B. Pellizzer's Blog, page 3
January 22, 2021
Divagações de escritor

Vez ou outra eu sou tomada por umas piras de que sou capaz de me comunicar com o Universo através da natureza. É um tipo próprio de meditação que não necessariamente está listado nos ensinamentos Rosacruz. Visualizo minhas frustrações sendo carregadas pelo vento; sento-me debaixo do sol enquanto sinto o calor penetrar nos meus poros e expulsar as doenças pelo suor; permito que a chuva me lave internamente.
E quando a natureza se enfurece, ah!, eu acho lindo!
Não que eu aprecie as consequências da fúria, mas enquanto ela está furiosa, é como nosso tipo particular de batalha, somos eu e a natureza. Ela declarando que sou uma intrusa em seu mundo enquanto eu berro de volta que aceito a batalha e mando vir mais. E quando a fúria cessa, e eu continuo aqui, a invasora, não intacta, mas vitoriosa, sinto-me poderosa.
Venci o vento.
É uma loucura muito boa pra mim se querem saber. Uma catarse.
Recentemente e não conscientemente, minhas filhas se juntaram a mim nesse ritual de guerra. Digo “não conscientemente” como uma suposição, mas não tenho como saber o que elas pensam enquanto guerreiam. Talvez nem estejam guerreando, talvez estejam amando. Não vou perguntar.
Então, quando o tornado atingiu Santa Catarina no ano passado, a gente não sabia que era tornado, a gente somente viu o céu encoberto por nuvens densas, baixas, de cor cinza-escuro que, a despeito da velocidade do vento, moviam-se mansamente, como em uma marcha hipnótica. E a gente olha para elas sabendo que são perigosas, mas elas se aproximam tão devagar, que é imperativo desafiá-las, ficar um pouco mais, esperar que estejam mais perto antes de começarmos a temê-las. Por isso, enquanto o vento açoitava a goiabeira fazendo com que se envergasse até que o galho mais alto atingisse o chão, nós três nos revezámos nos galhos, esperando que, quando a árvore, lutando contra a força do vendaval, voltasse para o alto tirasse nossos pés do chão ao mesmo tempo em que o vento chicoteava nossos corpos, bagunçava nossos cabelos e a garoa fina umedecia nossos ânimos e almas. Não tinha luz, não tinha internet, havia apenas o vento, a goiabeira e nós três.
Que tarde aquela!
No final do dia, quando comecei a ver as notícias e entendi o que havia acontecido, o estrago que havia sido, fui invadida pela culpa. Uma culpa irracional. Uma culpa que vem do condicionamento de anos e que nos impede de aproveitarmos nossas bênçãos quando há tanta miséria ao redor. Me senti culpada por ter aproveitado do vento que tanto estrago havia causado, ainda que eu não tivesse sido responsável pela ventania.
Insanidade.
Passaram-se as semanas e veio a chuva, a chuva forte, daquelas que lavam e carregam tudo ao redor, daquelas que simulam rios. Estava tão quente naquela noite. Não chovia havia tanto tempo, e era tanta água, tão tentadora, tão convidativa...
Não, não resistimos.
Era quase meia-noite, mas estávamos lá, no quintal, rodopiando embaixo do chuveiro celeste, comemorando a vida da água que inunda e lava; que arrasta e dissolve; que afoga e batiza como se fosse a transfiguração do princípio religioso mais básico: o renascimento que vem depois da morte. Era um milagre, e estávamos desfrutando dele.
Que noite aquela!
No dia seguinte, as notícias denunciavam as enxurradas, os deslizamentos, as mortes. Em mim, novamente a culpa. Culpa por ter pedido por mais água, culpa por estar segura quando tanta gente não esteve, culpa por ter rido enquanto tanta gente chorava.
A culpa é uma âncora que amarram em nossos pés tão cedo quanto aprendemos a estender as mãos para tentar tomar o que queremos.
Insanidade.
Chove agora.
Aqui, o rio já passa dos cinco metros e é provável que as famílias que moram perto do rio precisem deixar suas casas, de novo.
Eu?
Ontem à noite, enquanto a chuva caía, pemitia-me ser banhada pela água enquanto, nos meus fones de ouvido, Dana Glover, com sua voz macia, cantava, numa tradução livre: “É, eu acho que é assim que tem que ser, é muito bom sonhar dias chuvosos. Eu posso ouvir o que dizem, mas não posso sentir sua alma. As pessoas dizem que as marés estão mudando, mas nada parece mudar, e quando eu sintonizo o rádio a dor ainda é a mesma”.
É... eu acho que meu celular já sabia que a culpa viria, mas talvez seja assim que tenha que ser e, ainda citando Dana Glover na mesma música, “eu não posso esperar que o mundo pare de girar apenas para me ouvir”, então, por que a chuva o faria?
É assim que tem que ser...

