Pedro Guilherme Moreira's Blog, page 49
January 4, 2013
K (A, B, C) e a involução
Coisa curiosa e perturbante para o meu ofício de escrita:acabo de ler as três versões do conto de Kafka "Preparativos para uma boda no campo", publicado postumamente e disponível na Assírio & Alvim (vol. 2). Normalmente, sinto que as primeiras versões dos meus textos (e dos textos dos outros) são sempre piores do que as posteriores. Mas a verdade é que, e apesar de ser apenas o meu sentimento, a primeira versão deste conto de Kafka, de 1906 (maço de folhas A), tirou-me o fôlego (a descrição inicial dos movimentos das pessoas na cidade é magnífica), e as seguintes, que vão, creio, até 1909, centram-se mais num personagem, Eduard Raban, e menos no entorno, e não me impressionaram. Claro que foram publicadas as três porque são notoriamente diferentes, e também não sei se Kafka quis que a seguinte eliminasse as anteriores (li em livraria), mas ficou a marca para reflexão: nem tudo o que produzimos depois é melhor. Às vezes pensamos que estamos a depurar e, provavelmente, estamos a sugar a alma do texto.Foi o que senti nestas três versões do K.PG-M 2013
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Published on January 04, 2013 15:21
January 3, 2013
2013 - metade direita do círculo
Nos anos de Coimbra chamávamos à água "expectativa" (um dia conto esta história), e hoje ocorreu-me que tenho centenas de ânforas cheias no pátio. Quem quiser passe e leve. Também dou a tracção, para inverter a sublimação. A nave prossegue o reconhecimento. Tanta ânfora gera um corpo sólido que já é mais do que esperança. A Pandora não veio. Depois queixem-se. Chamem-me críptico quando eu me podia limitar à seguinte frase: contem comigo. Contém-me. Em 2013 "vai vir" a utopia sólida e combativa dos sem-garganta. Anotem aí. PG-M 2013fonte da foto
Published on January 03, 2013 12:05
2013 - metade esquerda do círculo
Vai ser um grande ano. Prometo continuar a trazer a minha nave cheia. Ninguém ficará em terra. Queira ou não queira.
PG-M 2013
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Published on January 03, 2013 11:55
Em Janeiro
Em Janeiro,
amo-te quando começam
a madrugada e o vento
e todas as outras coisas
e tudo o que é bom ou mau
como acontece no amor
que tem janeiros no fim
de cada abalo do tempo
Em Janeiro, amo-te pelo que foi
e por tudo o que há-de vir
PG-M 2011
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Published on January 03, 2013 11:36
December 29, 2012
Senhor Burke e o sexo em Coimbra
Don't you feel like cry-cry-cry-cry-cry-cry-cry.
Dias (noites) instruídos por Solomon Burke.Noites de desaforo com o senhor Burke no ouvido, ninguém por perto.E que ninguém se chegue. Sempre a cena recorrente. Sempre o mesmo problema das músicas de dois minutos e tal:coitus interruptus.Sempre o repeat. repeat repeat repeat repeat repeat repeat repeat repeat Droga não, caraças. Como é que se sente o Solomon literal com droga?Como é que eram as gravações, senhor Burke?O estúdio tinha de ser mais ou menos como a cena recorrente:nove metros quadrados, luz baixa e azulada, muito fumo, o senhor na mesa do canto, nunca pronto.O senhor na mesa do canto, nunca pronto.Fumava, Mr Burke?O seu bigode curto como o meu, os seus lábios grossos como os meus, o cabelo em carapinha como o meu dos melhores dias.Eu a ficar preto, como o senhor, e os filhos da puta dos skins a cercarem-me entre a camões e a dias da silva e eu judas:"Eu não sou preto, sou só moreno", raio de judas da dias da silva,a brandir fotografias de nerd pálido e a triste condição de caucasiano.As miúdas a milhas, senhor Burke, e nós com o tempo, e nós com o espaço, todo do mundo e sem saber o que fazer.Convenhamos:na altura o senhor andava numa cassete de crómio cuja fita (também preta, linda) tinha de ser reengolida a voltas de caneta e começou a ficar quebradiça precisamente no "Just out of reach", e, que raio, o "Just out of reach" não é grande amostra sua, pois não?Ainda não havia a moda dos "headset", senhor Burke, mas espere lá, vamos voltar atrás:o senhor, acha, senhor Burke, que eu tinha multiplicado o sexo se o tivesse replicado pelas monumentais, enquanto subia no encalço das miúdas de psicologia?E que, wasted, no meio dos betos do psd que fabricaram a vitória para a associação nos late eighties, teria alcançado o nirvana no bar da OAF, em vez de um café sem açúcar enfiado pela goela abaixo e bute? Bute para casa, que a noite acabou para ti.
