Lira Neto's Blog

March 4, 2018

"Masturbação intelectual"?

Só descobri que viria a ser jornalista relativamente tarde. Até por volta dos 30 anos, não tinha a mais remota ideia de que um dia abraçaria tal profissão. Antes, abandonara duas faculdades e exercera uma mixórdia de atividades, atuando como topógrafo, técnico de raio-x, balconista de loja e professor de ensino fundamental, entre outros tantos bicos e ofícios.Quando me reinventei como profissional e pisei pela primeira vez em uma Redação de jornal, em 1990, já era trintão, embora ainda aluno do curso de comunicação social da Universidade Federal do Ceará. Enfim graduado, na qualidade de tiozão entre os formandos, trabalhei cerca de oito anos como repórter e editor. Até que, perto de completar 40 anos, por volta de 2000, dei nova guinada e decidi abandonar o jornalismo diário.No cotidiano das Redações, havia algo a me exasperar. A ligeireza do processo de produção da notícia e a exiguidade do texto, características inerentes ao fazer jornalístico, logo me pareceram incômodas. Como antídoto a essa dupla pressão exercida pelas restrições de tempo e de espaço, resolvi me reinventar mais uma vez, dessa feita escrevendo livros.Foi a forma que encontrei para poder me dedicar, por anos a fio, ao desenvolvimento e à investigação rigorosa de uma história, em vez de me submeter à lógica da apuração instantânea e da busca apreensiva pelo "furo". Além disso, no lugar das poucas linhas e do número contado de caracteres na hora de redigir, passei a dispor de centenas de páginas para aprofundar o resultado das longas explorações em bibliotecas e arquivos.Assim, nos últimos 15 anos, tenho publicado uma série de livros históricos e biográficos, cujo retorno de público e de crítica me fizeram acreditar que tomei decisão razoável. A despeito disso, continuei a me identificar, essencialmente, como jornalista ou, melhor, como repórter.Durante esse período, mantive deliberada distância da universidade, amparado na falsa convicção de que o mundo acadêmico seria, por definição, como gostamos de dizer com soberba os jornalistas, o território da mera "masturbação intelectual".Partilhava de preconceito típico aos colegas, sentimento quase sempre decorrente da combinação entre arrogância e frivolidade. Hoje, porém, quando testemunhamos a rendição progressiva do jornalismo ao entretenimento, o esvaziamento inegável das Redações, o culto votivo às celebridades e a renúncia categórica ao pensamento complexo, essa birra, essa resistência à universidade, mostra-se cada vez mais danosa à própria imprensa.Na época em que prevalecem as "fake news" e os vitupérios das milícias virtuais, a qualificação do debate é condição imprescindível à sobrevivência do jornalismo. Foi essa certeza que me fez, recentemente, buscar uma reaproximação efetiva com a universidade. Nesta semana, defenderei dissertação de mestrado, em comunicação e semiótica.Já antevejo algum colega mais incorrigível lendo este texto e, entre risinhos e tapando um dos olhos com a mão, repetir a parvoíce: "Semiótica não passa de uma 'semi-ótica', ou seja, uma ótica pela metade".Com mais de 50 anos de idade, preparo-me, em simultâneo, para um futuro doutorado. Nunca tive receio da reinvenção pessoal e profissional. O convívio acadêmico tem me feito experimentar o reencontro da busca pelo conhecimento com a alegria, a fusão da inquietação intelectual com o prazer.Exatamente no momento em que a universidade parece ser um dos alvos prioritários da onda obscurantista que procura nos engolfar, passei a me sentir ainda mais socialmente útil. E em casa.Este é meu último texto como colunista da Folha. Por decisão do jornal, a partir de hoje, deixo de ocupar este espaço domingueiro.Durante dez meses, somando 22 colaborações, procurei corresponder à confiança dos editores que me cederam lugar tão nobre, garantindo-me a prerrogativa de escrever com absoluta liberdade. Aqui, em um caderno de variedades, busquei assumir perspectivas dissonantes quanto aos temas sobre os quais me pautei, lançando dúvidas, questionamentos e inquietações para além dos limites estreitos da indústria cultural, da vozearia babélica das redes sociais e das contingências epidérmicas do noticiário.Embora por período tão abreviado de tempo, agradeço à Folha a possibilidade de fazê-lo. Até uma próxima oportunidade.
Texto publicado na Folha de S. Paulo em 04/03/2018.
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Published on March 04, 2018 04:20