January 21, 2021
Amor virtual

Haviam se conhecido pela internet. Moravam um em cada continente. Não planejaram o futuro que ganharam, simplesmente aconteceu.
Aconteceu depois de horas infinitas de conversas, depois de linhas incontáveis de mensagens; aconteceu depois de uma quantidade impossível de ser numerada de emoticons. No começo, eram carinhas felizes, depois vieram os corações vermelhos e, sem nem perceberem, começaram a trocar carinhas safadas.Quando o inevitável também aconteceu, e eles cruzaram o mar para se colocarem frente a frente, descobriram, um do outro, aquilo que nenhuma mensagem ou videochat poderia contar.Ela precisava do silêncio e era silenciosa; quieta como uma capela mortuária; quieta até como os defuntos da capela.Ele? Ele era o trovão que rasgava a noite e anunciava a tempestade, ele era a própria tempestade e, quando passava, não podia ser ignorado. Falava alto, ria alto, comia alto. Batia todas as portas, estralava todas as juntas, arrastava todos os copos.Ele era limpo e organizado. Era limpo como uma sala esterilizada, organizado como a tabela periódica; de fato, se lhe fosse permitido, trocaria o Carbono de lugar com o Oxigênio. Tinha uma opinião sobre tudo. Ela? Ela nem se lembrava da última vez que havia pegado uma vassoura nas mãos. Era bagunçada como um furacão. Ela era o próprio furacão e, quando passava, deixava um rastro de xícaras sujas de café, livros abertos, e migalhas de biscoito.Ele a enlouquecia.Ela o enlouquecia.Mas quando estavam juntos, e todas as diferenças eram esquecidas, mergulhavam nos olhos castanhos um do outro.E eles se enlouqueciam.Ela amava o fato de ele olhá-la sempre nos olhos, não importava como, não importavam as posições de seus corpos nos mais estranhos ângulos que o amor os obrigava a assumir; de alguma maneira, aqueles olhos estavam sempre lá, fixos nos dela, como se vasculhassem sua alma. Quanto aos olhos dela, ficavam distraídos demais varrendo o corpo dele, tentando entender como era possível que cada pelo daquele corpo fosse louro, mas ele tivesse cabelos escuros.Ele amava o fato de ela estar sempre sorrindo; até quando zangada, ela sorria. E quando chorava — de emoção, alegria, ou raiva, Deus! como ela chorava por causa da raiva! —, as lágrimas corriam por suas bochechas e sempre morriam naquele sorriso, o sorriso que nunca cessava. Quanto ao sorriso dele, sempre ficava maior quando a via chegar, e ele não conseguia entender como era possível uma mulher de roupa amassada e cabelos despenteados ser tão devastadoramente bela.Quando a separação era inevitável, e cada um voltava ao seu próprio lado do mar, ela sentia falta do barulho, ele sentia falta da bagunça.Pelas manhãs, ela comia torradas apenas para ouvir o próprio mastigar; pelas noites, ele espalhava livros pelo chão do quarto para que pudesse tropeçar quando levantasse no meio do sono.Era então que a saudade os enlouquecida e, enlouquecidos, buscavam seus celulares.Pela tela, ele a olhava nos olhos.Ela?Ela sorria.
January 17, 2021
Numa eternidade qualquer

