Manuel Alves's Blog, page 3

January 20, 2014

balanço 2013

Olá.
Feitas as contas, em 2013, os leitores elegeram a Apple como distribuidora preferida para adquirirem os meus livros. O maior número de downloads registou-se no Brasil, num total que ultrapassou os 21 mil livros. Um grande contributo para este número terá sido o facto de a Apple Brasil ter escolhido dois contos meus “Equador Morto” e “Lili” para livros da semana.Em baixo, encontram-se as capas dos meus livros publicados até ao momento. Um clique em cada imagem abrirá a página do respectivo livro na Apple Brasil (porque é, até ao momento, o maior universo dos meus leitores).
Um abraço para os meus leitores em todo o mundo (para não haver ciúmes).

imagens: Manuel Alves
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Published on January 20, 2014 08:10

July 29, 2013

o erro do universo

 imagem: Manuel Alves
Olá, o meu nome é Ana Maria e tenho leucemia. O meu nome completo é Ana Maria Faria Pequenina. Mesmo Pequenina, porque é o último nome do meu pai apesar de ele não ter nascido menina. De onde veio, não me perguntem, não sei. É o meu nome e foi sempre assim que me chamei. Sempre não é muito tempo. É o tempo todo que aguento. O meu sempre tem seis anos e quatro meses. Quando as pessoas me visitam perguntam-me de todas as vezes. É desde que nasci. Só o tempo que vivi.A minha mãe chora sempre que se deita ao meu lado, na cama. E depois sorri. Diz-me “vou ficar só mais um pouquinho aqui.” Limpa o nariz, finge que está feliz e diz que me ama.Havia uma senhora que me visitava duas vezes por dia. Ficámos amigas e eu até já lhe chamava tia. Era uma senhora engraçada e aparecia sempre animada. Também tinha leucemia mas escondia. Pensava que eu não sabia. Dizia-me coisas engraçadas acerca do transplante de medula. Uma vez contou-me uma história divertida em que havia uma menina que era um biscoito e a leucemia era um bicho-papão com gula.Era uma senhora engraçada. Fazia-me rir. Estou preocupada. Deixou de vir.O senhor doutor é muito amável. Nunca o ouvi dizer a palavra incurável. É capaz de a ter dito aos meus pais. Mas eu não preciso de saber mais.As enfermeiras são todas boazinhas. Dizem-me sempre olá a fazem-me festinhas. Uma vez, uma sentou-se na beira da minha cama, pegou-me na mão e chorou. Ouvi depois comentar que ela também tinha uma menina como eu que não se curou. Chorei por causa dela sem ninguém saber. Não era para se dizer.Hoje, a minha mãe trouxe-me um bolo de aniversário com duas velas. Ri-me da diferença de tamanho delas. Uma era normal e tinha um seis escrito. A outra era desigual, mais pequena e com um quatro, e faziam um par bonito. A minha mãe canta-me os parabéns todos os meses, no dia em que nasci. Sopro as velas e ela dá-me um beijo. Depois sai do quarto, para chorar onde eu não vejo. Quando chegar o dia de fazer sete anos sei bem que já não estarei aqui. Soprei as velas e sorri.
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Published on July 29, 2013 11:30