February 18, 2018

Vacina e esquecimento

A comparação era inevitável. O vulto daquele homem alto, magro e de barbas brancas, empertigado sobre o cavalo, remetia à imagem de Dom Quixote de la Mancha. Não à toa, muitos também o tinham na conta de um lunático, um amalucado por tanta "leitura inútil", a investir contra fantasmagorias e moinhos de vento.Em vez das paisagens espanholas, contudo, nosso cavaleiro andante e de triste figura percorria as dunas e vielas dos bairros pobres da capital cearense, no início do século 20. No alforje preso à sela, o sanitarista Rodolfo Teófilo levava doses de vacina contra a varíola, a arrepiante epidemia que voltara a atacar Fortaleza, após ter dizimado, em passado então recente, um quinto dos habitantes de toda a cidade.Hoje, quando outra doença que se julgava extinta, a febre amarela, volta a nos assombrar e a nos indignar diante do descalabro governamental em relação à saúde pública, é quase forçoso evocar a figura heroicizada de Oswaldo Cruz e sua campanha pela vacinação em massa.Menos óbvio, porém, é recuperar a importância humanitária e o significado político da cruzada do quase desconhecido Teófilo. Contrapondo as trajetórias de um e outro, contemporâneos entre si, podemos refletir sobre uma série de incômodas questões relativas à história, à memória e ao esquecimento.

[...]Texto publicado na Folha de S. Paulo em 18/02/2018.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on February 18, 2018 11:11

A comparação era inevitável. O vulto daquele homem alto, ...

A comparação era inevitável. O vulto daquele homem alto, magro e de barbas brancas, empertigado sobre o cavalo, remetia à imagem de Dom Quixote de la Mancha. Não à toa, muitos também o tinham na conta de um lunático, um amalucado por tanta "leitura inútil", a investir contra fantasmagorias e moinhos de vento.Em vez das paisagens espanholas, contudo, nosso cavaleiro andante e de triste figura percorria as dunas e vielas dos bairros pobres da capital cearense, no início do século 20. No alforje preso à sela, o sanitarista Rodolfo Teófilo levava doses de vacina contra a varíola, a arrepiante epidemia que voltara a atacar Fortaleza, após ter dizimado, em passado então recente, um quinto dos habitantes de toda a cidade.Hoje, quando outra doença que se julgava extinta, a febre amarela, volta a nos assombrar e a nos indignar diante do descalabro governamental em relação à saúde pública, é quase forçoso evocar a figura heroicizada de Oswaldo Cruz e sua campanha pela vacinação em massa.Menos óbvio, porém, é recuperar a importância humanitária e o significado político da cruzada do quase desconhecido Teófilo. Contrapondo as trajetórias de um e outro, contemporâneos entre si, podemos refletir sobre uma série de incômodas questões relativas à história, à memória e ao esquecimento.

[...]Texto publicado na Folha de S. Paulo em 18/02/2018.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on February 18, 2018 11:11

February 4, 2018

A insurgência dos vagalumes

Imagine um livro denso sobre a obra e o pensamento de Franz Kafka que, para ser lido, exija o trabalho prévio de desatarraxar com chave de fenda dois pequenos parafusos enferrujados trespassando todas as páginas, desde a capa até a contracapa.Ou um volume que, a propósito de falar de insurreições e revoltas de rua, tenha a extremidade das folhas chamuscadas, exemplar a exemplar, e por isso recenda levemente a papel queimado.Ou, ainda, uma brochura sobre o inferno do sistema prisional, com as costuras da lombada à vista, acondicionada dentro de um marmitex de papel alumínio, simulando uma quentinha.Tais ousadias gráficas, que dessacralizam o formato livro e ao mesmo tempo convertem tais publicações em objetos de arte, constituem apenas um dos muitos aspectos instigantes dos títulos lançados por uma editora alternativa paulistana, de catálogo tão enxuto quanto insubmisso às convenções do mercado.Para além do artesanato e dos experimentalismos materiais que nos atiçam os sentidos, o portfólio da n-1 edições impressiona pelo espírito transgressivo de sua proposta editorial. Não são livros destinados ao mero deleite, à leitura de puro entretenimento. Foram escritos, de modo deliberado, para ferroar consciências.

[...]Texto publicado na Folha de S. Paulo em 04/02/2018.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on February 04, 2018 04:48

January 26, 2018

Uma revolução em curso



O fato me chamou a atenção desde quando estive pela primeira vez no Estado norte-americano de Vermont, no verão de 2015, como escritor-residente na Portuguese School, do Middlebury College.
Um dos dois senadores eleitos pelos cidadãos de Vermont, Bernie Sanders, senhor grisalho de 76 anos, campeão de votos com 71% dos sufrágios, define-se como socialista democrático e defende plataforma política bastante ousada para os padrões daquele país.
Um pacote que inclui propostas de liberação da maconha, legalização do aborto, gratuidade do ensino superior e o fim da discriminação contra minorias sexuais.
[...] 
Texto publicado na Folha de S. Paulo em 21/01/2017.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on January 26, 2018 07:09

Guerra de símbolos



Sim, é verdade, a direita saiu do armário. Perdeu o medo e a vergonha de exibir-se à luz do dia. Por conveniência e estratégia de combate político, os ditos "conservadores nos costumes e liberais em economia" aliam-se às bancadas do boi, da bala e da Bíblia.
No campo cultural, escudados no discurso "politicamente incorreto", por um lado esbravejam vitupérios, expelem platitudes, vomitam sarcasmos. Por outro, travestidos de pudicos guardiões da moral e dos bons costumes, apontam o dedo censório, invocam preconceitos, cultivam ódios primários.
De um modo e de outro, semeiam ignorâncias e manobram frustrações coletivas, transformando-as em combustível para a animosidade e o rancor em massa. Como são ruidosos, municiados com suas bombas semióticas, aparentam estar levando a melhor na batalha pela opinião pública.
Entretanto isso não significa que tenham passado a constituir, hoje em dia, uma supremacia avassaladora e sem volta. A sensação de que fomos tragados por uma onda retrógrada, um tsunami irremediável, precisa ser analisada com forte senso de urgência, mas sem derrotismos prévios.
[...]
Texto publicado na Folha de S. Paulo em 07/01/2018.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on January 26, 2018 07:06

Papai Noel: negro e gay



Santa Claus, ou seja, Papai Noel, é negro e gay. Aquele outro senhor de bochechas rosadas e olhos azuis, estampado em todas as propagandas e enfeites natalinos, é David Claus, seu respectivo marido.
Isso mesmo: Santa Claus e David Claus, dois senhores barbudos, gorduchinhos e de meia idade, são casados. Vivem juntos no Polo Norte, no topo do mundo, e mantêm um relacionamento homoafetivo e inter-racial amável e bem-humorado.
Dividem as tarefas domésticas, assistem à TV de mãos dadas, dançam ouvindo música no rádio. Passam as férias na praia, brincam com o cachorro, jogam peteca, plantam girassóis.
De vez em quando, um dorme deitado no colo do outro, no sofá. Papai Noel ressona sorridente, enquanto David Claus lê um livro, os pés agasalhados por pantufas cor-de-rosa com cara de coelhinho.