Num cruzamento qualquer, de uma avenida qualquer, em um dia normal, tão normal quanto qualquer outro, seus olhares se cruzaram.Não pareceu especial quando aconteceu. Ela estava do lado direito, ele estava do lado esquerdo. O semáforo fechou para os carros. Caminharam, um em direção ao outro: pedestres quaisquer. Ele sentiu o perfume dela; ela notou a pequena cicatriz na sobrancelha dele.Ele pensou em mistério; ela pensou em traquinagens infantis.Ele gostava de mulheres que usavam perfumes florais, e pensou que aquele cheiro combinava com ela; ela gostava de homens com cicatrizes, e pensou que aquela marca, logo acima do olho direito, o fazia másculo.Pensamentos são engraçados: volitam em nossas cabeças todos ao mesmo tempo, em turbilhão, não se sabe onde nascem ou quanto tempo duram, mas as mãos dos caminhantes se roçaram sobre a faixa de pedestres, e aquele momento pôde ser medido em eternidades.Ao alcançarem a calçada — ele do lado direito, ela do lado esquerdo — ambos se viraram. Ele sorriu.Ela corou.Ele pensou em voltar e se apresentar. Ela virou as costas e partiu.Ela chegou ao trabalho para mais um dia qualquer, não mais pensou no eterno que sentiu ao tocar a mão do estranho, mas seu peito carregou — por todo o dia — um vazio. Como se faltasse alguma coisa.Ele chegou ao trabalho para mais um dia qualquer; ainda dedicou algum tempo para pensar na moça de perfume floral e bochechas coradas, mas logo se perdeu em ocupações. Ao final daquele dia, descobriu-se sentindo saudades, só não sabia de quê.Naquela noite, ele sonhou com ela.Ela sonhou com um menino que havia cortado a sobrancelha ao cair de cima de um muro.Ele não se lembrou do sonho no dia seguinte; ela também não.***Em um cruzamento qualquer, de uma avenida qualquer, de qualquer cidade, dois pedestres quaisquer — ele do lado esquerdo, ela do lado direito — cruzaram seus olhares.Ele sorriu pensando em seu perfume; ela se surpreendeu ao pensar em um menino com o rosto ensanguentado. O semáforo demorou muito tempo para ficar vermelho. Um tempo que só pôde ser medido em eternidades.Ele caminhou em direção a ela.Ela tentou não caminhar em direção a ele.Seus olhos se cruzaram sobre a faixa de pedestres.Ele disse oi.Ela baixou a cabeça.Ao alcançarem o outro lado da calçada — ele do lado direito, ela do lado esquerdo —, viraram-se.Ele acenou.Ela sorriu.***Em um cruzamento qualquer, de uma avenida qualquer, em um dia cheio de expectativas, dois pedestres apaixonados — ele do lado esquerdo, ela do lado direito — cruzaram sorrisos.Ela tinha colocado um vestido que valorizava a cintura; ele usava uma camisa de botão e tinha gel nos cabelos.Caminharam um em direção ao outro. Ao se encontrarem, sem saber o que dizer, ele desviou para a esquerda, ela para a direita, e se encontraram mais uma vez.Ele pediu desculpas.Ela disse: “Tudo bem!”.Ela notou o sorriso dele.Ele imaginou aquela voz lhe desejando uma boa noite depois do amor.Seus olhos se encontraram e se notaram, suas pupilas dilatadas mergulharam uma dentro da outra: um segundo medido em eternidades. As irises dela tinham pontinhos verdes. Os olhos dele eram negros como o pecado.Ao alcançarem a calçada — ele do lado direito, ela do lado esquerdo — ambos se viraram. Ele deu um passo em direção a ela; ela esperou.Ele correu. Ela se alegrou.O semáforo abriu.Ele nem percebeu. Ela se assustou.Em uma esquina qualquer, que ficaria marcada na eternidade da história de dois pedestres quaisquer — ele do lado esquerdo, ela do lado esquerdo — duas mãos direitas se encontraram em um cumprimento.— Oi.— Oi.Ele sorriu. Ela também.Ela lhe deu seu telefone. Ele ligou.Os dois foram a um cinema qualquer, assistir a qualquer filme, em companhias especiais.***Em um cruzamento qualquer, de uma avenida qualquer, em qualquer cidade, um casal de pedestres qualquer, fazia seu trajeto de mãos dadas, todos os dias, como se fossem dias quaisquer.Às vezes, iniciavam o cruzamento do lado esquerdo; às vezes do direito; e aquelas esquinas acumularam mais um amor qualquer, sem qualquer importância para os que por ali passavam todos os dias em sua apressada rotina, sem desconfiar que, num dia qualquer, um casal de pedestres havia iniciado, ali, uma história de amor medida em segundos eternos.***Em uma igreja qualquer, de uma cidade qualquer, em um dia cheio de promessas, dois amores se aceitaram para construir uma vida eterna qualquer. Construíram sua casa em uma esquina porque era assim que tinha que ser, e depois de muitas petições, alegando pouca segurança no tráfego, conseguiram que a Prefeitura instalasse ali um semáforo qualquer, apenas como lembrança daquele amor especial.Todas as manhãs, ela olhava para ele.Todas as noites, ele agradecia a Deus por ela.Todos os dias, os dois trocavam beijos quentes.***Até que chegou o dia em que os beijos deixaram de ser quentes e viraram beijos quaisquer.Ele pensou que tinha se casado muito cedo.Ela se frustrou com a frieza dele.Em um dia qualquer, um casal qualquer saiu de casa para o trabalho depois de uma briga, e não uma briga qualquer.Ele disse basta.Ela chorou.Ele foi para o trabalho.Ela ficou para fazer as malas dele.***Em um cruzamento qualquer, de uma avenida qualquer, em uma cidade qualquer, um casal muito triste — ele do lado esquerdo, ela do lado direito — cruzou olhares perturbados.Ele se lembrou da moça com perfume floral — nunca mais tinha parado para sentir o bom cheiro de sua mulher.Ela se lembrou da pequena cicatriz — nunca mais tinha olhado para os olhos de seu marido.Duas epifanias que duraram um tempo que só pôde ser medido em eternidades.Sobre uma faixa de pedestres qualquer, um casal qualquer virou notícia ao trancar todo o trânsito de uma avenida qualquer para um beijo de reconciliação especial.Ela disse que o amava.Ele disse que morreria por ela.***Depois de uma eternidade qualquer, um casal qualquer olha um álbum de fotografias cheio de recordações, enquanto o Universo contempla, do alto, o teto de uma casinha qualquer, que abriga o amor de um casal qualquer na enormidade do Cosmos.

January 10, 2021
Se eu quisesse...

Se eu quisesse falar do teu beijo, não falaria da tua boca que cobre a minha, ao mesmo tempo exigente e suplicante.
Não.Se eu quisesse falar do teu beijo, falaria da minha boca que espera e se rende aos caprichos da tua; falaria da saliva que brota sob minha língua; e do gosto de mais que sempre fica depois.Se eu quisesse falar do teu beijo, falaria da minha pele que se assanha, que sente tua aproximação em cada milímetro exposto, em cada poro oculto, em cada ranhura desconhecida. Que anseia por teu toque desde as solas dos pés até a raiz dos cabelos. Que solta faíscas que me envergonham ao denunciar o quanto meu corpo é viciado no teu toque.Se eu quisesse falar do teu beijo, falaria da minha respiração que se acelera, que manda para fora de mim os rasgos de vida que a ti dedico.Vida que me deixa e te toma.Vida que me escapa e a ti assoma.Vida que respira um alento que já não é mais meu.É nosso.Se eu quisesse falar do teu beijo, falaria das minhas mãos que correm tua nuca, emaranham-se em teus cabelos e se entranham em teu perfume que ali fica.PereneIncessanteTóxicoE faz com que, cada vez que me ponha as mãos no queixo para pensar em ti, te pense ainda mais.Se eu quisesse falar do teu beijo, falaria dos meus olhos que se fecham para que eu possa melhor te sentir, mas que se doem de saudade do teu rosto tão perto do meu.Se eu quisesse falar do teu beijo, ah!, mas é claro que eu não quero falar...Vem e me beija!
January 3, 2021
Prendam suas cabras, porque meu bode está solto

