A Mudança Quotes
A Mudança
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Marques Rebelo6 ratings, 4.33 average rating, 1 review
A Mudança Quotes
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“24 de dezembro [1941]
A árvore, embora atarracada, não ocupa muito espaço – um canto de sala, o canto menos acessível, do qual foi removido o musgoso vaso com espadas-de-são-jorge, que alem de decorativas, segundo Felicidade, nos protegem do mau-olhado. O chacareiro queria um dinheirão por um pinheirinho de seis palmos, Luísa descalçou a bota na loja de novidades. Trouxe-a embrulhada em papel pardo como volumosa sombrinha, e armá-la foi uma operação fácil e divertida.
— Veja! – e Luísa exibiu-a, eriçada como um imenso paliteiro.
Meus olhos se anuviaram – as invenções deviam ter limites. A imitação infunde desprezo, mudo desprezo, a quem amou as árvores do Trapicheiro, ardentemente esperou por elas e substituiu o amor e a espera pela saudade. É duma substância assim como o celulóide, lustrosa como escama de cobra, dum verde horripilante, com frutinhos vermelhos, na ponta dos galhos, que lembravam os olhinhos dos ratos-brancos, que Pinga-Fogo criava e trazia ao ombro, sob o nojo e a reprovação de Mariquinhas, tão artificial quanto o mito que propaga.
Não pus na sua ornamentação, bastante carregada, com um odioso cometa no cimo, os meus dedos descrentes, tão hábeis para respingar pela ramaria antiga as velinhas multicores, as lanterninhas, o algodão como se fosse neve. Deixei a tarefa para as mãos de Luísa e das crianças, neófitas aranhas, que alegremente se emaranhavam na teia de fios prateados que espalhavam pela galharia dura e simétrica.
Quando ficou pronta, e ao pé dela as crianças plantavam os ávidos sapatinhos, Luísa perguntou radiante:
— Não ficou linda?
(Não destruamos as ilusões dos amadores. Pelo menos algumas. Que culpa têm de que o tempo prático e mercantil ofereça um material tão reles e sem seiva?):
— Sim, está muito bonita.
— E serve para muito tempo!
(Ó desalentadora durabilidade!):
— É ótimo.
E a sensação me invade, não sei se de tédio ou de derrota.”
― A Mudança
A árvore, embora atarracada, não ocupa muito espaço – um canto de sala, o canto menos acessível, do qual foi removido o musgoso vaso com espadas-de-são-jorge, que alem de decorativas, segundo Felicidade, nos protegem do mau-olhado. O chacareiro queria um dinheirão por um pinheirinho de seis palmos, Luísa descalçou a bota na loja de novidades. Trouxe-a embrulhada em papel pardo como volumosa sombrinha, e armá-la foi uma operação fácil e divertida.
— Veja! – e Luísa exibiu-a, eriçada como um imenso paliteiro.
Meus olhos se anuviaram – as invenções deviam ter limites. A imitação infunde desprezo, mudo desprezo, a quem amou as árvores do Trapicheiro, ardentemente esperou por elas e substituiu o amor e a espera pela saudade. É duma substância assim como o celulóide, lustrosa como escama de cobra, dum verde horripilante, com frutinhos vermelhos, na ponta dos galhos, que lembravam os olhinhos dos ratos-brancos, que Pinga-Fogo criava e trazia ao ombro, sob o nojo e a reprovação de Mariquinhas, tão artificial quanto o mito que propaga.
Não pus na sua ornamentação, bastante carregada, com um odioso cometa no cimo, os meus dedos descrentes, tão hábeis para respingar pela ramaria antiga as velinhas multicores, as lanterninhas, o algodão como se fosse neve. Deixei a tarefa para as mãos de Luísa e das crianças, neófitas aranhas, que alegremente se emaranhavam na teia de fios prateados que espalhavam pela galharia dura e simétrica.
Quando ficou pronta, e ao pé dela as crianças plantavam os ávidos sapatinhos, Luísa perguntou radiante:
— Não ficou linda?
(Não destruamos as ilusões dos amadores. Pelo menos algumas. Que culpa têm de que o tempo prático e mercantil ofereça um material tão reles e sem seiva?):
— Sim, está muito bonita.
— E serve para muito tempo!
