar a solução deles e aplicá-la no exército russo. Deveriam remover as insígnias a cada um desses militares e enviá-los para batalhões penais. A ideia da redenção através do sangue agradava-lhe bastante. Se resultara com a Alemanha, porque não haveria de resultar na União Soviética?
― A partir de agora, a disciplina será aplicada rigorosamente a cada oficial, soldado e oficial político. A partir de agora, nem um passo atrás sem ordem superior. Os comandantes de companhias, batalhões, regimentos e divisões, assim como os comissários e os oficiais políticos das patentes correspondentes, que recuarem sem ordens superiores, serão denominados traidores à Terra-Mãe. Serão tratados como traidores da Terra Mãe. Isto é um chamado da nossa Terra-Mãe. Cumprir esta ordem significa defender a nossa nação, salvar a nossa Terra-Mãe, ultrapassar e destruir o nosso odiado inimigo.
Esses batalhões penais seriam colocados nas secções mais perigosas da frente. Lavariam as suas faltas com o seu sangue. Iria guardar esses batalhões com outros batalhões mais leais e mais bem armados, que disparariam contra quem tentasse fugir. Não iria deixar que os alemães atravessassem o rio Volga, era altura de mudar o rumo aos acontecimentos.
Terminou as alterações ao discurso, especialmente nos detalhes em relação às medidas a aplicar. Devolveu os papéis a Aleksandr que voltou a deixar a sala.
Duas horas mais tarde, Aleksandr voltou com o documento corrigido e dactilografado. Ioseb Stalin assinou então o documento que ficou oficialmente conhecido como ordem número 227; porém, para o comum dos soldados, a ordem ficara conhecida como “Nem mais um passo atrás!”, uma ordem que seria apreciada por poucos e temida por muitos.

FIM
Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.
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Published on August 24, 2012 04:00

August 22, 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 2/3


A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-primeira-parte.html

― Cada comandante, soldado e comissário tem que entender que os nossos recursos não são infinitos. O território da União Soviética não é uma vastidão selvagem, pois está povoado por pessoas: trabalhadores, aldeões, intelectuais, os nossos pais e nossas mães, esposas, irmãos e crianças. O território da Rússia capturado pelo inimigo é pão e outros recursos para o exército e cidadãos, ferro e combustível para as indústrias, fábricas que fornecem os militares com equipamento e munições; e também caminhos-de-ferro. Já não temos superioridade sobre o inimigo em recursos e abastecimento de pão. Prosseguir com a retirada significa destruirmos-nos a nós mesmos e à nossa Terra-Mãe. Cada novo pedaço de território que deixamos ao inimigo deixa-os mais fortes e, a nós, às nossas defesas e à nossa Terra-Mãe, mais fracos.
Emocionou-se ligeiramente. O seu próprio filho havia sido capturado pelos Nazis no ano anterior. Não que se sentisse realmente ligado ao seu filho Yakov, somente porque ele era o último traço da única mulher que Ioseb alguma vez amara.
Pensou como sentia a falta de Ekaterina. Perguntava-se sobre o porquê duma morte tão prematura. Após o casamento, haviam tido somente quatro anos juntos, antes de ela morrer de tifo. Os momentos que partilharam foram tão felizes como efémeros. Ioseb não conseguia ficar indiferente àquelas memórias.
Infelizmente, o filho que ela deixara no mundo não era um exemplo para ninguém. Era absolutamente humilhante relembrar o dia em que se tentara suicidar devido a um desentendimento com um rabo de saias. Nem tão pouco conseguira apontar correctamente a pistola, de modo que falhara. Pior que esse episódio era o facto de se ter deixado capturar vivo pelos alemães.
Não podia deixar-se amolecer com aqueles sentimentos nostálgicos. Também ele estivera preso em campos de concentração por três vezes, sendo libertado somente numa delas; nas outras duas, conseguira escapar pelos seus próprios meios. Yakov era um inútil, concluiu, e um traidor por se deixar capturar tão facilmente pelos Nazis. Deveria ter lutado até a morte como qualquer soldado russo que amasse a Terra-Mãe. Envergonhava-o o facto de ter um filho assim. Como pai, não fora fácil, no entanto, já há meses que tinha tomado a decisão de rejeitar todas as propostas de troca por outros prisioneiros. Não iria ter um tratamento preferencial só por ser seu filho.
Ioseb voltou ao discurso, já tinha um lema na cabeça para dar vida a esta ordem. Sabia que não seria a primeira pessoa a usar essas palavras, no entanto, cabia-lhe usá-las novamente para inspirar o povo russo, como outros líderes já haviam feito com os seus povos. Acrescentou as duas linhas no texto, lançando um slogan:
― A conclusão é que é a altura para parar de fugir. Nem mais um passo atrás! Este será o nosso lema daqui em diante.
Ele sabia que teria de aproveitar o lema que acabara de introduzir e, por isso, modificou o texto que vinha no parágrafo seguinte.
― Temos de proteger cada fortaleza, teimosamente cada metro de solo Soviético, até à última gota de sangue; agarrar cada peça do nosso solo e defendê-lo enquanto for possível. A nossa Terra-Mãe irá passar tempos difíceis. Temos que os parar e, depois, mandá-los de volta e destruir o inimigo a qualquer custo. Os alemães não são tão fortes como os vendilhões de pânico dizem. Eles estão a esticar a sua força ao limite. Aguentar o seu golpe agora significa assegurar a vitória no futuro.
Ioseb ainda se lembrava do plano original para submeter completamente a Europa: apoiar diplomaticamente os alemães, encorajando-os para uma guerra. Os banqueiros ingleses e americanos estavam a agir do mesmo modo, apoiando a Alemanha economicamente. A Rússia fizera o melhor que podia ter fazer naquele ponto: manter-se neutra. Eventualmente, quando reunissem as condições necessárias, os Nazis iriam querer vingar-se da derrota que haviam sofrido na guerra anterior, atacando a França, Polónia e talvez o Reino Unido.
O plano era deixar os europeus lutarem entre si até estarem completamente esgotados e, no fim, atacaria a Alemanha e ocuparia esses países. A Rússia seria vista como arauto da paz e a salvadora da tirania Nazi e, provavelmente, poderia ocupar efectivamente esses países ou, pelo menos, torná-los estados semi-dependentes. Era a maneira mais fácil de expandir a esfera de influência da União Soviética e espalhar os ideias do comunismo, que eram, sem dúvida, melhores que o paradigma do capitalismo.
Claramente tinha subestimado a intuição de Hitler pois, de algum modo, ele tinha previsto o seu plano e antecipado uma resposta, atacando a União Soviética duma forma inesperada.
Os alemães não haviam feito muito esforço para esconder as preparações para o ataque, o que lhe fez crer que era apenas mais uma jogada política para conseguir a cedência de alguns territórios nos países de leste. O voo de Rudolf Hess para o Reino Unido só fazia com que a suspeita duma conspiração Germano-Britânica contra a Rússia ganhasse força na sua cabeça. O facto do embaixador alemão em Moscovo ter revelado os planos de Hitler uns dias antes só fez com que a situação parecesse cada vez mais uma conspiração. Chegou ao ponto de ele ter explodido de raiva, declarando que a desinformação chegara ao nível dos embaixadores. Até ao último momento, não considerara a hipótese duma invasão alemã, e ficara com receio de provocar a Alemanha, porque sabia que ainda era muito cedo para a Rússia a desafiar.


Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.
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Published on August 22, 2012 04:00

August 20, 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 1/3


O dia tinha começado para Ioseb quando Aleksandr iniciou a leitura do seu relatório sobre a queda de Rostov. Ioseb sabia que a situação era crítica, pois o país corria um sério risco de ser cortado em dois e, se isso acontecesse, não poderiam receber mais ajuda inglesa nem americana.
Tinha bebido demasiado vinho na noite anterior mas, ao contrário do que muitos pensavam, o vinho aclarava-lhe as ideias ao invés das turvar. Era certamente um vício, mas sabia que conseguia controlá-lo na perfeição. Ioseb deu por si a olhar para o cabelo de Aleksandr enquanto ele expunha a situação, tentando perceber o porquê de usá-lo penteado para a esquerda, de uma maneira que considerava verdadeiramente ridícula.
― Espera lá! Repete o que disseste. ― ordenou Ioseb, subitamente alerta.
Aleksandr repetiu enquanto Ioseb se esforçava por se concentrar, andando para a frente e para trás na sala. Ao ouvir novamente, confirmou as suspeitas fundamentadas nos fragmentos que captara da primeira leitura.
― Esqueceram-se da minha ordem para as forças armadas! ― exaltou-se subitamente, interrompendo a leitura Referia-se à ordem que dera em Agosto passado, que definia o modo de lidar com desertores.
Aleksandr ficou estático, esperando que Ioseb continuasse.
― Esqueceram-na! ― repetiu, como se quisesse convencer-se a si mesmo.
A cabeça de Aleksandr fervilhava, tentando encontrar uma boa desculpa. Não fazia parte dos seus planos ser executado por traição.
― Escreve outra nos mesmos moldes! ― ordenou, virando-se para Aleksandr.
― Para quando quer que esteja pronta? ― perguntou Aleksandr, aliviado pela súbita mudança de atitude.
― Hoje! Avisa-me directamente assim que esteja pronta! ― ordenou Ioseb, ainda pensativo.
Ioseb passou o resto da manhã a divagar mentalmente, imaginando como seria bom poder ver um filme de cowboys acompanhado pelos outros membros do partido. Não que muitos fossem realmente seus amigos, a maioria esperava somente um momento de fraqueza da sua parte para ficarem com o seu lugar. Olhou várias vezes pela janela, para vislumbrar as ruas da capital russa, as quais haviam escapado à águia Nazi no ano anterior, quase por milagre. Tinha esperança de conseguir deter a campanha dos alemães daquele ano, sem ceder muito território. A estratégia de esgotá-los ao ponto da ruptura não havia tido resultados positivos até ao momento. As divisões alemãs avançavam impiedosamente, sem terem grandes perdas materiais nem humanas. Para além disso, Estalinegrado, a cidade que fora renomeada em sua honra, estava perigosamente exposta. Não havia maneira de ficar indiferente aos acontecimentos.
Quando Aleksandr voltou, já à tarde, com um rascunho da ordem, Ioseb não perdeu tempo. Pegou na folha de papel dactilografada e começou a lê-la em voz alta, como se fosse ele mesmo a dar o discurso pessoalmente a todo o Exército Vermelho. Ajudava-o a perceber os defeitos do texto.
― O inimigo usa cada vez mais e mais recursos na frente de batalha e, não prestando atenção às perdas, movimenta-se, penetra mais fundo na União Soviética, captura novas áreas, devasta e saqueia as nossas cidades e aldeias, viola, mata e rouba o povo soviético. Algumas unidades na frente Sul, seguindo as sugestões dos vendilhões de pânico, abandonaram Rostov e Novocherkassk sem uma resistência séria, nem qualquer ordem de Moscovo, cobrindo, assim, de vergonha os seus estandartes.