Sempre fui uma cabritinha muito faceira; pra mim, o mundo era um quintal sem porteiras. A maternidade me fez sossegar, não porque eu tenha deixado de acreditar na liberdade, mas porque eu passei a ser responsável por outras duas pessoas, e isso exige um grau de comprometimento. As minhas duas pessoas, entretanto, estão crescendo e, quanto mais perto da independência estão elas, mais perto da liberdade estou eu e, confesso, já voltei a balir e sacudir meu rabinho aqui e ali conforme as algemas da maternidade vão se afrouxando.
Sendo uma cabritinha alegre que viajava muito e tinha uma tendência patológica a trabalhar até tarde, eu tive meus problemas.
A liberdade, como qualquer outra coisa que vale a pena, tem seu preço.
Perdi a conta de quantas vezes fui assaltada: em algum momento, a habilidade de ser assaltada com o menor trauma possível meio que se transformou no meu superpoder, e eu aprendi a negociar documentos e dinheiro pra condução; também aprendi a antecipar o assalto, mas, acreditem, é uma habilidade inútil, já que nem sempre você consegue evitar mesmo sabendo que vai acontecer.
Também perdi a conta de quantas vezes fui apalpada, assediada, chamada de louca por meter a mão na cara dos idiotas que me apalpavam. Eu tenho um dente desalinhado na frente que eu digo pra todo dentista que se preocupa com gengivite, que eu consegui em um acidente de carro, mas que, na verdade, eu ganhei numa briga com um tipo que achava que uma mulher sozinha, bebendo uma cerveja gelada durante uma noite quente está — com certeza — procurando companhia. Que noite aquela!
No meu mundo ideal, aquela noite deveria terminar como terminaria a do Van Dame: o macho escroto atirado no chão, derrotado, enquanto o garçom enchia meu copo com mais cerveja gelada. Então eu beberia um gole da cerveja, sorriria e soltaria alguma frase de efeito espirituosa. Flash. Corta para o ambiente externo. Fim da história.
Mas eu não sou o Van Dame, e aquela noite terminou como várias outras: com alguém me perguntando o que eu estava fazendo sozinha, naquele lugar, àquela hora da noite. Terminou com alguém dizendo que a culpa era minha.
Mesmo quando eu era assaltada, quando fazia o registro da ocorrência, a pergunta era sempre a mesma: Por que você estava sozinha a essas horas?
Não importava se eu tava saindo do trabalho, o que quase sempre era o caso; não importava se o bar onde eu tinha parado pra tomar a cerveja e comer uma batata ficava na frente do hotel onde eu estava hospedada; não importava nada, porque nada justificava o fato de eu estar sozinha — pobre de mim — e desprotegida durante a noite.
Não, eu não era o Van Dame, eu era uma cabra e deveria estar presa.
Claro que isso não me impediu. Nunca. Acumulei muitas histórias, amores, amizades, hematomas, saudades, mas jamais permiti que incidentes isolados tirassem minha liberdade. E mesmo que eu acumule um histórico bastante “emocionante”, a verdade é que eu tenho mais comédias do que tragédias para narrar.
Por que estou brincando de lembrar dessas coisas?
Esta manhã, vi uma manchete online denunciando que uma menina de 13 anos havia sido ameaçada e estuprada. Na rua. Durante o dia. Vou repetir: 13 anos.
Não li a matéria; esse tipo de conteúdo me faz mal, não gosto. Mas passeei pelos comentários e, ali, eu vi o retrato cruel da cultura do curral das cabras: “O que uma menina de treze anos estava fazendo sozinha na rua?”, traduzindo para a linguagem da família tradicional: “Por que não prendeu sua cabra?”.
Sério.
Ela tem 13 anos, não treze meses. Sabe sair sozinha de casa e tem o direito de fazê-lo. Tem o direito de ir sozinha até a padaria, ao supermercado, à escola, à casa da amiga ou a lugar nenhum (que se dane!) ela tem o direito de colocar o pé na rua sem ser violada.
Que mundo é esse onde uma menina de 13 anos é estuprada, e a culpa é transferida para a mãe por deixá-la sair de casa?
Até quando vamos permitir que nos digam o que podemos fazer, como fazer e com quem fazer?
Até quando vamos aceitar levar a culpa por más ações que não foram nossas?
Até quando vamos dizer às nossas filhas que elas não são capazes de sair, se divertir, de viver e trabalhar sem alguém que as defenda?
Até quando vamos repetir e repetir que as mulheres são incapazes?
Não somos!
Se aquela menina de treze anos soubesse que não era culpada pela ousadia de sair sozinha na rua, talvez tivesse clamado por seu direito e gritado, ou corrido, ou pedido ajuda, não sei. Mas disso eu sei: ninguém consegue fugir de um fardo de culpa firmemente plantado em cima dos ombros.
A gente cresce ouvindo: não saia sozinha; se te atacarem, não lute; não provoque, não sente de perna aberta, não sorria, não fale alto, não chame a atenção, não, não, não e não... tudo é não. Somos programadas para precisarmos ser defendidas, algumas de nós achamos até bonito exercer o papel de donzela indefesa e, como boas donzelas, devemos fazer nossa parte e facilitar o trabalho do príncipe ficando quietinhas na torre do castelo.
Até quando?
O que ela estava fazendo na rua sozinha?
Estava vivendo.
Não compactue com os e as canalhas que dizem que ela não pode.
A pergunta que deve atormentar e mobilizar cada um de nós é: “o que um estuprador estava fazendo na rua?”

January 1, 2021
Viva 2021

É o último dia do ano, e eu sinto vontade de fazer de conta que estou de volta ao primeiro dia, pegar 2020 no colo e niná-lo, e dizer que vai ficar tudo bem.
Não posso.
Mas posso escrever aqui e dizer pra vocês:
não, não foi um ano maldito;
não, não deu tudo errado;
não, não foi um ano perdido.
Você
chegou
até
aqui
Você venceu doze meses, caramba!
Você acordou, dormiu, olhou para o sol, tomou banho de chuva, riu, chorou, brigou, fez as pazes.
Não apague o ano que te ensinou o quanto você pode ser forte. Se você apagar isso, se você fizer de conta que esse ano nunca existiu, você também vai apagar todo o aprendizado.
Talvez nem tudo tenha valido a pena, mas nada foi em vão e, mais importante:
VOCÊ AINDA ESTÁ AQUI.
Ame-se
Cuide-se
Abençoe-se
Viva 2021!

