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Entretanto, dizer que o Estado é capitalista não é o mesmo que dizer que o Estado se move única e exclusivamente pelos interesses dos detentores do capital. A ligação entre Estado e capitalismo é muito mais complexa e estrutural, tendo em vista que o Estado contemporâneo, marcado pela impessoalidade e pela pretensa separação com o mercado, só pode ser vislumbrado no contexto do capitalismo.
Essa é a lógica por trás das intervenções estatais: limitar a ação destruidora de certos grupos de interesse e, eventualmente, até mesmo permitir a implantação de mecanismos que assegurem alguma forma de participação popular que restaure a legitimidade do sistema.
As reformas jurídicas que concedem direitos sociais aos trabalhadores e às minorias são exemplos bem-acabados desse processo, uma vez que, dependendo da força e do poder organizativo dos trabalhadores, certas reivindicações serão obtidas, como aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Entretanto, no contexto de uma crise econômica em que os assalariados estejam politicamente enfraquecidos e a manutenção dos direitos sociais comprometa o lucro das empresas capitalistas, a expressão do poder estatal mudará significativamente no intuito de reagir à nova forma adquirida pela interação
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Esses fatores explicam a importância da construção de um discurso ideológico calcado na meritocracia, no sucesso individual e no racismo a fim de naturalizar a desigualdade.
entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual.
Na verdade, podemos entender esse fenômeno contemporâneo como o movimento pelo qual um aparelho jurídico produz o campo de possíveis sujeitos políticos.
A formação dos Estados nacionais exigiu uma profunda reorganização da vida social, que englobou não somente aspectos políticos e econômicos, mas também a constituição das identidades. Novas formas de racionalidade e de percepção do tempo-espaço tiveram de emergir a fim de que um mundo baseado no contrato e na troca mercantil pudesse nascer, dissolvendo e destruindo tradições e formas sociais vinculadas à lógica das sociedades pré-capitalistas.90
Daí ser possível concluir que a nacionalidade, que se manifesta como “orgulho nacional”, “amor à pátria”, “espírito do povo”, é resultado de práticas de poder e de dominação convertidas em discursos de normalização da divisão social e da violência praticada diretamente pelo Estado, ou por determinados grupos sociais que agem com o beneplácito estatal.
A unidade nacional foi construída com o racismo e não apesar dele.
Eis a questão: seria, por exemplo, a presença de pessoas negras ou indígenas em posições de poder e destaque suficiente para combater o racismo? Para algumas pessoas, a existência de representantes de minorias em tais posições seria a comprovação da meritocracia e do resultado de que o racismo pode ser combatido pelo esforço individual e pelo mérito. Essa visão, quase delirante, mas muito perigosa, serve no fim das contas apenas para naturalizar a desigualdade racial. Mas o problema da representatividade não é simples e tampouco se esgota nessa caricatura da meritocracia. Não há dúvidas de que
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Nesse sentido, a representatividade pode ter dois efeitos importantes no combate à discriminação: 1. propiciar a abertura de um espaço político para que as reivindicações das minorias possam ser repercutidas, especialmente quando a liderança conquistada for resultado de um projeto político coletivo; 2. desmantelar as narrativas discriminatórias que sempre colocam minorias em locais de subalternidade. Isso pode servir para que, por exemplo, mulheres negras questionem o lugar social que o imaginário racista lhes reserva.
as palavras de Charles Hamilton e Kwame Ture devem ecoar em nossas mentes e nos servir de alerta: “visibilidade negra não é poder negro”.
O fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos que a população negra esteja no poder.
Porém, por mais importante que seja, a representatividade de minorias em empresas privadas, partidos políticos, instituições governamentais não é, nem de longe, o sinal de que o racismo e/ou o sexismo estão sendo ou foram eliminados. Na melhor das hipóteses, significa que a luta antirracista e antissexista está produzindo resultados no plano concreto, e na pior, que a discriminação está tomando novas formas. A representatividade, insistimos, não é necessariamente uma reconfiguração das relações de poder que mantém a desigualdade. A representatividade é sempre institucional e não estrutural, de
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filósofo Cornel West: cultiva-se a falsa ideia de que membros de minorias pensam em bloco e que não podem divergir entre si.
mesmo havendo o compromisso político do representante com o grupo racial ou sexual ao qual pertença, isso não implica que ele terá o poder necessário para alterar as estruturas políticas e econômicas que se servem do racismo e do sexismo para reproduzir as desigualdades.
As mudanças socioeconômicas ocorridas a partir do século XIX impõem uma mudança significativa na concepção de soberania, que deixa de ser o poder de tirar a vida para ser o poder de controlá-la, de mantê-la e prolongá-la. A soberania torna-se o poder de suspensão da morte, de fazer viver e deixar morrer.
E que se entenda que a morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também é entendida como a exposição ao risco da morte, a morte política, a expulsão e a rejeição.
A outra função do racismo é permitir que se estabeleça uma relação positiva com a morte do outro.
a morte do outro – visto não como meu adversário, mas como um degenerado, um anormal, pertencente a uma “raça ruim” – não é apenas uma garantia de segurança do indivíduo ou das pessoas próximas a ele, mas do livre, sadio, vigoroso e desimpedido desenvolvimento da espécie, do fortalecimento do grupo ao qual se pertence.122
Como já nos alertou Aimé Césaire, a perplexidade da Europa com o nazismo veio da percepção de que o assassinato e a tortura como práticas políticas poderiam ser repetidas em território europeu, contra os brancos, e não apenas nos territórios colonizados, contra os povos “não civilizados”.
Na revolução francesa, a violência ou o terror contra o inimigo comum é a maneira de se estabelecer os laços de fraternidade e de unidade social.