Aquelas palavras iriam inflamar o patriotismo. Era um bom início, pois era necessário fundamentar a ordem. Os tempos eram demasiado difíceis e, se deixassem de obedecer às suas ordens, seria o completo desastre. Nem sempre as ordens careciam de uma explicação propriamente dita, a maioria das vezes bastava uma motivação. Invocar o patriotismo era premissa mais que suficiente para todo o tipo de exigências. Naquele momento, cada ordem fazia a diferença entre a derrota e a vitória, pois nunca a União Soviética estivera tão perto de ser derrotada, nem mesmo no Verão anterior, quando os alemães chegaram às portas de Moscovo.
― A população do nosso país, que ama e respeita o Exército Vermelho, está a ficar desapontada com ele, perdendo gradualmente a fé no mesmo. Muitos amaldiçoam o Exército por fugir para Este e deixar a população debaixo das garras dos alemães.
Isto deveria convencer, mesmo os mais pacíficos, de que a situação não se resolveria com medidas suaves, sem criticar em demasia o exército. Estava satisfeito com o resultado.
― Algumas pessoas na frente confortam-se com argumentos descuidados, afirmando que podemos continuar a fugir para Este, pois temos um território vasto com muito solo e pessoas, e que teremos sempre abundância de pão. Com tais argumentos, eles tentam justificar o seu vergonhoso comportamento na frente. Esses argumentos são totalmente falsos, errados, e só favorecem os nossos inimigos.
Fez uma pausa. Parecia-lhe adequado, deveriam mostrar a todos que os que defendiam que a situação se poderia manter daquela forma eram inimigos da nação. No entanto, esta parte do discurso não podia ser muito dura, pois tinham primeiro que ganhar a simpatia dos que ainda eram leais à nação, convencendo-os que algumas coisas teriam de ser alteradas. Só mais tarde é que iriam impor as novas regras, quando estivessem prontos a aceitá-las.
Ao ler o parágrafo seguinte, ficou desapontado. Aleksandr tinha-se limitado a citar os factos duma maneira ingénua e simplista. Não bastava revelar simplesmente a verdade, era também necessário exagerá-la um pouco, quase ao ponto duma dramatização. Fez algumas alterações ao parágrafo e voltou a lê-lo em voz alta, de modo a testar o seu efeito.







Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.
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Published on August 20, 2012 04:00

August 17, 2012

O Duende


Naquele dia Carlos não conduzia o seu habitual carro de patrulha. Não estava de serviço, nem tão pouco poderia alguma vez explicar aos seus superiores o que tinha em mente para aquele fim-de-tarde. O sol ainda ai alto quando o quarentão saiu da esquadra para procurar o Duende.

É certo e sabido que os duendes são criaturas baixas, que andam por aí a assobiar, sempre prontos a pregar alguma partida, quais crianças travessas. Tudo isso era irrelevante, já que a única coisa que interessava aquele policia de meia idade era justamente o prémio que se obtêm quando se captura uma dessas criaturas. Se por acaso alguém lhe lesse os pensamentos naquele momento, iria certamente achar que estava na presença de um lunático.

Conduziu até à zona adjacente à zona de risco. Mais não se atrevia, pois conheciam a sua face e a última coisa que queria era ser apanhado por algum gangue. Enquanto fosse dia e se mantivesse neste bairro, não haveria problemas. Estacionou perto da escola e saiu do carro. Olhou em volta e com um ar confiante colocou os óculos escuros. Era a altura do espectáculo.

A qualquer momento os alunos iriam sair das aulas e com eles apareceria o Duende. Se o apanhasse, poderia finalmente pagar as duas prestações da casa que tinha em atraso. Fez o melhor que conseguiu para se fundir no ambiente e não chamar às atenções.

Num instante o pátio da secundária e a saída foram invadidos por uma multidão jovem. Carlos começou a entrar em pânico, o que lhe parecera fácil, estava a complicar-se a olhos vistos. O tentava perscrutar cada uma das faces, mas com tanto movimento, a tarefa era praticamente impossível.