(Ó desalentadora durabilidade!):
— É ótimo.
E a sensação me invade, não sei se de tédio ou de derrota.”
― A Mudança
“24 de fevereiro [1941]
Se o Carnaval vem desaparecendo das ruas,com mais curiosos do que mascarados, e às vezes sem nenhum dos dois, vai crescendo nos salões, onde impera uma certa licenciosidade que tende a aumentar uma certa brutalidade, ou talvez melhor dito, um certo estabanamento, que antes não se registrava nos ambientes fechados – é que o zé-povinho está vindo para eles.
Adonis insistiu, saímos para uma voltinha na Cinelândia, peruamos a entrada do Municipal, cujo baile de gala vem dando uma nota de elegância, e Gérson Macário entrava faustosamente fantasiado de odalisca, fomos até o Largo do Carioca, retornamos. Luísa ficara com as crianças na irrevogável ausência de Felicidade.
— Já voltaram?!
— Deu para cansar.
— Muito animado?
— Bastante chué.
— Aqui não passou nada. É como se não fosse carnaval”
― A Mudança
Se o Carnaval vem desaparecendo das ruas,com mais curiosos do que mascarados, e às vezes sem nenhum dos dois, vai crescendo nos salões, onde impera uma certa licenciosidade que tende a aumentar uma certa brutalidade, ou talvez melhor dito, um certo estabanamento, que antes não se registrava nos ambientes fechados – é que o zé-povinho está vindo para eles.
Adonis insistiu, saímos para uma voltinha na Cinelândia, peruamos a entrada do Municipal, cujo baile de gala vem dando uma nota de elegância, e Gérson Macário entrava faustosamente fantasiado de odalisca, fomos até o Largo do Carioca, retornamos. Luísa ficara com as crianças na irrevogável ausência de Felicidade.
— Já voltaram?!
— Deu para cansar.
— Muito animado?
— Bastante chué.
— Aqui não passou nada. É como se não fosse carnaval”
― A Mudança
“21 de fevereiro [1939]
Hoje, terça-feira gorda, é o dia dos préstitos das grandes sociedades e, pelos anúncios de página inteira com evoés e versalhada, haverá muita alegoria estadonovista com subvencionados ouropeis, que os míopes poderão tomar como realidades estadonovistas. Que saiam! A estas horas já devem estar na rua, enguiçando nas curvas mais fechadas, com suas fanfarras, com suas encarapitadas deidades seminuas, que Aldina tão doidamente invejava, com seus fogos-de-bengala deixando acessos de tosse na esteira. Aqui permanecerei distante de tanta beleza. Um toque de incubada melancolia acordou comigo, comigo esteve o dia inteiro como uma dormência – refuguei a leitura, refuguei o rádio, a vitrola, a conversa, a visita dos amigos, dormitei quanto pude, entreguei-me sem resistência ao devaneio, algo doce, algo de prisioneiro, pescador à beira do escuro mar com cantos de sereias.
Luísa não compreende a súbita névoa, que a convivência é caixa perene de surpresas:
— Que é que você tem, filhotinho?
— Também não sei, querida. Também não sei.
E certamente estaria falando a verdade. Há verdades que se falam.”
― A Mudança
Hoje, terça-feira gorda, é o dia dos préstitos das grandes sociedades e, pelos anúncios de página inteira com evoés e versalhada, haverá muita alegoria estadonovista com subvencionados ouropeis, que os míopes poderão tomar como realidades estadonovistas. Que saiam! A estas horas já devem estar na rua, enguiçando nas curvas mais fechadas, com suas fanfarras, com suas encarapitadas deidades seminuas, que Aldina tão doidamente invejava, com seus fogos-de-bengala deixando acessos de tosse na esteira. Aqui permanecerei distante de tanta beleza. Um toque de incubada melancolia acordou comigo, comigo esteve o dia inteiro como uma dormência – refuguei a leitura, refuguei o rádio, a vitrola, a conversa, a visita dos amigos, dormitei quanto pude, entreguei-me sem resistência ao devaneio, algo doce, algo de prisioneiro, pescador à beira do escuro mar com cantos de sereias.
Luísa não compreende a súbita névoa, que a convivência é caixa perene de surpresas:
— Que é que você tem, filhotinho?