Eram giras, aquelas seis de psicologia.Ou eram três?Onde estava você, senhor Burke?
"Tonight's the night", o Al Berto a ser vaiado no Dom Dinis e a mandá-los a todos para o caralho, descíamos com elas para o "Briosa", o bar do Bingo (lembra-se senhor Burke?), e era de língua até às quatro, não era preciso embrulhar miúdas podres na relva do parque, comer e ser comido pelas próprias finalistas que nos tinham galado um curso inteiro ao som do "Marilu", dos Ena Pá 2000, nós a querer e elas a deixar, mas nunca chegava, nunca havia tempo, ia-se-lhes nos arbustos e chegava sempre, cedo e a desoras, o Quim Barreiros.Porque o Quim Barreiros, senhor Burke, esse Quim Barreiros foi sempre o grande erro de casting dos oitenta em Coimbra: mas que Mariazinha no seu devido juízo se rendia a um imberbe de direito, senhor Burke?
Agora somos velhos e barrigudos, senhor Burke.Temos no regaço grandes mulheres e o melhor, pensamos a olhar o johnny distraído(s), é estarmos mais quietos do que mexidos para não dar cabo do aconchego, que para a maioria de nós nos torna, não corajosos maridos, mas pobre e conformados espécimens já devidamente identificados na tabela de correspondências faceboolkianas como os predadores depredados, que é para não dizer pior,senhor Burke(por esta hora o tamanho pouco interessa, não é, senhor Burke?).E, ainda que sejamos uns grandessíssimos e teóricos fodilhões, senhor Burke,
Don't you feel like cry-cry-cry-cry-cry-cry-cry?
PG-M 2012fonte da foto
Published on December 29, 2012 20:10
December 25, 2012
1884
Eu tinha prometido:leio as dedicatórias dos meninos de Guimarães no dia de natal, madrugada dentro.O livro fora-me oferecido, em nome de alunos e professores, no final da sessão na Xico da Holanda, e devolvido no mesmo acto:quero que todos assinem, disse.E assim foi, andou pelas turmas e foi escrito pelos meninos e devolvido embrulhado de forma maravilhosa por uma arquitecta, e deixado no Teatro da Vilarinha, no Porto, onde professoras da escola vieram ao encontro de um antigo aluno, ora actor, para o seu desempenho em "Metamorfose". Vieram e trouxeram o livro, que eu deixei para ler no mesmo hotel, no mesmo dia, no mesmo lugar e quase à mesma hora em que terminei dois livros, precisamente "A manhã do mundo" e um que, espero, verá a luz em 2013.Ainda por cima o livro tem esse título: 1884, o ano em que nasceu o meu bisavô escultor da estátua do leão e da águia, na Boavista, Alves de Sousa, e um ano em que Guimarães disparou para as estrelas, culminando, entre tantos acontecimentos notáveis, com a inauguração da Escola Industrial Francisco de Holanda: a Xico. "1884 - O ano que mudou Guimarães". Não me é possível, uma vez mais, verbalizar com justiça o que sinto.Vou tentar, mas é difícil escolher a abordagem.Não é fácil tocar pessoas jovens cuja educação é mediada por dezenas de factores e pessoas. Eu posso sentar-me a ouvir e a ser ouvido por um ancião duas gerações acima da minha, mas isso não funciona assim com jovens entre quinze e dezassete anos, mesmo havendo uma só geração de permeio. Que veias recebem o excesso de sangue que pomos a circular? É muito engraçado como uns me chamam "senhor" e outros directamente "Pedro", outros "autor", outros usam o nome "comercial" completo, e outros ainda - o que mais me tocou - começam por "querido Pedro". Por todos passa, sem excepção, uma incomensurável ternura. Há um rapaz que começa com a frase "o mar sempre me deu respostas". Um que eu aparentemente questionei em plena sessão, quando motivei os colegas a elegerem o "espertalhão" de cada turma, o que podia ser culpado pelas mazelas da personagem "Alice". Qualquer dos escolhidos desceu com coragem e...doçura. E no entanto este rapaz, depois de perorar sobre o mar, remata com a frase "Abraçar alguém sabe bem". Surpreende-me que aqueles três tenham percebido claramente que eram apenas um veículo privilegiado de uma mensagem positiva que eles próprios souberam transportar pelo pudor e respeito com que encararam o acto. Não quero ser exaustivo, mas é importante que todos saibam que li cada linha. Não me escapou uma só. Li os nomes, faltou-me ligá-los às imagens que ainda tenho e saber um pouco mais sobre cada um, algo