Manuel Alves's Blog, page 4
May 22, 2013
entre o colossal e o abissal
Duas ideias que partilham o mesmo destino, o profano e o divino. Todos temos deuses e demónios interiores; uns que nos aliviam as dores e outros que nos atormentam com horrores. Mas os deuses não nos podem salvar das profundezas do mar se o nosso barco afundar e não soubermos nadar. Quem nos salva somos nós que, com o nosso próprio destino, todos lutamos sós. A grandeza de tudo o que é humano reduz-se a espessura de cabelo mais fino do que qualquer fio a partir do qual é tecido um simples pano. Essa grandeza talvez seja a esperteza. Talvez apenas seja a insatisfação de um ser que, por natureza, tem sempre menos do que deseja. O ser humano é uma criança perdida entre o colossal e o abissal, ambos sinónimos de uma grandeza maior que ultrapassa a limitada compreensão do ser pensador.Os demónios, onde estão? Eles aparecem. É só esquecermos o coração. Depois disso, são os demónios que não nos esquecem. Se formos maus, as nossas vidas tornam-se naus, barcos sem fundo que nos deixam afogar nas tormentas do mundo. Mas há sempre aquela esperança de que depois da tempestade vem a bonança. Mas alguém sabe mesmo o que isso é se não tiver fé? Mas tem de ser uma fé que faz seguir caminho em vez de regredir em marcha-a-ré. Só se consegue essa proeza com uma vontade de acreditar que nos vem daquele lugar onde só com muita coragem se enfrenta a incerteza. O lugar somos nós. Se não o conseguirmos encontrar estaremos sempre sós.
(a partir de uma imagem de Dehong He)
Published on May 22, 2013 11:59
May 1, 2013
a fada e o pardal
A fada perdeu as asas numa aposta com o pardal azul. Se a sua sorte fosse outra, teria ganho um bule. Um bule mágico, não menos. Daqueles que faz um chá muito diferente de qualquer outro que já bebemos.Mas o pardal enganou a fada, porque a aposta era desigual, uma vez que ele nunca perderia nada. É que o bule nem era dele, e tudo o que ele tinha era apenas um cantil que, na verdade, não passava de um frasco de vidro com o fundo partido, o que tornava ainda mais habilidoso o ardil.A aposta ficou apenas entre os dois e não voltou a ser mencionada depois.A fada procurou em livros mágicos por um feitiço que desfizesses todas as apostas que resultam em destinos trágicos. Eram livros escritos com tinta invisível que guardava os segredos do impossível. A fada queria as suas asas de volta às costas e prometeu a si mesma que, se isso acontecesse, se deixaria de apostas.O pardal chamou o irmão para o ajudar a levar os livros mágicos para longe, muito acima do chão. Lá em cima, muito acima das nuvens flutuantes, a fada não poderia alcançar os livros porque, sem asas, ficar-lhe-iam sempre distantes.A fada pediu ajuda ao aranhiço tecelão, para que ele tecesse uma teia que prendesse o livro com o melhor feitiço e os pardais não conseguissem afastá-lo muito do chão. O aranhiço atendeu ao seu apelo e a fada protegeu o livro que tinha o melhor feitiço. Era uma poção que tinha de ser mexida com colher de prata e temperada com suspiro de um cogumelo.O pardal não tinha feito por mal. Enganou a fada, mas tinha uma boa razão. Para ele, não queria nada pois as asas eram para o irmão. Um pardal sem asas ao nascer perde logo a maior razão de viver. Para o irmão poder voar, o pardal viu-se forçado a apostar.A poção da fada, por uma ironia quase engraçada, era um chá do melhor que há. E o pior era que precisava do bule que deixara escapar na aposta que perdera com o pardal azul. Chamou o pardal e desafiou-o a aceitar a última aposta que ela alguma vez faria. A fada já não tinha asas para apostar e, como não tinha o que mais arriscar, apostou a sua magia. Disse que só precisaria que o pardal lhe emprestasse o bule encantado para o desafio ser validado.O pardal escutou com atenção e não encontrou nenhum senão. Não possuía o bule, e não… só tinha a ganhar e nada perdia. Mostrou o frasco de vidro com o fundo partido e disse que era o bule mágico que fazia o chá impossível de igualar apesar de parecer apenas um frasco vulgar.A aposta voltou a ser um segredo para mais ninguém conhecer, e quem ganhou e perdeu foi a única coisa que se chegou a saber.A fada esboçou um sorriso e fez aquilo que era preciso. Leu o feitiço da tinta invisível em tom seguro e audível.“O chá desfaz a decisão má. O chá que se bebe. O cogumelo suspira pelas folhas secas amolecidas na humidade para além do prado separado da floresta pela fronteira da sebe. A colher de prata mexe tudo, sem tilintar, sem enjoar no rodopiar do chá que será bebido por um paladar sortudo. O chá desfaz a decisão má. O que faz o bule ter magia é o chá que dentro dele rodopia nas voltas da colher, e o chá pode fazer-se até dentro de um frasco qualquer. O segredo está em quem o bebe de consciência leve. O bule é a vontade de quem persiste pois o bule, o bule, esse, não existe.”A fada bebeu o chá e desfez a decisão má. Recuperou as asas e manteve a magia ao vencer a última aposta que alguma vez faria. Partilhou o feitiço com o pardal para que ele pudesse fazer um chá igual, porque o chá também tinha o poder de anular o azar de pardais desprovidos de asas ao nascer.O pardal azul, para dar novas asas ao irmão, acreditou na sua determinação e fez dessa vontade o bule.
Published on May 01, 2013 15:15
April 18, 2013
o engano dos sentidos
foto: Manuel Alves— Ouvir dizer que te achavam no rosto aquela magia de nascer do dia e a melancolia quieta do sol-posto. Não posso dizer que essa magia seja feitiço que me obriga a achar tudo isso. Também ouvi dizer que a beleza das coisas está nos olhos de quem observa. Se é cliché, ninguém sabe ao certo porquê. Mas é uma falta de explicação que enerva. O que me interessa o que dizem do teu rosto se o que vale para mim é aquilo de que eu gosto?— Ouvi dizer que achavas o meu rosto horrível, uma coisa de monstro insensível. Se os teus olhos são cegos, como és capaz de julgar aquilo que eu posso ser se nem sequer me consegues ver?— Os olhos não nos dão a melhor perspectiva de uma pessoa. Uma face bonita não veste sempre uma alma boa.— Sim, já sabemos que as aparências podem enganar e que não enganam apenas o olhar.— Pois não. Também enganam o coração.— Mas, então, em que ficamos? Todos os feios são monstros e só os bonitos são humanos?— Nada de tão errado. Isso é um raciocínio apressado. Os monstros não são sempre terríveis nem os humanos são sempre sensíveis. Apenas sei que a aparência engana o olhar como se não fôssemos capazes de enxergar. Os meus olhos não são. Tenho apenas aquilo que os outros sentidos me dão.— Mas e aqueles que conseguem ver? O que hão-de fazer? Se desconfiarmos do olhar, em qual sentido devemos confiar. O olfacto engana-nos da mesma maneira que o tacto. Ambos recorrem à memória imprecisa dos acontecimentos que são recordados consoante a importância dos momentos. E o paladar, mesmo que seja difícil de enganar, é um sentido fácil de subornar. E tu, que não vês, se desconfiares assim de cada sentido, resta-te apenas um para evitar que o mundo fique escondido. Vais confiar na audição? De onde te vem essa convicção?— Se queres saber, ouvi dizer.
Published on April 18, 2013 06:25
April 10, 2013
a camponesa e o príncipe
A camponesa pediu ao príncipe encantado que não lhe deixasse o coração magoado. A vida já a magoara o suficiente e que, pelo menos ele, a tratasse como gente.O príncipe encantado sorriu e prometeu-lhe o que ela pediu. Disse que as suas intenções eram tão nobres quanto o seu título real e que jamais lhe faria mal.A camponesa sorriu-lhe um alívio tranquilo como se lhe bastasse ouvir aquilo. Era uma coisa boa sentir que, pelo menos ele, a reconhecia como pessoa.O príncipe encantado tomou-a num beijo que há muito era desejo. Aprendera, com outras camponesas do reino, que quando se deseja mesmo uma mulher promete-se tudo o que ela quer.
Published on April 10, 2013 00:08
April 6, 2013
uma espada na mão
Uma espada. Uma espada é só o que peço que me ponham na mão. Não preciso de mais nada para cumprir a minha intenção. Mas eu, que estou preso, o que poderei fazer com ela por entre as grades da cela? Posso ameaçar o carcereiro que me mantém prisioneiro. Posso passar-lhe o fio no pescoço e só parar quando a carne secar de sangue até ao osso. Tiro-lhe a chave que abrirá a porta e me dará asas de ave. Se somos inocentes de verdade, matar quem nos prende não é maldade é direito à liberdade. Mas e se quem nos prende obrigar a mão de um carcereiro inocente? Não é tão criminoso o que nos aprisiona como aquele que o consente? O que sei é que sou eu que estou do lado de dentro das grades, privado de todas as vontades. Todas, menos a de viver. Dêem-me uma espada para a mão e serei capaz de a merecer.