— Também não sei, querida. Também não sei.
E certamente estaria falando a verdade. Há verdades que se falam.”
― A Mudança
“9 de fevereiro [1941]
Cavalete ao ombro, grande baú pintado no cocuruto da cabeça pixaim, com uma folha de laranjeira contra os lábios, o doceiro emitia esperadíssimos sons anunciando-se à freguesia. Cocada brancas e pretas, quindins, bons-bocados, papos-de-anjo, pastéis de nata, bolinhos de cará, beijus, balas de ovo, de leite de coco, de guaco – ótimas para a tosse! Um universo de açúcar.
Era velho o preto, chamava mamãe de Iaiá, tinha sempre uma bala de quebra para Cristinha. Sua hora era pelo meio do dia, quando o sol ia a pino. Três vezes passava o padeiro empurrando a barulhenta carrocinha aprovisonadora. Deixava-se entregue à vigilância de um moleque e lá ia, peludo e bigodudo, de casa em casa, a cesta coberta com um pano braço que já fora saco de farinha. Pão francês, pão alemão, pão italiano (um pouco massudo), pão-de-provença, de milho, de forma, de ovo, pão trançado, pão-cacete e periquitos – a três por um tostão, obrigatórios nas merendas escolares – e roscas de barão, rosquinhas de manteiga, caramujos, tarecos, cavacos, joelhinhos, bolachas de água e sal. Tudo quente, cheiroso, estalando – a vida abundante, solícita, módica, vida provinciana para sempre extinta.”
― A Mudança
Cavalete ao ombro, grande baú pintado no cocuruto da cabeça pixaim, com uma folha de laranjeira contra os lábios, o doceiro emitia esperadíssimos sons anunciando-se à freguesia. Cocada brancas e pretas, quindins, bons-bocados, papos-de-anjo, pastéis de nata, bolinhos de cará, beijus, balas de ovo, de leite de coco, de guaco – ótimas para a tosse! Um universo de açúcar.
Era velho o preto, chamava mamãe de Iaiá, tinha sempre uma bala de quebra para Cristinha. Sua hora era pelo meio do dia, quando o sol ia a pino. Três vezes passava o padeiro empurrando a barulhenta carrocinha aprovisonadora. Deixava-se entregue à vigilância de um moleque e lá ia, peludo e bigodudo, de casa em casa, a cesta coberta com um pano braço que já fora saco de farinha. Pão francês, pão alemão, pão italiano (um pouco massudo), pão-de-provença, de milho, de forma, de ovo, pão trançado, pão-cacete e periquitos – a três por um tostão, obrigatórios nas merendas escolares – e roscas de barão, rosquinhas de manteiga, caramujos, tarecos, cavacos, joelhinhos, bolachas de água e sal. Tudo quente, cheiroso, estalando – a vida abundante, solícita, módica, vida provinciana para sempre extinta.”
― A Mudança
“25 de dezembro [1940]
As luzes tão débeis das velinhas coloridas derretem a escura neve que a fieira dos dias acumula nos corações. Vera e Lúcio são como retratos do passado – o mesmo espanto, os mesmo gritos! E os olhos sentem que foram criados para o êxtase das bolas multicores, das estrelas brilhantes, dos brinquedos ricos ou pobres. O verde da Árvore é o verde da esperança. Invisíveis pássaros de paz fazem ninho nos ramos enfeitados. Poderemos ouvir os seus cantos de paz.
Perdão para os nossos inimigos, perdão para os nossos amigos, perdão para nós próprios. Gosto de amor na boca. Boca – espelho do coração”
― A Mudança
As luzes tão débeis das velinhas coloridas derretem a escura neve que a fieira dos dias acumula nos corações. Vera e Lúcio são como retratos do passado – o mesmo espanto, os mesmo gritos! E os olhos sentem que foram criados para o êxtase das bolas multicores, das estrelas brilhantes, dos brinquedos ricos ou pobres. O verde da Árvore é o verde da esperança. Invisíveis pássaros de paz fazem ninho nos ramos enfeitados. Poderemos ouvir os seus cantos de paz.
Perdão para os nossos inimigos, perdão para os nossos amigos, perdão para nós próprios. Gosto de amor na boca. Boca – espelho do coração”
― A Mudança