Quando estava prestes a desistir, notou algo estranho pelo canto do olho. Um baixote, vestido com trapos coloridos e um chapéu esquisito. Passaria por uma criança em ponto grande ou um jovem com problemas mentais. Assobiava e caminhava alegremente em direcção à entrada.

O agente começou a caminhar na direcção do Duende, tentando parecer casual. Todos continuavam a desempenhar descontraidamente as suas rotinas e ninguém parecia ter ainda dado pela presença de ambos. Tudo pararia se soubessem a tensão daquele momento.

– Anda comigo, precisamos de falar. – ordenou Carlos, pegando o Duende pelo braço.

– Eu não fiz nada... – respondeu-lhe o jovem, entre o surpreendido e o assustado.

– Não te vai acontecer nada se fizeres o que te mando... – e aproximando-se do ouvido do rapaz, segredou-lhe – Estou armado, por isso não tentes nenhuma graçola.

O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça. Tudo correra como previsto, pensou o polícia enquanto os dois se dirigiam ao carro, já que somente meia dúzia de pessoas se tinha apercebido.

– Ora bem, tu tens duas hipóteses. Primeira, tu dás-me o dinheiro do produto que andas a vender. Eu não te conheço, tu não me conheces e a história acaba bem. Segunda, a história acaba mal.

Felizmente para ambos, o Duende decidira pelo final feliz e assim Carlos pode pagar uma das prestações em atraso.


Este texto foi escrito como trabalho de um grupo de escrita.
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Published on August 17, 2012 04:00

August 15, 2012

O dia em que choveu fogo - parte 5/5



O início deste conto pode ser encontrado em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html

A quarta parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-quarta-parte.html

Num gesto quase mecânico, como se fosse um espectador das suas próprias acções, puxou o cordão do explosivo. Sem apreender totalmente a noção do que fizera, saltara para fora da trincheira. Correu meia dúzia de passos e estendeu-se ao comprido no chão. Esperou pela explosão.Nada aconteceu. Percebeu que nem sequer sabia quanto tempo é que demorava depois de se puxar o cordel. Tendo em conta o estado do equipamento que lhe haviam dado, era provável que a granada nem sequer funcionasse. Outra possibilidade era de que nem sequer tivesse activado o mecanismo correctamente. No momento em que tomou consciência que os seus companheiros ainda estavam no buraco, o coração falhou-lhe uma batida. Tinha de voltar atrás e desarmar a bomba antes que ferisse alguém que não fosse suposto.No instante em que se ia levantar, o engenho deflagrou. A luz e o som da explosão duraram apenas uma fracção de segundo. Sentiu o deslocamento violento do ar e um zumbido nos seus ouvidos. Era tarde demais. Quaisquer que fossem as consequências, não podiam mais ser evitadas.Os outros soldados acordaram abruptamente. Durante longos momentos, houve um silêncio mortal, enquanto se escondiam nas trincheiras.- Olhem, este aqui foi atingido – ouviu de dentro da trincheira.Alexey pôs-se de pé e aproximou-se. Em poucos segundos, juntaram-se duas dezenas de pessoas em volta.O braço estava desfeito, tendo os pedaços de músculo e osso sido espalhados em volta. O pescoço estava torcido num ângulo estranho e o crânio estava aberto. Parte da massa encefálica tinha sido derramada por cima da terra seca. O sangue e a poeira formavam uma pasta densa. Não havia dúvidas de que estava morto. Ninguém levantou a hipótese de homicídio e todos culparam prontamente os alemães. Por entre os soldados, ele tremia, temendo ser apanhado a qualquer instante .Antes de voltarem a adormecer, mudaram o corpo para dentro de uma cratera e deitaram terra sobre o sangue. Alexey apanhou vários sustos durante o processo, pois parecia-lhe que, a cada momento, o poderiam denunciar. Meia hora depois, à excepção dele e dos sentinelas, todos tinham adormecido.Tinha acabado de matar. Ao fechar os olhos, conjurou involuntariamente a imagem do corpo desfeito. Achava que o tinha feito por necessidade, mas nem disso tinha certeza. Não era remorso que sentia, era medo de ser apanhado. A luz do dia iria revelar detalhes que tinham escapado durante a noite. O tenente não aceitaria a hipótese de acidente sem se questionar. Bastava que o interrogasse para que a verdade fosse descoberta. O terror que sentia só era comparável ao do bombardeamento. Por um momento, teve esperança de poder defender a sua posição e declarar que apenas se defendera. A ilusão durou pouco tempo, já que estava perfeitamente consciente da indiferença que existia na cadeia de comando. Culpado ou não, seria usado como exemplo para os restantes, sofrendo uma punição severa. Estremeceu violentamente ao imaginar o seu próprio fuzilamento.Precisava de reagir, já que não queria ficar parado e esperar por aquilo que o destino lhe reservasse. Quase inconscientemente, começou a rastejar pela vala para Sul, esperando que ninguém desse conta. Suspeitando que os soldados de guarda estavam quase a dormir, atravessou por entre eles sem os alertar. Arrastou-se outras duas centenas de metros até se poder esconder por detrás de umas sebes.Recuperou o fôlego durante um momento, apercebendo-se que tinha os cotovelos e as mãos em ferida. O véu da noite caia, dando lugar ao lusco-fusco cinzento que antecede o dia. O céu estava limpo, adivinhando outro dia quente.Sabia que não podia esperar mais e, por isso, desatou a correr em direcção às linhas alemãs.