que só foi possível entre os que se sentaram ao meu lado para terem o livro assinado. No entanto, uma menina - entre tantas, claramente das mais especiais - reteve o conselho "faz o que te apaixona e mais nada".Passa agora nos meus ouvidos a pergunta do Ray LaMontagne (canção "Are we really through"): "Are you gonna catch me if I fall?" Será um exagero pretendermos que, por hora e meia de encantamento mútuo, os miúdos, muitos já homens e mulheres apenas com um remate por fazer à saída da alfaiataria paterna, saibam que quem lhes falou seria capaz de lhes amparar uma queda, seja pelo que ali se disse e fez, seja literalmente, se as memórias não se apagarem umas às outras e houver a consciência clara do abismo de que lhes falei? Esse que está aí à frente, o que o fará - e nos fez a todos - perder os amigo para sempre. Será um exagero pretendermos que eles nos amparem a nós? Há um menino que todos conhecem na Xico.Esse menino que já não esteve na sessão e queria ser escritor e dedicou parte da sua curta vida a escrever sobre a doença que o levou, publicando-o num jornal escolar. Há uma passagem de um dos seus textos que é quase insuportável: "(...)Porém, na altura que sei que tenho leucemia e que estou bastante mal, o desespero faz com que eu me abrace ao pescoço da minha mãe e lhe diga que quero morrer....)". Eu, sem saber, estive em Guimarães por ele. Sei bem que, se o tivesse conhecido, teríamos ficado amigos e arranjado tempo para estarmos, apenas estarmos, juntos. Eu fui a Guimarães e falei da forma que falei porque era tudo o que desejava quando era da idade deles, quisesse ou não ser escritor. Estive muito atento à eventualidade de, entre eles, haver quem tivesse esse sonho ou desejo. Tentei, até aos limites do espaço que me estava reservado e me foi concedido, que todos e todas percebessem que a minha disponibilidade era efectiva, e que através de mim nenhuma dúvida, nenhuma ânsia, nenhum medo, ficaria por responder. E sempre disse que considero a deles a mais dura idade da vida.Sendo pessoas quase completas, são também pessoas dependentes com todas as possibilidades da vida em aberto e nenhuma cumprida, e isso pode ser extremamente confuso. Ter escolhido, mesmo que mal, como nós, situa-nos, dá-nos rumo, e muitos deles estão ainda à deriva e é muito importante que lhes expliquemos que sabemos ouvir, que somos capazes de os ouvir. Os mais inteligentes são de tal forma puros no raciocínio que nos podem ensinar tanto, tanto, pelo menos podem ensinar-nos a reaprender o que é a vida sem o cinismo da impossibilidade fáctica. Gosto que tenha passado para eles o conceito da simplicidade (é das palavras mais usadas).E se passou a sabedoria, é por eu ser sabedor disso: que nada sou, nada sei.Gosto que se espantem que eu tenha ido a troco de nada e vindo repleto de gratidão.Que seja pelo menos uma lição aos que vão vivendo a vida de veste leve sobre pele fria, alheios aos outros, desconfiados, pessimistas, dar amor não é um risco e, mesmo que seja, pelo bem sempre se resiste. Apetecia-me, mas não vou, nomeá-los.E mesmo que possa haver textos mais inspirados do que outros, também não vou premiá-los. Sobra a felicidade de ter sido possível, falando para quase oitenta pessoas, falar para cada uma delas, para a menina diferente e para o menino que, não contemplando, consegue sair do próprio mundo e perceber os seus limites. Obrigado a todos, obrigado "stôras", obrigado Xico.Em 2013 volto. Pelo Pinheiro. :) PG-M 2012
Published on December 25, 2012 18:47
December 22, 2012
Morro
no cotovelo do bairro há uma super-
nova
chamada Maria
e o espaço sideral dobra p'ra dentro
sempre qu'ela
passa
às cinco vinda da têxtil, e o pior
é que eu sou só moço, estrela
nenhuma,
e que eu vivo num barraco
sem anéis mas
gravidade
e se eu morro,
morro por ela,
com ela,
que o morro sem ela
é nada
loirinha do morro que eu moro
Maria
PG-M 2012
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Published on December 22, 2012 09:34
December 20, 2012
o mundo acabou, e nem um natal
e feito o pinheiro,
a estrela do topo
desaba no corpo
e o corpo ao tapete e o abraço
em desmaio nas mãos que recebem
a dobra do tempo
um gume de luzes
o mundo
acabou.
