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A verdade é que vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio território há muito tempo, numa reserva de 4 mil hectares — que deveria ser muito maior se a justiça fosse feita —, e esse confinamento involuntário nos deu resiliência, nos fez mais resistentes.
Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou.
Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.
Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano.
Só que viramos adultos, estamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e sociedades. De modo que há uma sub-humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela — e isso também foi naturalizado.
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise.
É uma declaração insensata, não tem sentido que alguém em sã consciência faça uma comunicação pública dizendo “alguns vão morrer”. É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra.
Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância.
Michel Foucault tem uma obra fantástica, Vigiar e punir, na qual afirma que essa sociedade de mercado em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo.
Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro.