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Parodiando o poeta Ricardo Reis — ele mesmo uma máscara que esconde um outro, o poeta Fernando Pessoa —, a realidade sempre é mais ou menos do que cremos.
No caso de Franz Kafka, a atitude óbvia perante o livro se revela mais perigosa do que nunca.
Quase nunca lemos o que Kafka quis que lêssemos; na maioria dos casos, lidamos com organizações feitas por terceiros — em primeiro lugar, por seus editores; em segundo, por seus tradutores e intérpretes.
“Caríssimo Max, meu último pedido: queimar completamente, sem ler, tudo o que se encontrar no meu espólio (o que estiver, portanto, em caixas de livros, guarda-roupas, escrivaninhas em casa ou no escritório [...]) em termos de diários, manuscritos, cartas, de outros ou de meu próprio punho, desenhos etc.”.
Nesse texto escrito a lápis — portanto, sujeito ao apagamento —, Kafka assim dá vazão a seu desejo final: “De tudo o que foi escrito por mim valem apenas os livros: O veredicto, O foguista, A metamorfose, Na colônia penal, Um médico rural e o conto: ‘Um artista da fome’.”
Essa estratégia editorial, cujo mérito foi ter legado um tesouro literário à posteridade e influenciado todas as gerações de escritores desde então, acabou mascarando a origem do texto e, com isso, um elemento fundamental: seu caráter fragmentário.
Revolvendo os manuscritos dez anos depois, contudo, Brod decidiu separar os capítulos entre concluídos e inconcluídos. Os concluídos, em número de dez, formaram o corpo da primeira edição, cujo objetivo era entregar aos leitores um texto acabado e bem legível. Os seis restantes vieram a público somente após outra década, no âmbito da segunda edição, numa seção final do livro — “Os capítulos inacabados” —, à qual se acrescia ainda uma outra seção com trechos rasurados de diversos capítulos — “Passagens riscadas pelo autor”.
O texto é apresentado com todas as suas marcas de sujeira e de incompletude: os riscos estão em seu lugar original no corpo textual e não há qualquer ordenação de capítulos. É o leitor quem decide como e em que ordem ler os dezesseis cadernos com os textos. Sim, porque a FKA buscou uma fidelidade literal ao que restou de Kafka e, dessa maneira, publicou os capítulos em cadernos separados como se fossem os maços de folhas (e não numa encadernação única). Não temos um livro, portanto, muito menos um romance. Temos um projeto romanesco inconcluído e disperso.
Entre o manuscrito que um redige e o livro que outro lê, há um canal operado por vários intermediários, entre os quais estão editores, críticos e tradutores. E quem dirá que, mesmo com a melhor das intenções, não ocorrem interferências na comunicação, algo tão comum no cotidiano humano? Mas será que, por conta disso, deveríamos abdicar de nos comunicar?
Como antes dissemos, trata-se de uma seleção de rasuras, não de todo o material descartado. Sua incorporação ao texto “limpo”, porém, já permite — e pela primeira vez ao leitor brasileiro — uma intuição do que são os rabiscos kafkianos na página manuscrita. Assim, será possível entender de maneira bem visual que o texto de O processo, como a maior parte do legado de Kafka, permanece em última instância aberto e cheio de imundícies. Mas não seria essa a maior fidelidade a Kafka se — como escreveu certa vez a sua tradutora Milena Jesenská — a sujeira fosse sua única posse?
Nada mais atual que O processo, de Franz Kafka. Nada tão kafkiano como o momento atual vivido em nosso país.
Muitos acentuariam as circunstâncias pessoais e as motivações subjetivas que o teriam levado a produzir suas obras: judeu numa Praga antissemita, homem de temperamento fechado, quieto, associal e insatisfeito (como ele mesmo se descreve em seus Diários),
Homo homini lúpus (o homem é o lobo do homem).
E sabemos todos que não é nada fácil renunciar a prazeres imediatos em troca de eventuais e incertas satisfações futuras.