A iminência da guerra, a emergência de um conflito e o estresse absoluto dão a tônica para o mundo contemporâneo, em que a vida é subjugada ao poder da morte.
A ocupação colonial não pode ser entendida apenas como um evento restrito ao século XIX, mas como uma nova forma de dominação política em que se juntam os poderes disciplinar, biopolítico e necropolítico. A colônia como forma de dominação pode agora ser instituída dentro das fronteiras dos Estados como parte das chamadas políticas de segurança pública.
O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as mais nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras são submetidas, que se naturalize a morte de crianças por “balas perdidas”, que se conviva com áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que se exterminem milhares de jovens negros por ano, algo denunciado há tempos pelo movimento negro como genocídio.
A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade.
Como também observa Achille Mbembe, o neoliberalismo cria o devir-negro no mundo:143 as mazelas econômicas antes destinadas aos habitantes das colônias agora se espalham para todos os cantos e ameaçam fazer com que toda a humanidade venha a ter o seu dia de negro, que pouco tem a ver com a cor da pele, mas essencialmente com a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável.
Desse modo, o que tem sido chamado de “pacificação” tem possibilitado, nos quadros das cidades concebidas como commodities, a implementação de projetos de regularização fundiária e urbanística que trazem consigo a virtual transformação das favelas por processos de gentrificação, sobretudo naquelas localizadas nas regiões mais nobres da cidade.
Ou seja, a continuidade de uma lógica racista de ocupação dos presídios por negros e pobres, adicionada do elemento de descartar uma parte da população ao direito da cidade, continua marcando a segurança pública com o advento das UPPs.
direito como justiça, direito como norma, direito como poder e o direito como relação social.
A vida, a liberdade, a igualdade e a propriedade são valores que devem ser cultivados por toda a humanidade e, mesmo que não estejam positivados – expressamente amparados por uma norma jurídica emanada por autoridade instituída –, devem ser protegidos.
juspositivista, ou seja, concebe o direito como o conjunto de normas impostas pelo Estado.
Os defensores da escravidão para Luiz Gama encontravam-se no mais profundo e abjeto abismo moral, de tal sorte que qualquer reação contra eles seria justa, ainda que contrária à legalidade.
O direito é, ainda que no plano científico, definido como o conjunto das normas jurídicas, ou seja, com as regras obrigatórias que são postas e garantidas pelo Estado.151 As inúmeras leis, códigos, decretos e resoluções, ou seja, as normas estatais, seriam a expressão do que chamamos de direito.
Há ainda os que identificam o direito com o poder. De acordo com essa concepção, ainda que o direito contenha normas jurídicas, elas são apenas uma parte do fenômeno jurídico, porque a essência do que chamamos de direito é o poder. Sem o poder, as normas jurídicas não passariam de abstrações sem realidade, diriam alguns autores. O poder não é um elemento externo, mas o elemento preponderante, que concede realidade ao direito.
O direito, portanto, apresenta-se como aquilo que Michel Foucault denominou como “mecanismo de sujeição e dominação”,
As concepções institucionalistas parecem compatíveis com o direito visto como manifestação do poder. Se o direito é produzido pelas instituições, as quais são resultantes das lutas pelo poder na sociedade, as leis são uma extensão do poder político do grupo que detém o poder institucional.
A crítica feita a essa concepção é que ela não dá especificidade ao direito. Ou seja, identificar o direito ao poder sem as devidas mediações estruturais não nos permitiria diferenciar o direito de outras manifestações de poder, como a política, por exemplo.
O contrato, e não mais a servidão ou supostas hierarquias naturais que estabelecem o vínculo entre as pessoas, pressupõe que as partes que o firmaram são, pelo menos do ponto de vista formal, livres e iguais.
O direito, portanto, se materializa em uma relação entre sujeitos de direito, ou seja, entre indivíduos formalmente livres e iguais, cuja finalidade básica é a troca.
As relações que se formam a partir da estrutura social e econômica das sociedades contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas. O direito, segundo essa concepção, não é o conjunto de normas, mas a relação entre sujeitos de direito.
principalmente a partir de uma visão estrutural do racismo, o direito não é apenas incapaz de extinguir o racismo, como também é por meio da legalidade que se formam os sujeitos racializados.
Para alguns autores, a postura de neutralidade racial do judiciário, somada à política de guerra às drogas, abriu as portas para o encarceramento em massa e o extermínio da população negra, fenômeno que pode ser considerado uma renovação da segregação racial.
No Brasil, a legislação vem há anos tratando da questão racial. Em 1951, a Lei Afonso Arinos tornou contravenção a prática da discriminação racial. A Constituição de 1988 trouxe as disposições mais relevantes sobre o tema, no âmbito penal, ao tornar o crime de racismo inafiançável e imprescritível, disposição que orientou a Lei 7716/89, dos crimes de racismo, também conhecida como Lei Caó, em homenagem ao parlamentar Carlos Alberto de Oliveira, o propositor do projeto de lei.
Ações afirmativas são políticas públicas de promoção de igualdade nos setores público e privado, e que visam a beneficiar minorias sociais historicamente discriminadas.
A base da constituição da sociedade capitalista – a troca mercantil – não é um dado natural, mas uma construção histórica. O mercado ou sociedade civil não seria possível sem instituições, direito e política.
os sistemas de educação e meios de comunicação de massa são aparelhos que produzem subjetividades culturalmente adaptadas em seu interior.
Em países como o Brasil, em que a tributação é feita primordialmente sobre salário e consumo – que pesa principalmente sobre os mais pobres e os assalariados –, em detrimento da tributação sobre patrimônio e renda, que incidiria sobre os mais ricos –, a carga tributária torna-se um fator de empobrecimento da população negra, especialmente das mulheres, visto que estas são as que recebem os menores salários.