A Máquina de Joseph Walser Quotes

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A Máquina de Joseph Walser A Máquina de Joseph Walser by Gonçalo M. Tavares
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“Mas a explicação solitária já requer uma outra altitude - utilizemos esta palavra - da inteligência. Qualquer instinto criativo começa com esta necessidade antiga que a memória colectiva faz por esquecer: somos criativos porque queremos encontrar uma explicação solitária, uma explicação individual, uma explicação que não tenha par, que não tenha duplo, que não seja possível acompanhar, uma explicação egoísta, dirão alguns, sim, egoísta, claro. Mais que isso: rancorosa. Uma explicação que odeia as outras, que as combate, mas combate não para vencer somente as outras explicações, mas para vencer, derrotar, eliminar os próprios homens portadores de outras explicações solitárias. A explicação solitária, a ciência individual por excelência, no limite, quer eliminar todas as outras existências, porque as odeia; e odeia-as simplesmente porque outra inteligência e outra possibilidade de solidão são a prova de que sozinhos não ocupamos o mundo.”
Gonçalo M. Tavares, A Máquina de Joseph Walser
“É certo que a infelicidade não depende apenas da dor, mas a alegria, essa, só devia depender da ausência de dor física. Vinte séculos inteiros e completos não inventaram uma explicação do sofrimento; sofre-se em comparação com o que é não sofrer, e nenhum homem saudável quer ser educado previamente para aquilo que é mau. Já não se treina a resistência à dor: evita-se, sim, a mistura com essa 'coisa' repelente.”
Gonçalo M. Tavares, A Máquina de Joseph Walser
“A cidade bondosa limpa a parte suja que o inferno deixou. Certos corações foram atravessados por um metal claro, amaldiçoados com aquilo que na guerra não é inútil: a matéria densa e incompatível com a vida. O morto confunde-se com uma parte do Outono, três homens roucos ou de voz baixa levantam a massa morta com os dedos fundamentais da higiene; entre as folhas leves castanhas o corpo também castanho, mas pesado. A cidade é eficaz. No céu há um outro mundo impávido.
No entanto fragmentos de alegria mantêm-se e crescem. Uma mulher vende flores, o cão fareja com o focinho erguido como se as aves transportassem cheiros fortes, ou as nuvens. Mas o céu não é farejável a não ser depois da chuva espessa, o céu cheira após três horas de água, e não há nos diferentes dias cheiro mais humano. A cidade respira. Fala-se em vindimas longínquas, os frutos prosseguem vindos de todas as direções: crescendo das árvores, invadindo as propriedades dos homens. A natureza ignora pressupostos mecânicos, euforias de hélices de helicópteros ávidas por demonstrar habilidades mortais.
E os homens, como um todos, são inacessíveis. É uma espécie que se prolonga por todos os buracos do mundo (...) Tudo mente. É domingo, e a cidade tem mercearias abertas ao domingo. Ainda há pêras espantosas, e a presença física de um grupo de maçãs num caixote surpreende quem já viu a violência de militares exercida sobre quem treme e é fraco.[...]Grande parte da cidade foi conquistada por esse exército neutro que não é exército: a indiferença. Se queres sobreviver colocas a tua coragem num saco de plástico e aguardas.
Os restaurantes funcionam. Joseph Walser sai por vezes aos domingos com a mulher e almoça. Eis tudo.[...]
Um homem que comeu uma tangerina e bebe vinho elabora uma narrativa complexa para justificar certos acontecimentos mais recentes. Vários cidadãos atentos escutam o percurso bem protegido da narrativa e convencem-se de que a vida prossegue inalterável, enquanto estar vivo, hoje, tiver uma única semelhança com o facto de se ter estado vivo, ontem. As qualidades essenciais da vida permanecem. E que qualidades são essas? Eis algumas: existe a água e o ar livre, podes mexer os dedos dos pés mesmo estando imóvel. A vida tem certas qualidades esquizofrénicas, vê esta.
Repara: a cidade mantém-se curiosa, muitos cidadãos querem aumentar os seus conhecimentos laterais enquanto outros são fuzilados em praças evidentes e nada escondidas. Um vizinho de Joseph Walser inscreveu-se ontem numa escola de línguas. Homens adultos aprendem docemente sentados em cadeiras correctas as primeiras sílabas de uma língua desconhecida. E até pode não ser a língua de quem vence; por vezes aprendizagens escolares são obscenamente inúteis: uma mulher que vive numa rua da cidade começou a aprender uma língua distante, de um país com poucos habitantes e com reduzida força. Se questionarem essa mulher, ela dirá : curiosidade.
Mulheres e homens mantêm a curiosidade intacta, o que é quase magnífico, uma preciosidade em tempo de guerra, como uma jarra que não se parte a curiosidade não se quebrou; não a direccionada para acontecimentos fundamentais e urgentes, mas a direccionada para os cantos obscuros; mais do que uma mulher se inscreveu ontem num curso sobre o significado do movimento dos astros. Aviões guerreiros tornam-se assim, para certas vidas, obstáculos no campo de visão, partículas de poeira ruidosa que não deixam ver o que sucede no dia-a-dia dos astros. Quando se tem vergonha daquilo que não se faz as notícias sobre factos próximos são escutadas por ouvidos afastados; toda a capacidade auditiva é ocupada por técnicas cínicas, fingindo interesse. Não há fórmulas para a indiferença, pois há diversas maneiras de sobreviver e a neutralidade é uma delas. (...) Enquanto a sombra repetir no chão o teu corpo inteiro eis que te encontras vivo e completo.”
Gonçalo M. Tavares, A Máquina de Joseph Walser