July 14, 2013

carta de amor

imagem: Manuel Alves
Olá.Ainda não nos conhecíamos e já eu pensava em ti. Por mim, vivíamos tudo já, aqui, os dois, e deixávamos as preocupações do fim para depois. Sei que ainda não me conheces de verdade, mas assim também não me esqueces nem sofres de saudade. Prefiro sentir eu o vazio de não estar aí e sofrer esse buraco no peito por ti.Sabes o que é nascer com uma pessoa no coração? É uma espécie de gravidez em que tudo o que tens a crescer dentro de ti é emoção. Quando se nasce com essa antecipação de conhecer quem se quer é preciso força para combater a solidão até se encontrar essa razão de ser.Todos vivemos para alguém. Sem essa dedicação somos quem? Pessoa. Boa? É possível. Mas pessoa boa dedicada é preferível. Se não gostarmos assim de alguém não somos maus, somos apenas ramos de árvore secos, reduzidos a paus, sem vida para dizermos olá ao vento, e quebramos no estalo triste de um lamento. Depois vem o chão. Mas se formos dois, não há esse medo, há sempre aquela mão que nos ajuda a levantar de uma queda que nos apanha demasiado cedo.Para sempre, e tudo o que é infinito, para além do bom e do bonito. Depois de ambos sabermos que existimos, mesmo que estejamos sós, nunca estaremos sozinhos. Insistimos até que nos falte a voz e, mesmo sem som, mesmo sem luz, seguimos esse afecto que nos conduz, e no escuro do abraço trocamos carinhos.Queres esta oferta que te espera na minha mão aberta? Estas coisas precisam de respirar. Não se podem deitar fora mas também não se podem guardar. Resta aceitar. Ou recusar. Mas não vamos falar de decisões tristes. Aceita-me tal como eu te aceito, neste instante, ainda sem saber se existes. Esta carta só é para ti quando te encontrar. Por agora, é para mim, para me deixar sonhar.Sonho contigo, mas sem face. É uma tristeza que me acorda a meio da noite e não me deixa dormir até que a outra metade passe. Talvez seja melhor que não recordemos dos sonhos as feições das pessoas com quem sonhamos sem conhecer. Talvez seja um favor do universo que nos deixa esse bocadinho do sonho difuso, confuso, disperso. Se o teu rosto fosse uma imagem que eu pudesse recordar depois de acordar seria um golpe de espada, porque dos sonhos só trazemos recordação e mais nada. Seria sofrer por te reconhecer sem realmente te ver. O melhor mesmo é esquecer.Mas sei que existes. Aí, nesse lugar do mundo, ao nível do mar, a escalar ao alto da montanha tamanha ou a descer ao vale profundo. Persistes. Estejas onde o acaso quiser, preciso de ti para viver. Não é depender da tua vida para viver a minha, nada disso. É que, sem me partilhar contigo, a obra de arte que desejo da minha vida não passará de um esquisso. Sei que isto é cliché para quem lê, mas és a metade que não tenho. Enquanto não te encontrar és aquela angústia de viajar para longe de casa sem saber se regresso, e de todas as pessoas de quem me despeço se algumas perco e outras ganho.Quero encontrar-te e conhecer-te. Quero ganhar-te e merecer-te. Depois seremos felizes. O melhor possível, que o dia-a-dia é imprevisível. Tu ris-te do que eu digo e eu rio-me do que tu dizes. Beijamo-nos todas as manhãs, todas as tardes e todas as noites, sem precisarmos de rimas, nem de poesia disfarçada numa prosa bonita. Precisamos apenas de nós, dos nossos rostos, dos nossos braços, das nossas mãos, dos nossos olhos. Das pernas que nos cruzam no caminho, dos pés que nos equilibram, do corpo todo que trocamos um com o outro. E crianças. Teremos ou não. Mas teremos sempre o que somos. Teremos coração.
De mim para ti.
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Published on July 14, 2013 10:50

July 11, 2013

o fundo do poço

imagem: Manuel Alves
O fundo do poço é um corpo comido até ao osso. Embate-se no fundo depois da rejeição do mundo. Vai-se a esperança e esquece-se a bonança. Cada dia em que nos tiram tudo é mais um prego no caixão pela mão de um coveiro mudo. Um homem presidente que nos serviria melhor se, em vez de homem senhor, fosse homem decente. Cada amanhã é um levantar do colchão que nos faz arrastar os pés pelo chão. Nem chega a ser desilusão de vida, é mais uma sensação de que alguém nos impede de aceitar uma viagem oferecida. Alguém quem? As pessoas que deviam cuidar de nós mas que quanto maior a necessidade mais nos deixam sós. Todos somos crianças do país em que vivemos, crianças abandonadas pelos adultos que elegemos. Não são adultos, são apenas vultos. Criaturas sem rosto que conhecemos apenas pelo posto. Políticos somíticos. Ladrões de direitos, esses cabrões eleitos. Gostaria de ser rico e ignorante. O resto não seria importante. Faria parte dessa classe culpada pelo buraco sem fundo para onde atiraram o mundo. E, como eles, da abertura do poço, ria-me de todos vós, caídos, abandonados, sós e de corpo comido até ao osso.
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Published on July 11, 2013 09:25

July 9, 2013

a folha em branco


A folha em branco não mete medo. Às vezes, é apenas uma ideia que vem demasiado cedo. Pode até ser um susto criativo que, quando muito forte, faz dizer mal da sorte porque parece castigo. Mas e todas as coisas que a folha em branco convida a inventar? Isso não pode ser azar. É uma fortuna de mãos cheias de maravilhas. Um mapa do tesouro que conduz a riquezas enterradas numa imensidão de ilhas. É escrever, letra a letra, e cada palavra, com a sua cor preta, faz o branco desaparecer. É criar, inventar e sonhar. Repetir, sorrir e respirar. A folha em branco é uma criança que nos sobe para o colo e nos pede para a embalar.
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Published on July 09, 2013 13:15

June 18, 2013

o meu país

ilustra: Manuel Alves

É uma criança com fome o meu país. Fome de tudo. E, porque o meu país é mudo, sou eu quem o diz.O meu país tem um presidente contente, que julga que o estado de graça é a complacência para com os culpados da trapaça que apunhala nas costas o trabalho de gente honesta e decente. O homem no cargo diz que tudo está bem, mesmo quando a democracia sofre de embargo para todas as pessoas de bem. As pessoas de mal não sofrem com isso, pois são elas que fazem do homem no cargo submisso.O meu país tem um primeiro-ministro sinistro, que nega toda a estupidez do poder que exerce na sua vez. O seu tempo de reinar à cabeça do governo criou um mal-estar que, por mais que ele se esforce para que toda a gente esqueça, deixou o meu país enfermo. Não sei se esse homem que pode de verdade, abaixo do homem no poder, é um caso de insanidade mas o que mais há-de ser? Imbecil, será ou não. Mas tem perfil de pau-mandado dos interesses obscuros de quem parasita os fundamentos da nação.O meu país tem um governo equilibrista sobre o abismo, com uma falha no mecanismo interno a fazê-lo pender para o fascismo. A lei da terra beneficia aquele que erra. A justiça até seria uma anedota castiça mas se a verdade da igualdade não assentasse numa premissa postiça. Tudo o que é justo apanha o governo de susto, principalmente quando se eleva a voz da gente a dizer que todos são iguais, mas outros são mais. Uns são filhos da mãe, outros são filhos de ninguém.O meu país tem uma política de furto; pilha casas, empregos, salários, direitos e liberdades numa epidemia mais mortal a cada surto. Vive-se de nada quando quem devia dar tira, e há uma liberdade envenenada até no ar que se respira. A oposição dos partidos é uma colecção de favores devidos, a mão que lava a outra numa parelha obscena, que não sente culpa, remorso nem pena. É o eterno compadrio de alternância que se mantém, desde a minha infância, por anos e anos a fio, num vaivém de desdém.O meu país tem um povo que é coisa mole dentro da casca do ovo. Ainda não nasceu. Ainda não sabe o que é seu. Ainda é só população desprovida de acção. É esperar que ganhe coração com força de intenção. É esperar que a casca se parta quando a população já estiver mesmo farta. Mas a casca não se parte sozinha, como solução demasiado fácil para a dificuldade de uma adivinha. Cada um terá de sangrar os nós dos dedos sem medos. É esmurrar a casca por dentro, em desafio ao poder do centro que guarda todas as entradas e saídas, com as suas regras estabelecidas, e gritar palavras de coragem selvagem. Se quiser, entro! Se quiser, saio! Mesmo que me ataquem com todo o poder do centro, não caio!O meu país tem esperança de mudança. A esperança é uma ilusão de criança. A infância é o pouco tempo que temos para percorrermos muita distância. É a pressa de uma viagem que se faz sem sabermos onde será a última paragem. Mas nós, adultos, sabemos que, como ensina o ditado, se parar é morrer, ao deixarmos as coisas neste estado, então, será outro o chavão: calar é perder.O meu país não me pertence. É esta a realidade que me vence. É coisa para dar e vender nas mãos de quem não quer saber. É pedaço de chão mais duro do que côdea de pão. É vida difícil para se ter quando tudo o que se quer é viver. É uma promessa sem fundamento que oferece a embalagem do alimento que, por dentro, vem vazia de sustento. Sou forte, mas preciso de sorte. E da força de um cento, caso contrário, não aguento.O meu país, o meu país…
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Published on June 18, 2013 10:32

June 3, 2013

um sorriso de paisagem

No fundo, bem lá ao fundo, havia um pedacinho de verde perdido no horizonte do mundo. Era um sorriso de paisagem ou apenas a minha imaginação a acenar-me de passagem. Não sei. Passado o momento, não sei o que era. Mas olhei. E ainda bem, porque tudo o que está de passagem não espera. Havia no céu azul uma clareza de vidro de janela com transparência de limpeza. O horizonte era a linha dentada do monte. Recortes de chão que, ao longe, me cabiam na palma da mão. A subir e a descer, até onde a vista era capaz de ver. E eu, à janela, numa espera que não era mais do que o desejo de me aproximar dessa paisagem e perder-me nela. Mas apenas fiquei sentado aqui, a sonhar ilusões viajantes para terras distantes, por causa de um pedacinho de horizonte que vi.



NOTA: ver em qualidade máxima, para nitidez do texto.
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Published on June 03, 2013 15:15

June 1, 2013

a criança entretida

À porta da vida, um gato abandonado encontrou uma criança entretida. Era um menino que tocava flauta, de ouvido, sem pauta. O menino descalço era flautista que, sem ser artista, não soprava uma nota em falso. E o gato sentado, a escutar; quando tivesse aquele som memorizado afinaria os bigodes para miar.O menino flautista via o gato mas imaginava ilusões da vista. À sua frente, imaginava uma fera selvagem capaz de aterrorizar toda a gente à sua passagem. Ouvira dizer que a música amansava qualquer fera e transformava a explosão do espírito selvagem numa paciência de espera.O gato abandonado encontrou um amigo à porta da vida e deixou de ser fera enraivecida. Não foi a música que o amansou, foi a atenção do menino descalço que a tocou.

(a partir de uma imagem de Vladimir Zotov)
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Published on June 01, 2013 10:34

May 28, 2013

as putas das línguas

Junto ao mar havia uma feiticeira. Diziam que quando as mulheres nasceram, ela foi a primeira. Espalhavam-se rumores de maledicências cheias de horrores. Que a feiticeira encantava homens sem calma, que depois de seduzidos perdiam a alma. Eram tiranias de línguas truculentas que mexiam nas bocas de mulheres ciumentas. Junto ao mar vivia apenas uma mulher muito só. Tudo o que diziam eram coisas mesquinhas de gente sem coração nem dó.A mulher chorava a morte do marido como se cada instante fosse aquele em que ele tinha partido. Partir não era a mesma coisa que morrer. Partir era deixar de viver de uma maneira menos feia. Já morrer, isso, era coisa de mosca comida na teia. Mas a mulher não chorava com lágrimas. Cantava e dançava. Fazia versos no baloiçar das águas. Era assim que imaginava filhas nas ondas e espantava as mágoas.Mas as putas das línguas envenenavam-lhe a reputação. As mulheres ciumentas inventavam-lhe traições de coração. Diziam que a feiticeira comia maridos. Que os fazia sair de casa, e até deixar os filhos esquecidos. A feiticeira destruía o lar de qualquer homem que fosse capaz de a amar. E todos eram capazes. Homens e até rapazes.A mulher sentava-se na praia, tardes inteiras, à espera do pôr-do-sol. Às vezes, os homens que regressavam do mar ofereciam-lhe coisas apanhadas no anzol. O que ela queria era que lhe oferecessem companhia. Nenhum ficava. Todos tinham receio do que depois se falava. E ela ficava sentada na areia até escurecer. Havia noites em que esperava pela lua cheia que vinha depois de o sol descer.As putas das línguas só falavam da devassidão que se passava na escuridão. A feiticeira tinha mais poder quando se acabava a luz do dia. Não havia nada que não pudesse fazer, e fazer tudo era o que ela queria. Entoava feitiços para deixar os homens submissos, e mexia-se em danças despidas de saia para cativar os homens que regressavam de noite à praia. A feiticeira deixava as camas vazias e frias. Arrefecia matrimónios com o bafo gelado de fantasmas e demónios.A mulher adormecia com o fervilhar da espuma salgada. Era verdade que se despia, mas para se banhar no mar e adormecer lavada. Lavada de memória e não de pele, que o sal seca e deixa a escória que estala em casca que apenas a água doce repele. Gostava de adormecer assim, na escuridão e sozinha. Mas, às vezes, lá vinha um ou outro homem que trazia na mão uma luzinha. Não tinha o direito de mandar ninguém embora. A praia era deles também, e pertencia-lhes a qualquer hora.As putas das línguas reclamavam de todas as manhãs passadas sozinhas na cama, porque os maridos já não se encontravam. Era a feiticeira que os levava. Ela mandava no sono das pessoas que se deitavam de corpo cansado. Quando uma esposa fechava os olhos na luz que se apagava, o marido era-lhe roubado. Era preciso fazer alguma coisa que a levasse dali com os seus encantos. Não iam perder mais maridos depois de já terem perdido tantos.A mulher acordava com os passos dos pescadores que se levantavam cedo para a faina. Era um deslizar de barcos na areia, que se faziam ao mar. O canto do galo daqueles lados era a coragem dos homens acordados que não se deixavam intimidar. Deitavam pés descalços à água, sujeitos aos azares do desgosto e da mágoa. Ela só pensava ai se o mar não amaina. Pedia à Santa para os proteger. A todos, sem escolher. O marido tinha-lhe partido num dia em que ela se esqueceu de fazer aquele pedido.As putas das línguas tecerem planos malvados. Não queriam que os maridos continuassem enfeitiçados. Enquanto eles lutavam com o mar, lá muito longe do olhar, elas pensaram no que fazer para aquilo se resolver. As feiticeiras atavam-se e afogavam-se. Iam fazer tudo às suas próprias custas, e deixariam as contas saldavas e justas. A feiticeira não havia de lhes levar mais maridos. Já bastava o que sofriam pelos idos.A mulher tinha deixado os pescadores passar, e adormeceu outra vez. Antes não se tivesse voltado a deitar. Foi o pior e último erro que fez. Acordou novamente, rodeada de gente. Estava deitada no meio de uma roda de esposas muito zangadas. Foi enrodilhada em cordas bem apertadas. Sorriu para aqueles rostos cheios de ódio. Sentia-se a vencedora no primeiro lugar do pódio. Finalmente ganharam coragem para a atar. Ou cobardia, não sabia. Só sabia que a seguir a deitariam ao mar.As putas das línguas desculparam-se umas às outras, sem excepção. Aquilo era o que tinham de fazer, e bastava como razão. Não tiveram piedade para a arrastar até à água e apenas deixá-la afundar. Ergueram-na nos braços e percorreram a praia em movimentos de saia, com o peso da feiticeira a afundar-lhes os passos. Subiram lá acima, bem ao topo da colina. Seguiram o caminho do rochedo onde as alturas davam tonturas de medo. Era ali que o iam fazer. Iam atirá-la lá de cima e ficar a vê-la morrer.A mulher fechou os olhos e aceitou. Chorou. Não era feiticeira, nem tinha roubado um único marido. Nada daquilo fazia sentido. Sentia saudades daquele que perdeu. Mas esse marido era seu. Ia voltá-lo a abraçar. Pediu às putas das línguas que a atirassem ao mar.
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Published on May 28, 2013 08:29

May 26, 2013

o que somos

Somos livros de ler e deitar fora. Uma leitura sem vontade que se despacha em menos de um quarto de hora. Num qualquer quarto, a qualquer hora. Somos rapazes disfarçados de raparigas que se disfarçam de rapazes para conquistar raparigas que apenas querem ser conquistadas por rapazes que se disfarçam de homens. E essas raparigas apenas gostam de se disfarçar de mulheres. É o que eu digo para o espelho. O que é que queres, caralho? Somos todos assim, gajos e gajas, umas putas travestidas, sem coração, que aceitam dinheiro de qualquer mão. O corpo não interessa. Quando já não serve para uma pessoa escolhe-se outra que não seja essa. Muda-se a pele, está rota, tingida, apertada, fora de moda, ou qualquer outro nada — que se foda — e veste-se outra peça. O corpo antigo é saco com restos de comida, que se deixa atrás do grande contentor de lixo, em cima do charco de mijo de cão que se evapora do chão.
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Published on May 26, 2013 12:25