FIM
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Published on August 15, 2012 04:00

August 13, 2012

O dia em que choveu fogo - parte 4/5


A primeira parte está aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html
A terceira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-parte-35.html

Virou-se para o outro lado e tentou adormecer. Estava cansado, contudo, os nervos não o deixaram pregar olho durante longos minutos. Quando cedeu à fadiga, de lágrimas nos olhos, caiu num sono agitado.Não sabendo ao certo se estava acordado ou a sonhar, viu o vulto do brigão a inclinar-se sobre ele e percebeu que ele iria agredi-lo. Tentou resistir, encolhendo-se ao sentir as mãos no seu pescoço. Agarrou os pulsos de quem o tentava sufocar, enquanto esperneava. Os braços do oponente pareciam feitos de aço e a pressão parecia a de uma máquina. Sentia-se asfixiar lentamente e todas a suas tentativas de se libertar tinham sido em vão. Então ouviu uma gargalhada maquiavélica e percebeu que era o fim. Quando acordou, estava coberto de suor.A primeira coisa em que reparou foi que tudo estava muito mais silencioso. Aparentemente os combates haviam cessado e à excepção de algumas brasas incandescentes, a fogueira tinha-se extinguido. Todos dormiam tranquilamente.Ao olhar para o brigão que dormia tranquilamente a seu lado, sentiu uma raiva enorme. Queria vingança, todavia não sabia como levá-la a cabo. Podia aproveitar-se do sono para o agredir, mas isso só lhe daria uma vantagem momentânea. Era inútil divagar sobre uma retaliação imaginária, pensou. O melhor a fazer seria dormir enquanto pudesse.Ao virar-se, sentiu um alto sólido e desconfortável. Com os dedos, palpou o objecto, descobrindo que se trava de uma pedra. Desenterrou-a e pegou nela, notando que pesava à vontade meio quilo. De súbito, teve uma ideia. Podia servir-se de uma arma para ter vantagem. Um par de pedradas bem dadas certamente que o colocariam fora de combate. Precisava somente de uma pedra mais pesada, de modo a neutralizar o rufia no primeiro golpe. Foi isso que procurou nos momentos seguintes.Assim que teve nas mãos uma pedra com uma aresta perigosa e um peso respeitável, olhou em volta. Todos estavam tranquilamente envolvidos nos seus sonos. Era muito arriscado aquilo que queria fazer. Provavelmente iria matá-lo e o seu maior receio era que alguém acordasse e testemunhasse o acto. Na manhã seguinte, iriam descobrir o corpo e ele seria inevitavelmente apanhado. Nesse momento, apercebeu-se que já não planeava simplesmente uma vingança, projectava um homicídio. Se pelo menos houvesse outra maneira de resolver as coisas, reflectiu. Pousou a pedra. Ocorreu-lhe que podia somente desertar. Era uma decisão de cobarde, mas também a mais fácil.As opções eram simples, fugir ou enfrentar o problema. A escolha foi tomada rapidamente. Iria enfrentar o problema, todavia iria fazê-lo de outro modo. Só precisava de escolher um método eficaz.Enquanto matutava no problema, os seus dedos percorriam a terra recentemente cavada. Por momentos, os seus pensamentos trilharam uns caminhos enquanto os seus dedos vagueavam por outros. Quando os dedos se depararam com a granada, os pensamentos convergiram com o tacto. Tinha encontrado a solução que procurava. Podia eliminar o rufia e fazer com que parecesse um acidente, era um plano perfeito.Perscrutou mais uma vez as redondezas, procurando por elementos acordados. Tudo continuava calmo, talvez até estático demais.Pegou na granada pelo cabo e encostou-a ao ombro do soldado, que não parecia ter-se apercebido de nada. Hesitou antes de puxar o cordão. Não haveria maneira de voltar atrás depois de o fazer. Sentiu um ligeiro tremor nas mãos, porventura derivado do nervoso miudinho que se apoderara do seu ser. Estava a um passo de matar. Não sabia se tinha direito de o fazer. A única certeza era de que, se não o fizesse, arriscava-se a ter o mesmo destino que projectara para o brigão.
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Published on August 13, 2012 04:00

August 10, 2012

O dia em que choveu fogo - parte 3/5


A segunda parte pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-segunda-parte.html

