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Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano.
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo.
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise.
Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.
O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. “Filho, silêncio.” A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: “Silêncio”. Esse é também o significado do recolhimento.
Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados, eu também posso.
Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância.
Já vi pessoas ridicularizando: “ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha”, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida. Se é alienação, sou alienado. Há muito tempo não programo atividades para “depois”. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.
Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem. Ninguém escapa, nem aquelas pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer, igual a todos nós. Com ou sem Land Rover.
Em artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico De Masi cita a obra profética A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado.