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a ação dos indivíduos, ainda que conscientes, “se dá em uma moldura de sociabilidade dotada de constituição historicamente inconsciente”.
Pessoas racializadas são formadas por condições estruturais e institucionais. Nesse sentido, podemos dizer que é o racismo que cria a raça e os sujeitos racializados.
O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações. E a escola reforça todas essas percepções ao
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Apesar das generalizações e exageros, poder-se-ia dizer que a realidade confirmaria essas representações imaginárias da situação dos negros. De fato, a maioria das domésticas são negras, a maior parte das pessoas encarceradas é negra e as posições de liderança nas empresas e no governo geralmente estão nas mãos de homens brancos.
A ideologia, portanto, não é uma representação da realidade material, das relações concretas, mas a representação da relação que temos com essas relações concretas.
Ademais, a própria indiferença teórica sobre a desigualdade racial nos campos político e econômico é fundamental para constituir um imaginário racista, pois, assim, sem críticas ou questionamentos, a discriminação racial ocorrida nas relações concretas aparecerá à consciência como algo absolutamente “normal” e corriqueiro.
O racismo é uma ideologia, desde que se considere que toda ideologia só pode subsistir se estiver ancorada em práticas sociais concretas.
Mulheres negras são consideradas pouco capazes porque existe todo um sistema econômico, político e jurídico que perpetua essa condição de subalternidade, mantendo-as com baixos salários, fora dos espaços de decisão, expostas a todo tipo de violência. Caso a representação das mulheres negras não resultasse de práticas efetivas de discriminação, toda vez que uma mulher negra fosse representada em lugares subalternos e de pouco prestígio social haveria protestos e, se fossem obras artísticas, seriam categorizadas como peças de fantasia.48
Assim, uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede a formação de sua consciência e de seus afetos.
Submetidos às pressões de uma estrutura social racista, o mais comum é que o negro e a negra internalizem a ideia de uma sociedade dividida entre negros e brancos, em que brancos mandam e negros obedecem.
Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista.
A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade, que poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aquelas inseridas nas instituições em que a ciência é produzida. Isso menos por uma questão de capacidade, e mais por uma questão de autoridade. É da natureza da ciência produzir um discurso autorizado sobre a verdade.
[…] uma ideologia conservadora impera não apenas pela força de seus argumentos, mas também pelos recursos materiais de que dispõem as forças a quem ela serve, quando se trata de excluir ou limitar a presença dos que sustentam teses opostas, nos lugares onde se realiza a atividade social de produção e difusão de conhecimentos.
O racismo é, no fim das contas, um sistema de racionalidade, como nos ensina o mestre Kabengele Munanga ao afirmar que o “preconceito” não é um problema de ignorância, mas de algo que tem sua racionalidade embutida na própria ideologia.
Já no século XX, na esteira do Estado Novo, o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira seria parte relevante desse quadro em que cultura popular e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um sentido amplo para práticas racistas já presentes na vida cotidiana. No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade.
A substituição do racismo científico e do discurso da inferioridade das raças pelo “relativismo cultural” e pelo “multiculturalismo” não se explica por uma “revolução interior” ou por uma “evolução do espírito”, mas por mudanças na estrutura econômica e política que exigem formas mais sofisticadas de dominação. O incremento das técnicas de exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência e opressão, dentre as quais, o racismo.
A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo, das formas de racismo.
Em uma sociedade que se apresenta como globalizada, multicultural e constituída de mercados livres, “o racismo já não ousa se apresentar sem disfarces”.58 É desse modo que o racismo passa da destruição das culturas e dos corpos com ela identificados para a domesticação de culturas e de corpos.
Porém, assim que a superioridade econômica e racial foi estabelecida pela desumanização, o momento posterior da dinâmica do racismo é o do enquadramento do grupo discriminado em uma versão de humanidade que possa ser controlada, na forma do que podemos denominar de um sujeito colonial. Em vez de destruir a cultura, é mais inteligente determinar qual o seu valor e seu significado.
Para Fanon, nesse estágio “o rigor do sistema torna supérflua a afirmação cotidiana de uma superioridade”.59 O que Fanon chama de “rigor” pode ser entendido como a capacidade do sistema econômico e político absorver de modo cada vez mais eficiente os conflitos, inclusive os raciais.
as culturas negra ou indígena, por exemplo, não precisam ser eliminadas, desde que seja possível tratá-las como “exóticas”. O exotismo confere valor à cultura, cujas manifestações serão integradas ao sistema na forma de mercadoria.
Não é apenas extirpando a cultura que o racismo se apresenta, mas “desfigurando-a” para que a desigualdade e a violência apareçam de forma “estilizada”, como “tema de meditação” ou “peça publicitária”60, e possam assim ser integradas à normalidade da vida social.
A permanência do racismo exige, em primeiro lugar, a criação e a recriação de um imaginário social em que determinadas características biológicas ou práticas culturais sejam associadas à raça e, em segundo lugar, que a desigualdade social seja naturalmente atribuída à identidade racial dos indivíduos ou, de outro modo, que a sociedade se torne indiferente ao modo com que determinados grupos raciais detêm privilégios.
A supremacia branca pode ser definida como a dominação exercida pelas pessoas brancas em diversos âmbitos da vida social. Essa dominação resulta de um sistema que por seu próprio modo de funcionamento atribui vantagens e privilégios políticos, econômicos e afetivos às pessoas brancas.
O problema de considerar o racismo como obra da supremacia branca ocorre quando se considera este termo fora de um contexto histórico. Não há uma essência branca impressa na alma de indivíduos de pele clara que os levaria a arquitetar sistemas de dominação racial.