A maioria dos soldados mostrou-se um pouco mais confiante ao ouvir aquelas palavras desajeitadas, pois apelava ao seu ódio pelo inimigo. A moral não se manteve por muito tempo, sendo totalmente arrasada com o chegar dos abastecimentos. Em termos de comida, eram muito reduzidos, dando apenas um bocado de pão a cada um. Se haviam ficado desapontados com a alimentação, as armas deixaram-nos completamente desesperados. Havia apenas uma dúzia de pistolas e outra de espingardas. Munições vinham em duas caixas minúsculas. Para além disso, havia somente duas caixas de granadas. Nem o tenente conseguiu disfarçar a irritação que sentia.- Não se preocupem, soldados. Deve ter havido algum engano. Eu irei pedir mais armas, munições e comida. Vamos ver se consigo arranjar uma ou duas peças de artilharia - prometeu apressadamente o jovem.Quando o comandante foi à procura do comissário, as conversas que se seguiram provaram que ninguém havia acreditado na desculpa do engano. Alexey ouviu de tudo um pouco, desde insultos a propostas de fuga. Evitou participar, já que não queria arranjar mais sarilhos do que aqueles em que estava metido.O pôr-do-sol revelou uma cidade em chamas. Os disparos de artilharia nunca cessaram por completo. Corriam rumores de que os alemães teriam já chegado ao rio, cercando a cidade e os seus defensores. Não chegaram mais abastecimentos e muito poucos dos soldados que tinham fugido durante o bombardeamento haviam regressado.Parte das trincheiras foi reaberta e preparada para a noite. Enterraram os mortos num terreno adjacente e os feridos foram evacuados para a cidade. Finalmente, recolheram aos seus buracos no lusco-fusco. Cansado e desmoralizado, escolheu um local para se deitar. Com um bocejo, pousou a seu lado a granada que lhe tinham dado e enrolou-se no seu cobertor, preparando-se para passar a noite. Ficara na extremidade da vala partilhada pelo resto do seu grupo de combate. No centro do buraco ardia uma fogueira que providenciava uma parca iluminação. Não havia comido o pedaço de pão que lhe calhara durante a tarde, pois receava não receber outro no dia seguinte.Depois de cair a escuridão, tentou dormir, mas não conseguiu. As imagens dos aviões semeando a morte perturbavam-no fortemente. Não conhecia nenhum dos que havia falecido, aliás, procurara em vão pelos corpos dos três rufias. Não voltara a vê-los, por isso deduzira que haviam fugido.Ouviu algo a seu lado. Um vulto acabara de entrar na trincheira. Quis dar o alarme, todavia o grito ficou-lhe preso na garganta. Era o líder dos rufias.- Não precisas de ter medo, eu não vim para te fazer mal – prometeu com um tom e um sorriso que não inspiravam qualquer confiança.Alexey não lhe respondeu, já que os seus piores receios se haviam tornado realidade.- Estou a ver que ficaste mais esperto. Agora vais partilhar o teu pão comigo e ficamos todos amigos. Pode ser?O tom de ameaça não lhe escapou. Sentiu a fúria a crescer dentro de si, estava farto de ser maltratado pelos brigões. Queria encontrar uma solução definitiva para aquele problema, mas não lhe ocorreu nada durante aquele momento que lhe foi dado para pensar. Queria lutar, mas sabia não estar à altura de o enfrentar.- Então, miúdo? Ou me dás o teu pão ou vou ter que te partir os dentes.- Já o comi... - mentiu Alexey, a tremer.- Tu a mim não me enganas! Dá-me o pão, já! - exigiu, agarrando-o pelo colarinho.- 'Tá bem! Eu já te dou.Entre o humilhado e o agitado, retirou o pão do bolso e estendeu-lho. Como provocação, o outro rapaz decidiu comê-lo à sua frente. Alexey usou todo o seu auto-controlo para não o atacar. O rufia extorquiu-lhe também o cobertor e quis dormir ao seu lado, mesmo junto à extremidade da vala.
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Published on August 10, 2012 04:00