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Texto publicado na Folha de S. Paulo em 24/12/2017.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on January 26, 2018 07:04

Pós-verdade e ignorância histórica



"Indignai-vos", conclamou a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, na mesa de abertura do seminário "O Mundo Depois do Holocausto: Direitos Humanos e Direitos Nacionais", na quarta (22), na PUC-SP.
"Cada um de nós pode e deve ser um ativista", prosseguiu, aludindo à necessidade de demarcar posição no contexto das guerras narrativas contemporâneas, no qual os fatos objetivos são distorcidos por meio da manipulação dos medos, das ignorâncias e dos preconceitos coletivos.
"A informação é nossa arma", completou a professora, exortando a plateia ao bom combate contra um fenômeno tão antigo quanto a própria humanidade: a mentira factual, hoje amplificada pelas novas mídias e rebatizada de "pós-verdade" ou "fake news".
Uma rápida busca na internet, por exemplo, revela quantidade impressionante de sites, fóruns de discussão, postagens e comentários em redes sociais que procuram negar a existência do Holocausto. "No terreno pantanoso em que a verdade afunda, a mentira aflora", sentenciou Maria Luiza.
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Texto publicado na Folha de S. Paulo em 26/11/2017.Para ler na íntegra, clique aqui
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Published on January 26, 2018 07:03

Elefantes voadores




"Se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar", observava Gabriel García Márquez. "Mas se você disser que há 425 elefantes alados, as pessoas provavelmente acreditarão."
Expoente do chamado realismo mágico, o escritor aludia ao recurso literário de construir narrativas com alto nível de detalhamento, a ponto de fazer os leitores "acreditarem" nelas. Instaurar um pacto no qual a irrealidade, apesar de manifesta, é aceita em nome da fruição e, quase sempre, da alegoria.
Para além do campo literário, amparar supostas verdades com base em números e estatísticas, manobrando dados e fontes de informação, é truque de ilusionismo político. Em vez de artifício estético, trata-se de manipulação da fé alheia.
O relatório apresentado há poucos dias pelo Banco Mundial ao governo brasileiro, no capítulo destinado a traçar o diagnóstico de nossas universidades, tenta fazer a opinião pública acreditar que há paquidermes planando no céu. É o caso de lembrarmos que elefantes, obviamente, não voam.

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Texto publicado na Folha de S. Paulo em 10/12/2017.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on January 26, 2018 07:00

Um livreiro na contramão do mercado



Jamais caia na bobagem de perguntar ao livreiro Lúcio Zaccara se ele tem, nas prateleiras da loja, qualquer um dos badalados romances de Elena Ferrante à venda. "Não trabalho com esse tipo de literatura", será a resposta. Menos aconselhável ainda é indagá-lo sobre obras do tipo "50 Tons de Cinza", manuais de autoajuda ou autobiografias de youtubers. "Só vendo aquilo que posso recomendar, sem constrangimentos, ao leitor."
Esse senhor alto, magro e vivaz, de insuspeitados 60 anos, também é avesso a promoções e jogadas de marketing. Por isso, nunca fez qualquer tipo de propaganda do seu negócio. Mantém uma discrição quase monástica. "Não quero atrair gente que sairá decepcionada por não encontrar o best-seller da moda", justifica. "Quem está acostumado a entrar aqui já sabe que topará apenas com livros de qualidade."
Divulgadores não conseguem convencê-lo a afixar banners de vinil relativos a eventos literários. Ele aceita apenas cartazes em papel, que considera mais elegantes e amigáveis. De preferência, mandados confeccionar por ele próprio e assinados por artistas gráficos de renome.
Não permite, igualmente, pilhas de um mesmo lançamento na vitrine ou no interior da loja. Ali não é supermercado para ter gôndola, parece sugerir, criticando a prática das grandes redes alugarem espaços para editoras.

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Texto publicado na Folha de S. Paulo em 12/11/2017.Para ler na íntegra, clique aqui.
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Published on January 26, 2018 06:58

Lira Neto's Blog

Lira Neto
Lira Neto isn't a Goodreads Author (yet), but they do have a blog, so here are some recent posts imported from their feed.
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