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Conheço os passos dessa estrada, já passei por ela, como se a própria voz fosse um viajante, chegando de um lugar distante. O que de fato seria, o que de fato é.
Como eu costumava desprezar esse tipo de conversa. Agora anseio por elas. Pelo menos eram conversas. Uma troca, por menor que fosse.
Anseio por cometer o ato do toque.
Houve uma época em que eu tive um jardim. Posso lembrar do cheiro da terra revolvida, das formas roliças dos bulbos seguros nas mãos, plenitude, do farfalhar seco das sementes por entre os dedos.
Mas invejo a Esposa do Comandante por seu tricô. É bom ter pequenas metas que podem ser facilmente alcançadas.
tom azul frio e hostil de um céu no meio do verão, sob a luz intensa do sol, um azul que isola e exclui você.
Queria pensar que eu teria gostado dela, em outra época e em outro lugar, em outra vida.
Às vezes eu desejaria que ela apenas se calasse e me deixasse andar em paz. Mas estou faminta por notícias, qualquer tipo de notícias, mesmo que sejam falsas notícias, devem significar alguma coisa.
Os jovens são com frequência os mais perigosos, os mais fanáticos, os mais nervosos com suas armas. Ainda não aprenderam com o tempo sobre as coisas da vida.
Acidentes não existem. Tudo acontece intencionalmente.
É um acontecimento, um pequeno desafio às regras, tão pequeno a ponto de ser indetectável, mas momentos como esse são as recompensas que guardo para mim mesma, como as balas que juntava e escondia, quando criança, no fundo de uma gaveta. Momentos como esse são possibilidades, minúsculos olhos mágicos.
Houve uma época em que aqui moravam médicos, advogados, professores universitários. Não existem mais advogados, e a universidade está fechada.
Tamanha liberdade, agora, parece quase sem importância.
Existe mais de um tipo de liberdade, dizia Tia Lydia. Liberdade para, a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de, que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos da anarquia, era liberdade para. Agora a vocês está sendo concedida a liberdade de.
Nós parecíamos capazes de escolher naquela época.
Foi preciso tão pouco tempo para mudar nossas ideias a respeito de coisas como essa. Então penso: eu costumava me vestir assim. Isso era liberdade.
– Sim, somos muito felizes – murmuro. Tenho que dizer alguma coisa. Que outra coisa posso dizer?
Aprendemos a ver o mundo aos arrancos, em arquejos, como se prendendo a respiração.
Quando pensamos no passado são as coisas bonitas que escolhemos sempre.
O costumeiro, dizia Tia Lydia, é aquilo a que vocês estão habituadas. Isso pode não parecer costumeiro para vocês agora, mas depois de algum tempo será. Irá se tornar costumeiro.
Se for uma história que estou contando, então tenho controle sobre o final. Então haverá um final, para a história, e a vida real virá depois dele.
Conto, em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever e, de todo modo, escrever é proibido.
Você não conta uma história apenas para si mesma. Sempre existe alguma outra pessoa.
Perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem.
A cozinha cheira a fermento, um cheiro nostálgico. Remete-me a outras cozinhas, cozinhas que eram minhas. É um cheiro de mães; embora minha própria mãe não fizesse pão.
Os panos de pratos são iguais ao que sempre foram. Às vezes esses lampejos de normalidade me pegam de surpresa, como emboscadas. O comum, o costumeiro, um lembrete, como um chute. Vejo o pano de prato, fora de contexto, e prendo a respiração. Para certas pessoas, de certa maneira, as coisas não mudaram tanto assim.
Será que algum dia estarei de novo em um quarto de hotel? Como eu os desperdicei, aqueles quartos, aquela liberdade para não ser vista.
Como poderíamos saber que éramos felizes?
Eu os tenho, esses ataques de passado, como uma vertigem, uma onda engolfando e passando por cima de minha cabeça.
Era assim que vivíamos então? Mas vivíamos como de costume. Todo mundo vive, a maior parte do tempo.
Nenhum deles eram os homens que conhecíamos.
Vivíamos nas lacunas entre as matérias.
Será que existo para ela? Serei um retrato em algum lugar, no escuro do fundo de sua mente?
Tempo como som de ruído fora de sintonia. Se ao menos eu pudesse bordar. Tecer, tricotar, alguma coisa para fazer com as mãos.
Depois do primeiro choque, depois que você havia aprendido a aceitar, era melhor estar letárgica. Você podia dizer a si mesma que estava poupando suas forças.
Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de mim.
Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia.
Ele tem alguma coisa que não temos, tem a palavra. Como a desperdiçamos, um dia.
É por falta de amor que morremos.
Sou como um quarto onde outrora as coisas aconteciam e agora nada acontece, exceto o pólen das ervas que crescem do lado de fora da janela que entra trazido pelo vento, como poeira espalhada no chão.
Quando se está em condições de vida reduzidas você tem que acreditar em todo tipo de coisas. Agora acredito em transmissão de pensamento, vibrações no éter, aquele tipo de bobagem. Não costumava acreditar.
Ela não disse: Porque elas não terão lembranças de nenhuma outra maneira. Ela disse: Porque não vão querer coisas que não podem ter.
Aliás, ele tinha lindos olhos azuis. Mas há alguma coisa faltando neles, mesmo nos que são gentis e bons sujeitos. É como se estivessem permanentemente distraídos, como se não conseguissem se lembrar muito bem de quem são.
Eu admirava minha mãe em alguns sentidos, embora as coisas entre nós nunca fossem fáceis. Achava que ela tinha um excesso de expectativas, esperava demais de mim.
Eu a quero de volta. Quero tudo de volta, da maneira como era.
Pretendo sair daqui. Isto não pode durar para sempre. Outros pensaram essas coisas, em tempos difíceis antes deste, e estavam sempre certos, conseguiram sair de uma maneira ou de outra, e não durou para sempre. Embora para eles tenha durado todo o para sempre que tinham.