August 8, 2012

O dia em que choveu fogo - parte 2/5


A primeira parte pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html


Apercebendo-se de que estava a deixar-se dominar pelo pânico, abriu os olhos e forçou-se a respirar normalmente. Arriscou mais um olhar ao céu. Havia bombardeiros enormes, com um motor em cada asa. A acompanhá-los voavam unidades mais pequenas, com uma única hélice e de asas arqueadas.Por instinto, outra explosão fê-lo encolher-se na sua toca. O ataque foi sucedido por múltiplos rebentamentos. Concluiu que estavam a arrasar as linhas defensivas da cidade, das quais fazia parte.Passara um mês desde que fora chamado e tanto tinha mudado desde essa altura. Relembrava-se que fora um jovem cheio de convicções. Pensara que iria para a guerra para ser coberto de heroísmo e ajudar a repelir a ofensiva dos malditos Fritzes. Salvaria a cidade e o seu amor e, no fim, tudo ficaria bem. Infelizmente, a realidade era muito mais amarga do que os seus piores receios. Haviam-lhe dado somente uma pá e tivera de cavar valas durante dias a fio. De soldado não tinha nem treino, nem equipamento. Cobria-o ainda a roupa esfarrapada com que se apresentara na recruta.O coração falhou-lhe uma batida ao pensar na sua querida Nastja. Desde que a conhecera, em Maio, que a sua vida dera uma volta enorme. Havia algo nela que o atraía e prendia, como se um véu de mistério a rodeasse. Tinham partilhado momentos fugazes e intensos. Não conseguia deixar de corar ao recordar a última noite que tinham passado juntos. Tinham feito amor naquele velho sótão de madeira abandonado, a melhor experiência da sua vida. Não queria morrer ali. Não havia olhar mais belo, nem nome mais bonito que o de Anastasia. Queria voltar para a sua amada, são e salvo. Desejava poder, mais uma vez, dormitar no seu regaço. Isso seria a sua maior felicidade.Os pensamentos foram interrompidos pelo deflagrar de mais cargas explosivas. Encolheu-se ainda mais no buraco, como se isso pudesse aumentar as suas hipóteses de sobrevivência. Sentia-se impotente. Seria diferente se ao menos pudesse combater o inimigo cara-a-cara. Eram cobardes e dependiam das suas máquinas infernais para ganhar vantagem. De certo que não seriam tão corajosos em terra. Dava tudo para ter oportunidade de os enfrentar numa luta corpo-a-corpo.O clamor de outra explosão fez-se ouvir tão perto que lhe deixou um zumbido nos ouvidos. Nesse instante, foi coberto com terra e detritos. Pensou que iria ficar soterrado, mas, felizmente, a quantidade não fora suficiente para tal. Ao inspirar, as suas vias respiratórias foram invadidas pela poeira que circulava no ar. Tossiu violentamente, tentando limpar a garganta. Os olhos lacrimejavam fortemente. Novas explosões fizeram-se sentir segundos depois.Nos minutos que se seguiram, permaneceu encurvado na trincheira, coberto de terra. De súbito, tal como tinha começado, o ataque terminou. Os motores dos aviões e os rebentamentos só se ouviam à distância.- Soldados, formar! - ouviu o seu tenente ordenar.Alexey abriu os olhos a medo e não viu nenhuma aeronave no ar. Sacudiu a terra e ramos de tomate seco que se tinham acumulado sobre a sua cabeça, antes de se levantar e aproximar dos restantes.Ao caminhar pelo terreno, deu-se conta das inúmeras crateras deixadas pelas bombas inimigas. Aqui e ali estavam corpos despedaçados. O cheiro a queimado infestava o ar. Evitou olhar demais, já que não queria vomitar o almoço. A bateria anti-aérea sumira e apenas um buraco com destroços espalhados em volta atestavam a sua existência. Os aviões alemães continuavam a sobrevoar o céu, fazendo-o essencialmente sobre a cidade. Sem se demorar mais, juntou-se ao grupo, permanecendo na última fila e em sentido.- Mas que raio! Faltam aqui soldados. Tu aí, sabes contar? Conta-me os mortos e feridos. Rápido! - comandou o jovem, escolhendo um soldado da primeira fila.Alexey olhou para a farda quase nova do seu tenente. Apesar de sujo, aquele uniforme assentava perfeitamente naquele corpo cheiinho. A barba rara denunciava a sua idade e inexperiência. Pertencer a um extracto superior da sociedade tinha a vantagem de se poder frequentar a academia militar. Todos tinham de servir a Terra-mãe, a diferença é que a maioria o fazia como soldados rasos, sem direitos nem regalias.- Meu tenente, contei 18 feridos e 14 mortos – reportou o rapaz receoso.- Faltam aqui mais de 50 recrutas! Se eles não estiverem de volta até ao pôr-do-sol, serão considerados desertores!O comandante olhou para os seus soldados. Houve quem prendesse a respiração, antecipando uma punição severa.- Nós somos uma das primeiras linhas de defesa da cidade. Os alemães estão perto e a qualquer momento poderão chegar à nossa posição. Em breve chegarão armas e rações, economizem-nas, pois não sei quando voltaremos a ter mais. Há dúvidas?Como resposta, obteve um silêncio pesado.- Vamos, soldados! Não vamos deixar que Estalinegrado caia! As nossas famílias moram ali - exclamou, apontando para a cidade. - Não podemos deixar que os alemães lhes ponham as mãos em cima. Eles irão violar as nossas mães e irmãs. Irão matar os nossos pais e saquear as nossas casas. Querem apoderar-se do nosso país e reduzir-nos à escravidão.
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Published on August 08, 2012 04:00