Mas esse processo custoso acarreta frustração na obtenção de prazer e, também, culpa por nossos desejos. Prazer e culpa são justamente os ingredientes da montagem da doença psíquica moderna,
E é da angústia, da frustração e, principalmente, da culpa, esses motores dos conflitos humanos, de que fala também Kafka em O processo, e, nesse seu caso, de uma culpa que parece ser anterior a qualquer pecado, uma culpa gerada por um desejo que nem mesmo se pôde conhecer ou usufruir.
Kafka narra, assim, a tragédia neurótica, marcada por uma repressão excessiva, apenas rígida, e não rigorosa em seus propósitos civilizatórios. Não é mais de Lei que se fala e, sim, de castigo. Um castigo sem crime: “Alguém devia ter caluniado Josef K., pois certa manhã ele foi detido sem ter feito nada de mau”
O ponto de encontro (ou de desencontro) para o início dessa jornada, para a qual nos convida o autor, é a boca da toca do coelho do país do espanto, da perplexidade, do inadmissível:, o país da autocracia. O desassossego nos toma de saída e de golpe.
“O que será que fizemos para sermos detidos?”, se é que fizemos algo, é a pergunta que se insinua persistentemente durante a leitura de O processo,
Acordados também de nossos sonhos alienados, nós, leitores, seguimos bem próximos ao narrador e ao próprio Josef K., tateando num mundo que perde sua solidez e suas amarras lógicas, no qual as instituições políticas, jurídicas, econômicas, familiares e religiosas são também partes intrínsecas de um grande e intrincado sistema autoritário, um grande tribunal de acusação perante o qual não existe defesa; um tribunal a que “tudo pertence” (p. 230), que é “atraído pela culpa” (p. 70), e que demonstra “desprezo” pelas pessoas (p. 184), um tribunal que “jamais é dissuadido” (p. 229) e no qual o
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Seguimos inexoravelmente em um mundo onde seríamos finalmente forçados a encarar o fato de que a razão também pode ser corrompida e revertida em cólera assassina, em que não há posição social que garanta a liberdade, onde não há relação social que preserve a segurança. Um mundo onde não imperaria mais Lei ou Ética, Razão, Verdade ou Justiça, no qual “a mentira se tornou a ordem mundial”
Que nos alimentemos da obra denunciadora de Kafka para que juntos, despertos, fortes e preparados, inventemos uma nova utopia, agora realizável, que cuide da vida e que crie felicidade.
qual tem sido o papel do direito no processo de determinação das diferentes formas de racionalidade que estabelecem os parâmetros para que as pessoas possam se construir como sujeitos?
Se o homem é um ser pensante, capaz de estabelecer regras de conduta e finalidades para as suas ações, chegamos àquela que talvez seja a sua característica mais importante: sua capacidade de autodeterminação.
O sujeito humano possui a liberdade psicológica para determinar por si mesmo os fins de suas ações. Dessa forma, a liberdade humana apresenta-se como um dado imediato da consciência.
Situado em momento histórico no qual autores começam a problematizar uma forma de subjetividade da qual parte a possibilidade de organização racional da vida social, Kafka explora o embate entre forças opostas que vivem dentro dos sujeitos, que também são projetadas na organização das relações humanas.
O procedimento penal aparece aqui como um mecanismo de regulação das pessoas, sendo que todas elas estão submetidas a uma teia de relações cujos propósitos lhes são totalmente desconhecidos.
A transformação de um personagem em um inseto (em A metamorfose, do mesmo autor), a perseguição judicial de um inocente por um sistema arbitrário são expressões de mecanismos que negam aos sujeitos humanos o reconhecimento de que possuem uma individualidade subjetiva cujo desenvolvimento depende da existência do reconhecimento coletivo deles como atores sociais competentes, como sujeitos sociais autônomos.
O processo descreve de forma perfeita como grupos dominantes podem utilizar procedimentos jurídicos de forma estratégica para perpetuar uma realidade baseada em assimetrias de poder, motivo pelo qual sujeitos são desprovidos de sua humanidade e amanhecem mortos ou transformados em algo não humano.