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A loja era organizada de uma maneira tão parecida com uma prisão que, de vez em quando, sentia medo ao perceber que fazia parte daquilo.
– Feliz Natal para a senhora! – disse Therese a sorrir. Foi o primeiro Feliz Natal que ela ouviu de algum freguês.
O nome, o endereço, a cidade surgiam na ponta do lápis como um segredo que Therese jamais esqueceria, como algo impresso para sempre na sua memória.
Therese bebeu mais um pouco de seu drinque, com vontade, embora ele fosse como a mulher, pensou, forte e apavorante.
– Dezenove – que velhice aquilo aparentava. Velhice maior que 91 anos.
– E agora faça um desejo – disse Richard. Therese fez. Desejou Carol.
De repente se sentiu imensamente superior a ele, a todas as pessoas lá embaixo. Ela era mais feliz do que qualquer uma delas. A felicidade era um pouco como voar, pensou, como ser uma pipa. Dependia de quanto barbante a gente dava...
Não é de espantar que Carol gosta dela, pensou Therese. Ela complementava a solenidade de Carol, fazia com que Carol se lembrasse de rir.
– Olhe só as amizades, por exemplo. Posso pensar numa porção de casos em que as duas pessoas nada têm em comum. Acho que existe um motivo preciso para cada amizade, do mesmo modo que existe um motivo para determinados átomos se reunirem e outros não – determinados fatores ausentes num caso, e presentes em outro – o que você acha? Acho que as amizades são o resultado de certas necessidades que podem ser completamente ocultas para ambas as pessoas, às vezes ocultas para sempre.
Acho que ele me escolheu como escolheria um tapete para sua sala, e cometeu um grande engano. Duvido que ele consiga amar alguém de verdade. O que ele tem é uma certa cobiça, que não é muito diferente de sua ambição. Está virando uma doença, não está, a incapacidade de amar? – ela olhou para Therese. – Talvez seja a nossa época.
... I’ll never regret... the years I’m giving... They’re easy to give, when you’re in love… I’m happy to do whatever I do for you…[4] Aquela era a sua canção. Aquilo era tudo que ela sentia por Carol.
Acho você meio subjetiva. Isso é meio amadorístico, não é? – Nem sempre – mas ela percebeu o que Carol quis dizer. – Você precisa saber muito para ser absolutamente subjetiva, não é? Nas coisas que me mostrou, acho você muito subjetiva, sem saber o suficiente. Therese fechou os punhos dentro de seus bolsos. Ela esperara tanto que Carol gostasse de seu trabalho, incondicionalmente. Ficara terrivelmente magoada por Carol não ter gostado nada dos poucos cenários que lhe mostrara. Carol não entendia nada daquilo, tecnicamente, mas era capaz de demolir um cenário com uma frase.
– É um gosto adquirido. Gostos adquiridos são sempre melhores, e mais difíceis de a gente se livrar deles. Therese pôs mais café na caneca que partilhavam. Ela estava adquirindo um gosto por café.
O formigar do champanhe que a fazia se aproximar dolorosamente de Carol. Se ela simplesmente pedisse, pensou, será que Carol deixaria que ela dormisse esta noite na mesma cama que ela? Mas queria mais do que isso; beijá-la, sentir a proximidade de seus corpos.
E não precisava perguntar se aquilo estava certo, não era da conta de ninguém, porque aquilo não poderia ser mais certo e perfeito.
– Meu anjo – disse Carol. – Surgido do espaço.
Como era possível ter medo, quando as duas ficavam todo dia mais fortes juntas? E toda noite. Cada noite era diferente, e cada manhã. Possuíam, juntas, um milagre.
Carol ergueu a mão lentamente e afastou seu cabelo para trás, dos dois lados, e Therese sorriu porque esse gesto era Carol, e era Carol que ela amava e sempre amaria. Ah, de um modo diferente agora, porque ela era uma pessoa diferente, e era como conhecer Carol de novo, do início, mas mesmo assim era Carol e ninguém mais.