August 7, 2012

O dia em que choveu fogo - segunda parte


Apercebendo-se de que estava a deixar-se dominar pelo pânico, abriu os olhos e forçou-se a respirar normalmente. Arriscou mais um olhar ao céu. Havia bombardeiros enormes, com um motor em cada asa. A acompanhá-los voavam unidades mais pequenas, com uma única hélice e de asas arqueadas.Por instinto, outra explosão fê-lo encolher-se na sua toca. O ataque foi sucedido por múltiplos rebentamentos. Concluiu que estavam a arrasar as linhas defensivas da cidade, das quais fazia parte.Passara um mês desde que fora chamado e tanto tinha mudado desde essa altura. Relembrava-se que fora um jovem cheio de convicções. Pensara que iria para a guerra para ser coberto de heroísmo e ajudar a repelir a ofensiva dos malditos Fritzes. Salvaria a cidade e o seu amor e, no fim, tudo ficaria bem. Infelizmente, a realidade era muito mais amarga do que os seus piores receios. Haviam-lhe dado somente uma pá e tivera de cavar valas durante dias a fio. De soldado não tinha nem treino, nem equipamento. Cobria-o ainda a roupa esfarrapada com que se apresentara na recruta.O coração falhou-lhe uma batida ao pensar na sua querida Nastja. Desde que a conhecera, em Maio, que a sua vida dera uma volta enorme. Havia algo nela que o atraía e prendia, como se um véu de mistério a rodeasse. Tinham partilhado momentos fugazes e intensos. Não conseguia deixar de corar ao recordar a última noite que tinham passado juntos. Tinham feito amor naquele velho sótão de madeira abandonado, a melhor experiência da sua vida. Não queria morrer ali. Não havia olhar mais belo, nem nome mais bonito que o de Anastasia. Queria voltar para a sua amada, são e salvo. Desejava poder, mais uma vez, dormitar no seu regaço. Isso seria a sua maior felicidade.Os pensamentos foram interrompidos pelo deflagrar de mais cargas explosivas. Encolheu-se ainda mais no buraco, como se isso pudesse aumentar as suas hipóteses de sobrevivência. Sentia-se impotente. Seria diferente se ao menos pudesse combater o inimigo cara-a-cara. Eram cobardes e dependiam das suas máquinas infernais para ganhar vantagem. De certo que não seriam tão corajosos em terra. Dava tudo para ter oportunidade de os enfrentar numa luta corpo-a-corpo.O clamor de outra explosão fez-se ouvir tão perto que lhe deixou um zumbido nos ouvidos. Nesse instante, foi coberto com terra e detritos. Pensou que iria ficar soterrado, mas, felizmente, a quantidade não fora suficiente para tal. Ao inspirar, as suas vias respiratórias foram invadidas pela poeira que circulava no ar. Tossiu violentamente, tentando limpar a garganta. Os olhos lacrimejavam fortemente. Novas explosões fizeram-se sentir segundos depois.Nos minutos que se seguiram, permaneceu encurvado na trincheira, coberto de terra. De súbito, tal como tinha começado, o ataque terminou. Os motores dos aviões e os rebentamentos só se ouviam à distância.- Soldados, formar! - ouviu o seu tenente ordenar.Alexey abriu os olhos a medo e não viu nenhuma aeronave no ar. Sacudiu a terra e ramos de tomate seco que se tinham acumulado sobre a sua cabeça, antes de se levantar e aproximar dos restantes.Ao caminhar pelo terreno, deu-se conta das inúmeras crateras deixadas pelas bombas inimigas. Aqui e ali estavam corpos despedaçados. O cheiro a queimado infestava o ar. Evitou olhar demais, já que não queria vomitar o almoço. A bateria anti-aérea sumira e apenas um buraco com destroços espalhados em volta atestavam a sua existência. Os aviões alemães continuavam a sobrevoar o céu, fazendo-o essencialmente sobre a cidade. Sem se demorar mais, juntou-se ao grupo, permanecendo na última fila e em sentido.- Mas que raio! Faltam aqui soldados. Tu aí, sabes contar? Conta-me os mortos e feridos. Rápido! - comandou o jovem, escolhendo um soldado da primeira fila.Alexey olhou para a farda quase nova do seu tenente. Apesar de sujo, aquele uniforme assentava perfeitamente naquele corpo cheiinho. A barba rara denunciava a sua idade e inexperiência. Pertencer a um extracto superior da sociedade tinha a vantagem de se poder frequentar a academia militar. Todos tinham de servir a Terra-mãe, a diferença é que a maioria o fazia como soldados rasos, sem direitos nem regalias.- Meu tenente, contei 18 feridos e 14 mortos – reportou o rapaz receoso.- Faltam aqui mais de 50 recrutas! Se eles não estiverem de volta até ao pôr-do-sol, serão considerados desertores!O comandante olhou para os seus soldados. Houve quem prendesse a respiração, antecipando uma punição severa.- Nós somos uma das primeiras linhas de defesa da cidade. Os alemães estão perto e a qualquer momento poderão chegar à nossa posição. Em breve chegarão armas e rações, economizem-nas, pois não sei quando voltaremos a ter mais. Há dúvidas?Como resposta, obteve um silêncio pesado.- Vamos, soldados! Não vamos deixar que Estalinegrado caia! As nossas famílias moram ali - exclamou, apontando para a cidade. - Não podemos deixar que os alemães lhes ponham as mãos em cima. Eles irão violar as nossas mães e irmãs. Irão matar os nossos pais e saquear as nossas casas. Querem apoderar-se do nosso país e reduzir-nos à escravidão.
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Published on August 07, 2012 16:40