e nem um natal
as línguas debaixo do gorro vermelho
os dedos nos dedos nos dedos os dedos
quadris em cometas
um riso infinito
PG-M 2012
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Published on December 20, 2012 20:44
December 16, 2012
Quando as velhas arrastam as cadeiras no café
Queria que soubesse, Dona Ana, que quando as velhas arrastam as cadeiras no café no domingo às seis da tarde eu só as suporto porque essa é a provação final antes do silêncio. Fico com pouca gente até às sete. Com quase ninguém até às oito. E escrevo, e leio. Mas dez minutos antes de as velhas começarem a arrastar as cadeiras, serão seis menos dez, levantam-se para uma longa despedida e começam a falar alto, afogadas nos seus casacos de pele de coelho e os maridos domesticados dentro de pulôvers cinzentos, elas aos berros com as outras, eles calados a sorrir um sorriso perdido, afastado, a pensar no passo seguinte da rotina, a pensar no que contêm as suas velhas insuportáveis para que eles as suportem.Às vezes literalmente.Quando o sorriso se recompõe, percebo que eles tiram sempre a mesma conclusão: elas, que tantas vezes são o próprio abismo, funcionam como o fosso que os afasta da solidão quando se começa a enterrar os companheiros de sueca. A solidão é um rio que passa por baixo e à volta do castelo. E o sorriso fica quase uma linha horizontal, às vezes menos do que isso, a imagem clássica do palhaço a remover a maquilhagem. E quando o café se cala eu penso que há uma razão para eu não retardar a minha chegada ao domingo. Eu ia sentir falta das velhas insuportáveis, as mesmas que nos dão murros nas filas de supermercado, as mesmas que nos empurram no autocarro, estas são as velhas felizes, as que combatem como elefantes enfurecidos o tratamento garantido da forca de chão com arrasto e enterro de corpo vivo. E lembro-me do choro invisível da avó naquela urgência hospitalar, o olhar rasgado a clamar, não me deixem aqui, não me deixem aqui, não me deixem aqui que morro já. Afinal, se eles têm de morrer que não morram ao lado de quem encolhe os ombros e desonra batas brancas, diz que é normal nesta idade e pouco mais há a fazer e não, não é aconselhável uma operação, é muito invasiva.
Mais invasiva do que a morte, senhor doutor?
E claro que sinto falta de velhas insuportáveis que não deixam que lhes passem a perna, a forca ou a lama. A primeira vez que passei à porta deste café eram sete e meia da tarde e estava vazio, parecia quente e a luz pela metade, decidi que viria para cá escrever e esperar, mas quando finalmente vim era demasiado cedo, e lá estavam as velhas ainda a lanchar e a falar e a falar e eles com os olhos no chão e um olhar perdido. Perdido, não infeliz. E depois lá se iam elas embora, começavam a gritar, nem nos meus ouvidos a música lhes abafava o ruído, se tivessem uma fila passariam por cima de nós, se regressássemos de autocarro seriam violentas.
Mas são os abismos que separam os seus velhos da solidão e da morte.Mais invasivas do que a morte, senhor doutor?
Não, Dona Ana, quisera eu que a avó tivesse velhas insuportáveis que arrastassem cadeiras no café para os seus lanches de domingo.
Daí ter-lhes uma raiva retórica e um amor dedicado.Não há nada de linear nos bons e nos maus sentimentos.Estes velhos são felizes com estas velhas insuportáveis, que são felizes entre elas, ou pelo menos quando com elas.Agora tenho para mim a estratégia Snow Patrol: Chasing Cars a 100% nos ouvidos. Não, não, Dona Ana, ninguém sossegou. Continuam a incomodar-me, ainda as ouço aos berros e nada abafa o arrastar de uma cadeira nesta tijoleira. Mas prefiro assim. Cuido dos nossos velhos suportando as inspuportáveis, como os seus velhos para que tenham um fosso que os separa da solidão. Não, Dona Ana, não é possível sorrir durante o ataque, o meu limite é gostar delas afogadas nos seus casacos de pele de coelho e os óculos Valentino pagos pelo seguro encostados às pestanas com excesso de rímel. Não me peça mais. Mas não é mau, isso concedo, vê-las felizes enquanto enlouqueço. PG-M 2012fonte da foto
Published on December 16, 2012 11:21
O postal dos matulões da cadeia de Caxias
Uma duzia de homenzarrões (confinados) da prisão de Caxias ofereceu-me isto - de lavra própria - na quarta-feira passada, quando com os olhos a brilhar me falavam de livros, muito mais do que do meu livro. Os perdidos, os incorrigíveis, os sem esperança? Se nos descentrássemos mais dos nossos umbigos, percebíamos que somos todos melhores do que a amostra. Bom Natal!
PG-M 2012
Published on December 16, 2012 10:58