Não se nega que uma das características do racismo é a dominação de um determinado grupo racial sobre outro, mas o problema está em saber como e em que circunstâncias essa dominação acontece.
A branquitude pode ser definida como […] uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade.
A supremacia branca é uma forma de hegemonia, ou seja, uma forma de dominação que é exercida não apenas pelo exercício bruto do poder, pela pura força, mas também pelo estabelecimento de mediações e pela formação de consensos ideológicos. A dominação racial é exercida pelo poder, mas também pelo complexo cultural em que as desigualdades, a violência e a discriminação racial são absorvidas como componentes da vida social,
O fato de parte expressiva da sociedade considerar ofensas raciais como “piadas”, como parte de um suposto espírito irreverente que grassa na cultura popular em virtude da democracia racial, é o tipo de argumento necessário para que o judiciário e o sistema de justiça em geral resista em reconhecer casos de racismo, e que se considerem racialmente neutros.
Na análise de Maria Aparecida Bento, o racismo funciona como uma espécie de “pacto narcísico” entre brancos em que as condições de privilégio racial não são colocadas em questão: O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vêm acompanhados de um pesado investimento na colocação desse grupo como grupo de referência da condição humana.65
Assim como o privilégio faz de alguém branco, são as desvantagens sociais e as circunstâncias histórico-culturais, e não somente a cor da pele ou o formato do rosto, que fazem de alguém negro. Características físicas ou práticas culturais são apenas dispositivos materiais de classificação racial que fazem incidir o mecanismo de distribuição de privilégios e de desvantagens políticas, econômicas e afetivas.
De fato, o ser branco é uma grande e insuperável contradição: só se é “branco” na medida em que se nega a própria identidade enquanto branco, que se nega ser portador de uma raça. Ser branco é atribuir identidade racial aos outros e não ter uma.
Por isso, às vezes é melhor ser maltratado na Europa ou nos Estados Unidos do que estar próximo de outros brasileiros negros e indígenas, algo insuportável. O pavor de um dia ser igualado a um negro é o verdadeiro fardo que carrega o homem branco da periferia do capitalismo e um dos fatores que garante a dominação política, econômica e cultural dos países centrais.
a defesa da negritude ou do personalismo negro era o primeiro passo para se derrotar a “ideologia da brancura” e remover o que Guerreiro Ramos considerava um dos maiores obstáculos para a construção da nação: o racismo.69
Uma vez que raça e racismo são conceitos relacionais, a condição de negro e de branco depende de circunstâncias históricas e políticas específicas.
Um dos grandes problemas vivenciados em uma sociedade permeada por conflitos e antagonismos de classe, de raça e sexuais é como compatibilizar a desigualdade com parâmetros culturais baseados em ideologias universalistas, cosmopolitas e, portanto, politicamente impessoais, neutras e pautadas pela igualdade formal.
Assim, a soma do racismo histórico e da meritocracia permite que a desigualdade racial vivenciada na forma de pobreza, desemprego e privação material seja entendida como falta de mérito dos indivíduos.
A meritocracia se manifesta por meio de mecanismos institucionais, como os processos seletivos das universidades e os concursos públicos.
Completam o conjunto de mecanismos institucionais meritocráticos os meios de comunicação – com a difusão de padrões culturais e estéticos ligados a grupos racialmente dominantes – e o sistema carcerário, cujo pretenso objetivo de contenção da criminalidade é, na verdade, controle da pobreza e, mais especificamente, controle racial da pobreza.
Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal.
A política, devido a características específicas da sociedade contemporânea sobre as quais falaremos adiante, passa pelo Estado, ainda que não se restrinja a ele.
O movimento pela abolição da escravidão, de luta pelos direitos civis e contra a segregação racial são exemplos de um fazer político que, mesmo confrontando as instituições, foi em alguma medida conformado pela dinâmica jurídico-estatal.
É por meio do Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos indivíduos em classes e grupos é realizada. Os regimes colonialistas e escravistas, o regime nazista, bem como o regime do apartheid sul-africano não poderiam existir sem a participação do Estado e de outras instituições como escolas, igrejas e meios de comunicação.
Nas teorias liberais sobre o Estado há pouco, senão nenhum, espaço para o tratamento da questão racial. O racismo é visto como uma irracionalidade em contraposição à racionalidade do Estado, manifestada na impessoalidade do poder e na técnica jurídica. Nesse sentido, raça e racismo se diluem no exercício da razão pública, na qual deve imperar a igualdade de todos perante a lei. Tal visão sobre o Estado se compatibiliza com a concepção individualista do racismo, em que a ética e, em último caso, o direito, devem ser o antídoto contra atos racistas.75
As teorias que analisam o Estado do ponto de vista da ética se restringem a descrever aspectos institucionais ou jurídicos da organização política, ou não conseguem fornecer explicações suficientes sobre a relação entre raça e política.
o Estado é a “condensação material de uma relação social de força”.
No capitalismo, a organização política da sociedade não será exercida diretamente pelos grandes proprietários ou pelos membros de uma classe, mas pelo Estado.
Para proteger a liberdade individual, a igualdade formal e a propriedade privada, o Estado terá de manter um delicado equilíbrio em sua atuação, que exige preservar a unidade em uma sociedade estruturalmente individualista e atomizada, que tende a inúmeros conflitos e, ao mesmo tempo, a fim de não comprometer o imaginário da igualdade de todos perante a lei, “aparecer” como um poder “impessoal” e “imparcial” e acima dos conflitos individuais. O papel do Estado no capitalismo é essencial: a manutenção da ordem – garantia da liberdade e da igualdade formais e proteção da propriedade privada e do
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“A particularidade do modo de socialização capitalista reside na separação e na simultânea ligação entre ‘Estado’ e ‘sociedade’, ‘política’ e ‘economia’”.