Estorvo Quotes
Estorvo
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Chico Buarque1,605 ratings, 3.28 average rating, 83 reviews
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Estorvo Quotes
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“Entro na cozinha tomando cuidado para não acordar ninguém. A única luz da casa vem da despensa. Ali passando, vejo o velho e a menina da cabeleira sentados frente a frente, ela no tamborete e ele num monte de estopas. O velho está com o pau duro na mão. A neta sorri para o pau duro na mão do avô. É um pau íntegro, rosado, luzidio, que me parece incompatível com aquela mão toda venosa. Não parece o pau do velho, é mais o pau do blusão de náilon cheio de logotipos que o velho veste. A menina vira o rosto, voltando para mim o mesmo sorriso que valia para o pau. Depois fica séria e se levanta. Passa por mim e vai ter com o moleque seu irmão, que lhe acena com uma fita cassete. Ela coloca a fita no walkman, o fone nos ouvidos, e fica andando em círculos na cozinha, a camiseta até os joelhos estampada com a cara de um deputado.”
― Estorvo
― Estorvo
“O álcool que levava o meu amigo para o lado da poesia também podia atacar seus nervos, deixá-lo agressivo. Era noite, e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que eu era um bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: “você é um bosta”. E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido como um camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que para isso tivesse de enfrentar minha família, que era outra bosta. Também eram bosta toda lei vigente e todos os governos; e o meu amigo começou a se inflamar na varanda, gritando frases, atirando pratos e cadeiras no pátio, num escarcéu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava “venham os camponeses”, e os camponeses que vinham eram o jardineiro, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo. Várias vezes o meu amigo gritou “a terra é dos camponeses!”, e aquele pessoal achou diferente. Mais tarde ele sossegou. Jogamos nossas coisas no porta-malas do carro dele, um rabo-de-peixe caindo aos pedaços, e fomos embora do sítio deixando a cancela aberta.”
― Estorvo
― Estorvo
“Amigo mesmo só me lembro de um. Era alguns anos mais velho e dizia que eu tinha um futuro. Vivia lendo os jornais, as revistas especializadas, depois me contava que era tudo mentira. Recebia correspondência do estrangeiro, ouvia os clássicos, ia publicar em breve um tratado polêmico sobre não sei mais que matéria. Inventou e queria me ensinar uma língua chamada desesperanto, tendo organizado uma gramática e farto vocabulário. Dedicou-se numa fase à escultura comestível; ergueu no apartamento uma cidade inteira de marzipã, mas nunca chegou a expor. Também era dado a premonições; fazia certas previsões que ele mesmo se assustava e emudecia uma semana. E parece que tinha em seu passado uma história conhecida e admirada por gente da sua geração. Dessas histórias ele nunca me falou, e por isso eu o admirava mais. No bar, quando bebia além da conta, ou quando já chegava cheio de estimulantes no pensamento, dizia poemas. Havia noites, geralmente noites de sábado quando lotava o bar, que ele deixava cair na testa a franja negra e cismava de declamar em francês. Eu ficava sem jeito porque ele declamava alto demais e olhando para mim, e as outras pessoas na mesa não entendiam os versos. Eu, ele achava que eu pegava o sentido. O resultado é que sobrávamos só nós dois na mesa, porque as poucas pessoas que suportam poesia, não suportam francês.”
― Estorvo
― Estorvo
“Quatro anos e meio vivi com essa mulher. Mas vivi de me trancar com ela, de café na cama, de telefone fora do gancho, de não dar as caras na rua. Um sorvete na esquina, no máximo uma sessão da tarde, umas compras para o jantar, e casa. Entrei nuns empregos que ela me arrumou, na segunda semana eu caía doente, e casa. No último ano foi ela quem começou a trabalhar fora. Argumentei que ela tinha diploma universitário, que podia aguardar melhores oportunidades, e disse “não vai se adaptar”. Mas se adaptou, levava jeito, tomou gosto, virou gerente de vendas e nunca pegou nem um resfriado. Eu esperava por ela em casa. Habituei-me sem ela em casa, andava nu, cantava. Mudava a arrumação da sala, planejava empapelar as paredes. Já gostava mais da casa sem minha mulher. Sozinho em casa eu tinha mais espaço para pensar na minha mulher, e era nela fora de casa que eu mais pensava. Às vezes ela chegava tarde da noite e ia ao banheiro, e bulia na cozinha, e ligava a televisão sem necessidade, e isso me dava um tipo de ciúme da casa. Preferia não ver, e amiúde fingia estar dormindo. De manhã, deixava-a acordar sozinha, abrir e fechar gavetas, ligar o chuveiro, bater vitamina e sair para o trabalho. Só então começava a minha jornada, que era andar de um lado para o outro da casa, lembrando-me da minha mulher e consertando as coisas. Um dia ela propôs a separação. Eu entendi e disse que ia continuar pensando nela do mesmo jeito, a vida inteira. Já deixar a casa foi mais difícil. Eu não saberia como me lembrar da casa. Era dentro da casa que eu gostava da casa, sem pensar.”
― Estorvo
― Estorvo