December 23, 2020
Ser mãe é dureza

Se não é contra a lei, se não atenta contra a Constituição e se eu posso pagar, elas têm.
É aniversário, sim, mas já serve como aula de Educação Moral, Cívica e Financeira, tudo junto.
Elas adoram.
Em geral, não traz grandes prejuízos, eu passo horas cozinhando tudo o que elas podem imaginar que querem comer; depois, nós passamos a semana inteira vivendo de sobras.
Mas aí existe a minha filha mais nova. Acho que a maior frustração da vida dela é ter nascido hmm... fofa. Sério. Ela é miúda, esguia, tem mãos pequenas de dedos longos com unhas que ela gosta de manter compridas; os cabelos também são compridos, e Deus te ajude se você sugerir “tirar as pontinhas”. Tudo nela grita Princesinha da Disney. E ela odeia. Ela quer ser malvada, quer ser o Grinch, o Hannibal Lecter, o bicho-papão. Mas a gente olha pra ela e pensa “Ownnn, mo deuso, que coisa querida! Olha como ela fica linda quando tá brava!”
Claro que a personalidade da mocinha nada tem a ver com as princesas da Disney ou de qualquer outro reino conhecido, mesmo que o máximo de rebelião percebida em sua arte seja os desenhos de gatinhos fofos com dentes e enormes e chifres pontudos. Sim. Até os desenhos dela são malvados e fofos ao mesmo tempo.
Para tentar ficar menos fofinha, ano passado ela “goticou”, entrou numa de vestir preto e, no dia Mega Uber Rainha Universal do Mundo Mundial, ela pediu um soco-inglês, que a louca da mãe dela deu, juntamente com batom preto, esmalte preto, e uma camiseta preta de estampa perturbadora; de quebra, ainda levou um tabuleiro Ouija (que nós vamos usar para nos comunicarmos com o Espírito do Natal este ano) e um diabinho vermelho de pelúcia, que ela diz que é uma vaca e se chama Davi, presentes de um casal de amigos meus.
Este ano ela relaxou no gótico — mesmo que durma com Davi todas as noites e coloque o soco-inglês embaixo do travesseiro sempre que escuta um barulho estranho na casa —, então eu pensei que não precisaria pensar em nada tão perturbador como outra arma branca para minha filha de 14 anos.
Tava sossegada, pensando que eu só precisaria cozinhar, quando ela decidiu que queria comer...
Preparem-se...
Um escorpião
Isso mesmo
No dia do dia mais mega-ubérico do ano, ela só quer comer um escorpião.
Depois de engolir a minha bílis, eu falei que tava fora do orçamento, ela perguntou o porquê, e eu respondi que não tinha dinheiro para pagar a viagem até a China, então ela suavizou os padrões: podia ser outro inseto, outra comida esquisita qualquer, só tinha que ser diferente.
O meio-termo: gafanhotos.
E eu pensei: ok, eles estão invadindo o país mesmo. Estão vindo aos montes da Argentina. Gafanhoto com sotaque espanhol. Por que não?
Nunca fiquei tão feliz por conhecer tanta gente.
Meus amigos se empenharam na missão. Teve gente que mandou receita de gafanhoto, teve gente que me recomendou farofa de formiga, teve gente que conhecia um cara, que conhecia um cara, que tinha um primo que criava larvas para pratos exóticos. Chegou num ponto que até eu já queria comer aquilo lá.
Planejei até as fotos para o Instagram: “olha que mãe excelente eu sou: assei um bicho nojento pra minha filha comer”.
Cardápio feito, insetos e larvas providenciados, juntamos tudo no carro de um amigo argentino que estava vindo passar uma temporada nas praias catarinenses. E eu aqui, toda pimpona pensando: “Eu não acredito que deu certo!”
É... não deu...
No meio do caminho tinha uma polícia rodoviária; tinha uma polícia rodoviária no meio do caminho.
Cêis acreditam que precisa de autorização pra transportar inseto???
Bom... talvez se os insetos tivessem sidos abatidos antes não houvesse problema, mas os pobres estavam confinados em garrafas e vivinhos da silva. Não entraram no estado.
Quando meu amigo ligou avisando que a carga havia sido apreendida, eu dirigi até o posto de polícia mais próximo de mim pra tentar uma comunicação, tentar pedir pelo amor paternal, rogar pelo espírito natalino, qualquer coisa.
A cara do policial quando eu expliquei que aqueles insetos eram o presente de aniversário da minha filha não teve preço.
Sério.
No fim, eu acho que ele pensou que ninguém inventaria uma história tão ridícula, e realmente tentou me ajudar a recuperar o contrabando, mas não teve jeito. Meus bichinhos provavelmente foram incinerados e agora estão no céu dos insetos denunciando meu karma que está prejudicado pelos próximos 15 anos.
Este ano, não vou conseguir cumprir minha missão.
Contei pra ela o que havia acontecido e pedi um plano alternativo, e ela se contentou com cozinha estrangeira. De novo o diferente.
Vamos de festa mexicana.
E lá fui eu de novo. Tenho incontáveis receitas de tortillas de todas as mães de amigos que fazem a melhor tortilla do mundo. Juro, todas as receitas são iguais, então quando for dar o retorno vou poder dizer satisfeita: “sim, eu escolhi a da tua mãe, você tinha razão, é a melhor”; os tamales já vão ser mais complicados. Minha geladeira está apinhada de pimenta e, se tudo der certo, vai ter copinho de tequila cheio de guaraná Kuat para a experiência completa. Só me falta o abacate para a guacamole, o sombreiro (que eu já desisti de conseguir) e, claro, a piñata.
Não existe aniversário mexicano sem piñata.
Dessas eu também recebi muitas receitas de como fazer, e agora estou aqui, com um balão gigantesco que é a base da coisa.
O problema
Não riam...
Eu tenho medo de balões.
Tá... podem rir.
Não sei o que é, me dá agonia, eu vou enchendo e parece que meu medo vai se inflando junto, começa a me bater um desespero de que aquilo vai explodir na minha cara... eu não consigo... simplesmente não consigo.
Meu nome é Betti Pellizzer, e eu tenho medo de balões coloridos.
O aniversário dela é dia 28, então eu tenho cinco dias para fazer a tal piñata, por isso, logicamente, estou aqui escrevendo textinho pro Facebook em vez de ir até a casa vizinha e implorar que alguém encha um balão pra mim.
Imagina a marmanja aqui, chegando com um balão rosa na mão, pedindo pra encher porque ele me dá medo... Pois é...
Ser mãe é dureza...