Published on April 06, 2013 10:33
March 26, 2013
o coração bombista
Partiu deste mundo com uma explosão no peito, num desenho de vida expandida em múltiplas trajectórias disparadas a direito. Do coração, restou um pequeno saco rebentado no chão e um charco de sangue horizontal, a desenhar linhas em queda livre pela parede como pincel de tinta vermelha a criar uma pintura oriental.Morreu de emoção. Alegre, com satisfação, feliz como ninguém. Só assim foi capaz de expressar o tamanho que um afecto impossível tem. Morrer, de verdade, não morreu; foi apenas o que sentiu quando, sem contar, um dia descobriu um amor que sempre quis seu.Explodiu-lhe o peito, como se fosse esse o propósito para o qual o coração foi feito.
Published on March 26, 2013 15:39
March 18, 2013
um momento
Hoje, morro. Porque sim. Porque acontece a todos e não apenas a mim. Porque ninguém quer saber. Porque todos estão ocupados com o seu próprio viver. Porque todos morrem. Todos. Os que param, os que andam e os que correm. Todos morrem.Amanhã, não sei. Estarei morto, um barco encalhado no porto. Não viverei. Estarei esquecido, perdido, ressequido. Não estarei.Ontem, vivi. Não de verdade. Não na realidade. Não aqui. Vivi na tenra idade, na distância da infância, na saudade de tudo o que esqueci.É o tempo, essa condição que não aguento. É o tempo. O tempo de fazer coisas. O tempo de não as fazer. O tempo das coisas que são más. O tempo das coisas que são boas. É o tempo. O tempo passa num instante em que nada importa e tudo é importante. E um instante nunca é bastante, porque um instante não é muito tempo. Um instante é só um momento.
Published on March 18, 2013 08:03
March 14, 2013
a proximidade das estrelas
Que melhor maneira de alcançar as estrelas do que acreditar que estão realmente perto? O resto são mentiras de telescópios orgulhosos da sua visão mais longínqua mas invejosos da nossa imaginação mais profunda. Em questões de estrelas, não importa se o que acreditamos não é verdade, importa apenas que a crença sonhadora nos sirva melhor do que os factos da realidade. Como são bonitas as estrelas aqui tão perto! São chão que podemos sentir com a mão e céu iluminado de deserto. O resto, não quero saber. As estrelas estão próximas se me apetecer.
Published on March 14, 2013 06:27
March 8, 2013
perspectivas
Há sempre duas histórias para contar acerca de uma pessoa; a verdade e a mentira. O meio-termo é uma ilusão de ingénuos. A meia-verdade não é, como o próprio nome engana com malícia, a metade de uma verdade mas sim a totalidade de uma mentira. Omitir, deliberadamente, informação que influencia a interpretação de uma afirmação é sempre a intenção de enganar quem interpreta. Omitir não é mentir? Que acredite nesse engano quem o quiser. É possível não revelar a verdade sem afirmar directamente a mentira? É. Quem o faz, fá-lo conscientemente e conhece como funciona a percepção imperfeita da mente. Há quem domine todo esse exercício de equilíbrio delicado com ironia, sarcasmo e cinismo, com a mesma habilidade de um acrobata exímio em questões de equilibrismo. Nesse constante desafio da queda não há rede entre o acrobata e o fundo do mundo. Na queda, a verdade mata e a mentira morre, a crueldade da realidade é um acidente do qual ninguém nos socorre. Todas as pessoas mentem? Claro que não…
Published on March 08, 2013 01:47
March 5, 2013
e depois?
Se queres que te aceitem como és, aceita que nem todas as pessoas te aceitarão por causa daquilo que elas são. É uma tragédia? Não. As pessoas têm direito a essa opção. Têm direito a errar na escolha sem te conhecerem. Têm liberdade para escolherem pessoas piores do que tu apesar de, a essas, as conhecerem. É a irracionalidade dos afectos. Não é possível analisar as falhas da razão em todos os aspectos. Certas falhas da razão são culpa do coração. São os dentes do animal de estimação que, num dia de desentendimento, sem remorso nem lamento, nos mordem a mão. E a culpa é dos dentes do peixe, do réptil, do gato ou do cão? Não. A culpa é nossa, por lhes estendermos a mão. E depois? Depois, é a vida. Continua-se com a aprendizagem dos erros, de cabeça levantada e decidida, mesmo que todos os dias nasçam de um parto a ferros.
Published on March 05, 2013 03:58