December 21, 2020
Amor real

No fim de 2018, meu ex-marido sofreu um gravíssimo acidente de moto. Lembro-me muito bem quando me ligaram do hospital: assim que a moça se identificou, dizendo de onde estava falando, eu nem deixei ela terminar a frase, já perguntei se ele estava vivo. Estava consciente o suficiente para desbloquear o celular e dar meu número de telefone. Entre o ser orientada pelo médico, saber que ele com certeza perderia uma perna e talvez um braço, esperar o dia amanhecer para avisar minha sogra, esperar na antessala cirúrgica, contar para minhas filhas sem poder prometer que o pai delas ficaria vivo, tentar recuperar a moto, tentar descobrir onde foram parar as coisas dele (roubaram tudo: roupas, presentes de natal, dinheiro), falar com gente de seguro e tentar fugir dos urubus do DPVAT foram mais de quinze horas, mas acreditem, valeram por sessenta.
Aquela cirurgia que não acabava nunca, depois o pós-operatório que não acabava nunca... e a incerteza? Senhor! A incerteza... “Foi tudo bem na cirurgia, mas não podemos prometer que ele vai sobreviver, tem que esperar o pós-operatório”; “Foi tudo bem no pós-operatório, mas não podemos dizer que ele vai sobreviver, tem que observar”. E a moto, e o seguro, e os caras do DPVAT... Sério, gente, por que fazem isso? E o plano de saúde, e a moto, e o seguro, e os merdas dos caras do DPVAT tudo de novo e de novo. Era um carrossel, toda hora as mesmas coisas, enquanto a gente só queria saber se ele ia sair vivo.
E eu ali, sem o direito de estar ali, mas falando com a Polícia Federal pra saber onde estava a moto; falando com os bombeiros para saber onde tinha sido o acidente para recuperar a bagagem; falando com plano de saúde para tomar decisões que eu não tinha o direito de tomar, tentando não mandar à m*rda um quarto ou quinto urubu do DPVAT.
Quando ele finalmente foi pro quarto, eu falei pra minha sogra que sabia que eu não tinha que estar ali, pedi desculpas por estar mentindo pra todo mundo que ele era meu marido ainda, mas que eu ia ajudar no que pudesse, e disse que depois ele podia vir pra minha casa porque eu sabia que seria difícil o cuidado nos primeiros dias por causa da falta da perna.
Muito gentil, minha sogra disse que eu tinha sim o direito de ficar ali e que era pra ficar porque ela precisava de ajuda.
Como boa imbecil que sou, eu fiquei. Digo imbecil, porque eu conheço muito bem meu ex-marido e sabia que boa coisa não sairia de todas as decisões que eu estava tomando naquele momento, sabia que aquilo tudo se viraria contra mim de alguma maneira.
Mas não é sobre isso que quero falar. Isso tudo estou contado pra contextualizar vocês do momento mental que eu estava quando, naquela noite, amontoada na cadeira do lado da maca enquanto meu ex-marido dormia, sem ter a certeza de que ele passaria por aquela noite, eu peguei meu celular para contar para meu ex-amigo-atual-namorado o que havia acontecido, e das promessas que eu havia feito. Vocês aqui o conhecem como ***, e estou contando esta história porque dezembro é o mês de eu contar histórias de amor.
Pois bem, depois de ler tudo o que eu havia escrito, *** perguntou como eu estava e se precisava de ajuda, eu disse que tudo bem e que ele ficasse tranquilo, mas que seria difícil de a gente se falar nos próximos dias.
Na segunda-feira, logo cedo, foi que o inferno começou: plano de saúde. Queriam transferir meu ex-marido para um hospital conveniado, fora do estado. Se ficasse aqui, o plano não se responsabilizaria, e ele seria operado (para não perder o braço) pelo SUS. Vocês não têm ideia do terror psicológico que é isso. As coisas que falam pra gente... Parece que a pessoa está condenada à morte se não tiver um bom tratamento médico, mas eles se recusam a dar um bom tratamento médico sem saber quem está tratando.
Eu sabia que o certo seria ele ser transferido de uma vez para operar aquele braço logo em vez de ficar esperando e correr o risco de perdê-lo. Os médicos não queriam operar porque, se ele tinha plano de saúde, podia ser operado com uma placa de qualidade superior, então ficavam me forçando a pressionar o plano para pagar a cirurgia; do outro lado, o plano não reconhecia o hospital nem os médicos como dignos de seus padrões e me pressionavam para pedir ao hospital que autorizassem a transferência.
Eu sabia o que era melhor, mas eu não tinha direito de tomar aquela decisão.
Minha sogra só me olhava.
Meu ex-marido falava, se mexia, olhava pra gente, mas não estava consciente de verdade. Estava confuso e grogue e não tinha memória de curto prazo; pior, não tinha consciência de que estava sem memória.
No final do dia, sem saber o que fazer, sem me achar no direito de tomar aquela decisão, eu parei do lado dele, expliquei a situação, perguntei se ele havia entendido o que eu estava falando, ele me olhou com aquela cara de “Meu Deus, como você é idiota” que ele sempre me olhava quando achava que eu tava fazendo pouco caso dele, eu tentei explicar que ele estava sem memória, sem entender o que estava acontecendo. Ele não acreditou. Mais uma vez, ganhei aquela olhada. Reforcei o quanto era importante aquela decisão e perguntei o que ele queria. Ele perguntou se a gente poderia ir junto se ele fosse transferido, eu expliquei que somente uma pessoa poderia ir, ele então me disse: “Eu não quero ficar sozinho no Natal, quero ficar aqui”. E foi quando eu embarquei e me enfiei 100% na missão de garantir que ele não fosse transferido e que o plano de saúde pagasse as despesas para ele ter a placa melhor.
Por esses dias, minha sogra e eu estávamos nos revezando: quando eu ficava no hospital, ela ficava com as crianças e vice-versa; quando eu não estava no hospital, tentava, em vão, colocar meu trabalho em dia para ter como pagar as contas do mês.
Meu namorado tinha sumido do radar.
Somente na quarta-feira, eu finalmente consegui conversar com o médico e entender de verdade aquela confusão toda e falar propriamente com o plano de saúde, fingindo que não tava me cagando de medo e — finalmente — garantir a não-transferência. Aquela pequena vitória me esgotou de tal forma que, quando eu desliguei o telefone, o ar começou a me faltar, e eu caminhei até a escadaria de emergência do hospital e me sentei lá, no escuro, respirando fundo e repetindo pra mim mesma que ia dar certo. Eu não dormia desde sábado, quando tinham me ligado do hospital, e aquela pequena conquista, de repente, me deixou muito cansada. Eu precisava dormir, e as meninas ficaram na casa da minha sogra com outra supervisão para que ela fosse para o hospital.
Quando voltei para casa naquele dia, meu namorado estava lá. Tinha vindo pra ajudar.
Baseada no meu relacionamento anterior, eu sabia que, quando um homem, sabendo o que ele sabia, viaja a quantidade de horas que ele viajou, esse homem faz qualquer coisa, menos ajudar.
Eu estava muito feliz, não queria que terminasse; mas eu já tinha embarcado no projeto, e não dormia havia dias, então, não lhe dei o benefício da dúvida e, assim que olhei pra ele, eu decidi que não me importava o que ele pudesse dizer, e que mesmo que estivesse magoado por eu estar com meu ex-marido, eu tinha que fazer aquilo. Antes de abraçá-lo, eu já estava lamentando ter que dizer adeus para aquela pequena felicidade.
Nem o deixei falar e já comecei a defender meu ponto de vista. Quando eu terminei de tagarelar, muito tranquilo, ele me disse: “Eu não vim cobrar nada, nem pedir nada. Ele é o pai das tuas filhas, eu não esperava menos de você”.
Palavras da salvação.
E eu finalmente desabei.
Sentada no colo dele, chorei de forma quase vergonhosa. Por cansaço, por alívio, por medo. Por tudo. Em algum momento eu dormi ali, sentada, em cima dele. E ali fiquei até que acordei com o pesadelo que me acompanharia por muitos meses. Só então nos deitamos, e ele cantou até que eu voltasse a dormir.
Quando voltei pro hospital, ele limpou a casa inteira. Inteira mesmo. Chão, banheiros, janelas. Até limpou as persianas.
ELE
LAVOU
MINHA
ROUPAAAA
Comprou um chuveiro para instalar no banheiro secundário, porque a porta do banheiro principal era muito estreita para a cadeira de rodas passar; alimentou os animais; ele até começou a construir uma rampa para a cadeira de rodas.
Quando eu cheguei em casa e encontrei tudo arrumado, com a comida pronta e o café feito, eu só queria abraçá-lo, mas ele não havia sido apresentado pras minhas filhas como namorado ainda, e não seria naquele momento que isso aconteceria. Não sei como é pra vocês, mas, pra mim, é Igreja e Estado. Minhas filhas são sagradas. Naquela noite, entretanto, eu precisei fazer muita força pra manter minha convicção.
Por dias, parecíamos dois adolescentes: quando as crianças dormiam, ele entrava, ficava comigo e ia antes de elas acordarem. No resto do tempo, ficava num hotel não muito longe da casa. Houve uma noite em que, exaustas, as meninas se recusaram a viajar até a casa da avó (é numa cidade vizinha) e pediram para ficarem sozinhas. Era minha noite de hospital e, apesar de minhas filhas já serem adolescentes, é claro que eu fiquei com medo. Então ele dormiu num carro alugado, em frente do portão, para garantir que tudo estaria bem.
Vocês têm ideia do quanto é maravilhoso poder contar com alguém assim?
Depois que ele chegou, os dias começaram a passar muito rapidamente e, quando eu tive certeza de que o plano de saúde pagaria a cirurgia, finalmente me senti livre para voltar pra casa, e minha sogra assumiu tudo sozinha. Passou ainda várias semanas no hospital com meu ex-marido, mas num quarto particular, podia dormir na horizontal.
Assim que voltei pra minha casa, meu namorado também voltou pra casa dele. O cachorro que mora comigo ficou tão deprimido quando ele foi, que só voltou a comer depois de ouvir a voz dele por telefone.
Mesmo longe, depois de aprender que eu acordava na mesma hora, todas as noites, por culpa do mesmo pesadelo, ele me ligava e cantava no telefone pra eu voltar a dormir. Depois de um tempo, meu subconsciente fez a ligação e, quando eu acordava pelo pesadelo, a voz dele surgia na minha mente e eu voltava a dormir.
Até hoje, toda vez que temos uma discussão, por qualquer motivo que seja, eu me lembro daqueles dias e penso na sorte que eu tenho por ter sido brindada com esse tipo de amor.
Ele ganha todas as brigas.
E temos seguido assim: quando ele está mal, eu estou lá por ele; quando eu estou mal, ele está aqui por mim. De verdade. Ajuda real. Pelos breves períodos em que estamos mal, todo o resto é nada, e existimos nós, cuidando um do outro.
É esse tipo de amor que desejo a cada um de vocês, porque é esse tipo de amor que é real pra mim.
É esse tipo de amor que eu desejo que cada um de vocês seja capaz de dar.
Esse tipo de amor deve ser correspondido em igual medida de doação.
E este é meu desejo de Natal: que cada um de vocês tenha um *** para chamar de amor, de amigo, de parceiro, do que seja, desde que vocês tenham um.
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Desculpem o texto enorme, mas é minha mais bela história de amor.
Se você leu até aqui, parabéns! Você acabou de ler 2.000 palavras. São sete páginas de um livro. Lembre-se disso quando pensar que não gosta de ler.

December 16, 2020
O que é o amor?

Há muitos meses, li essa frase no Instagram do queridíssimo Dercinei Figueiredo, a quem eu recomendo que sigam somente se não tiverem medo de pensar e questionar: o cara é um perigo.
Em geral, aprecio muito todas as colocações do Dercinei, e como frequentemente estou alinhada com seus pensamentos, é claro que o considero um homem inteligentíssimo, mas essa frase ficou na minha cabeça por semanas, me comendo, porque eu estava sem tempo para brincar de escrever e — havia muito — eu queria falar sobre isso, sobre o amor.
Não apenas o amor romântico, esse das mãos dadas, dos beijos ardentes, das respirações entrecortadas; queria falar sobre o amor em todas as suas formas. E esse tal de amor é complicado, gente!
Eu acho muito mais difícil ser amado ou amada do que amar. O amar vem fácil, ele pode ser decidido, ele pode ser motivado por hormônios, ele pode ser imposto, compulsório, obrigatório, anímico... enfim... amar é fácil. Ser amado, entretanto, implica numa reciprocidade. Não porque a gente deva alguma coisa para a outra pessoa, mas porque a outra pessoa espera de você essa reciprocidade. E se essa outra pessoa se relaciona contigo, a reciprocidade é meio que uma questão de honra, afinal, por que você se relaciona com alguém por quem não tem amor?
E é aí que mora o diabo: no detalhe.
O que você considera amor é a mesma coisa que a outra pessoa considera amor?
Aquela coisa que você chama de amor; a outra pessoa também chama?
O amor que a gente dá nem sempre é o amor que a gente recebe, então não chamamos de amor. Do outro lado, a pessoa que recebe o amor que entregamos, se não ama igual, se não reconhece como amor aquilo que damos, também não chamará de amor o que está recebendo.
“Ah, mas, sim, eu te amo”, dirá o iludido ou iludida ao perceber que seu amor não é valorizado. Pois... como bem escreveu Alexandre Félix, “todos dizem eu te amo”. O problema é que aquele que ama se põe num pedestal, como se aquilo que ele ou ela chama de amor o redimisse de qualquer malfeito simplesmente por amar. E é assim que as violações e crimes ficam dentro das famílias, pelo amor que se deve ao pai, à mãe, àquele que “cuida” de você, que se sacrifica por amor a você; é assim que o abuso e os maus-tratos se perpetuam, porque aprendemos desde cedo que ser amado é um privilégio, e aqui eu abro um parênteses para falar especificamente das mulheres, porque, uma vez que uma mulher “ganha o amor” de um homem, é como se tivesse sido eleita para o grande prêmio; é assim que as fotos de pobres rapazes com bichos de pelúcia e ramalhetes de rosa atirados pelas calçadas da vida se multiplicam em redes sociais dizendo que não são valorizados.
Mas, valorizados pelo quê? Por dizerem que amam? Ora, por favor! Dizer que ama, até bicho de pelúcia diz se você apertar a barriga com vontade.
Aquele a quem eu chamo de amor escreveu uma vez que “o amor é sinceridade, partilha, sensibilidade e respeito, todo o contrário não é amor”, mas anteriormente ele havia escrito que o amor é uma coisa simples, e eu não vejo nada de simples em ser sincero, compartilhar, estar atento às necessidades do outro e respeitar, tudo ao mesmo tempo. É tarefa hercúlea (clichê, mas não consegui pensar em analogia melhor), mas é uma boa definição de amor.
É por isso que estou aqui, porque quero convidar vocês a fazerem uma viagem sobre as várias definições de amor em textos curtos (espero que mais curtos do que este), e vou deixar vocês decidirem se leram uma história de amor ou não. Vou tentar postar o primeiro amanhã.
E vocês? Contem-me aí nos comentários: pra vocês, o que é amor?
Não precisa ser uma definição, pode ser uma historinha, pode ser uma imagem, pode ser uma única palavra que resuma o amor pra vocês.
Para encerrar, vou deixá-los uma frase do super Tiziano Ferro, a melhor que já li a respeito do assunto: “Quem quiser ser feliz por mim e comigo é bem-vindo; quem não quiser, pode, alegremente, ir se lascar”.
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Tava com saudade de escrever aqui...

Alma de tesoro

