[ Além do Vídeo ] Eis o que há de errado com o sistema educacional
Eu sempre me considerei uma vítima do sistema educacional brasileiro. E essa semana, gravei um vídeo pra explicar melhor o que quero dizer com isso — mas obviamente não devo ter me explicado bem o suficiente, porque dessa vez preciso fazer um Além do Vídeo.
Acho que o ponto mais crucial que preciso martelar aqui é que há muitos anos, te ensinaram uma ladainha mentirosa pra justificar o processo enlouquecedor (e caro, e ineficiente) de decorar inutilidades gerais por 13 ou 14 anos pra vomitar tudo numa prova para entrar num curso sobre o qual não te deram literalmente nenhuma informação.
Não, nem todo conhecimento é útil.
Eu já consigo ouvir você rejeitando a minha heresia anti-científica e bolando cenários absurdamente específicos pra justificar que sim, aprender multiplicação de matrizes ou logaritmos ou as regras de um verbo transitivo direto traz algum benefício. Seja porque “estimula o raciocínio”, ou porque em uma condição extremamente particular você conseguiu achar uma aplicação prática de algo que você aprendeu ao longo de mais de uma década pagando pra ser programado pra passar num vestibular.
Vamos por partes. Primeiro, a gente precisa questionar seriamente essa noção idealista e romântica de que passar horas enclausurado numa sala fazendo e refazendo equações de segundo grau é uma espécie de “ginástica mental” que exercita o raciocínio, e por extensão o pensamento crítico, analítico, científico.
Soa bonito no papel; é aquele tipo de coisa que alguém te oferece como justificativa e tu pensa “é, tem razão, faz sentido“, e para imediatamente de criticar o sistema.
Só que aí você percebe que o Brasil não tem um prêmio Nobel sequer, ou que somos um país em que milhares (milhões?) de pessoas protestam pelo “direito” da Telexfree de roubar seu dinheiro, e precisamos admitir que essa noção de que ficar passar horas divindo polinômios talvez não tenha o menor efeito positivo em nossa capacidade analítica ou científica.
Aliás, esse bizarro e auto-flagelante culto à práticas matemáticas abstratas não nos rende benefícios nem mesmo no domínio da matemática.
Se você duvida, dê uma olhada no quadro de medalhas da Olimpíadas Internacionais de Matemática:

Ó o Brasil ali na lanterna. E olhe que a China, líder absoluta no placar, manda MENOS atletas pra lá, e participa a menos tempo que a gente.
O nosso último conterrâneo a entrar no Hall da Fama do evento teve sua última participação nas Olimpíadas há quase 3 décadas.
Já os americanos, a quem adoramos categorizar como burros porque acham que se fala espanhol no Brasil (a despeito do fato de que você provavelmente NUNCA ENCONTROU UM AMERICANO QUE ACHASSE ISSO, mas ouviu várias pessoas falando que acontece então deve ser verdade né? Olhaí os tais skills analíticos nos quais somos profissionais!), estão em segundo lugar no ranking.
Olha a posição brasileira. Você está entendendo o que eu estou tentando te dizer…? Esse foco todo na matemática abstrata não nos rende bom desempenho nem mesmo na matemática, que dirá então em faculdades mentais não-relacionadas. Eu simplesmente nunca vi evidência alguma de que passar anos decorando fórmulas de Física, e em seguida inserir números no lugar das variáveis, torna alguém mais intelectualmente apto a qualquer coisa. E OLHA QUE EU CURSEI BACHARELADO EM FÍSICA.
A segunda coisa que me incomoda nos defensores dessa teoria de que “todo conhecimento é útil” são as justificativas inacreditavelmente tortuosas pra justificar o currículo escolar que é essencialmente o mesmo há séculos. Por exemplo: nos comentários deste meu vídeo acima, alguém falou que o estudo de química é útil porque sem ele, você não saberia que compostos químicos são perigoso pra se ingerir.
Sim, porque sem decorar “Foi Clovis Bornay que Incendiou Atenas” (F Cl Br I At, a família 7A da tabela periódica), eu sou sair por aí bebendo querosene e água sanitária. Em seguida o mesmo rapaz falou que balanceamento de equações químicas é igualmente fundamental, porque sem ela sua mãe não conseguiria seguir uma receita de como fazer sabão.
Porque, naturalmente, pra seguir esses cinco simples passos você precisa estudar estequiometria por 3 anos.
O que me dá mais raiva é que eu, que sempre odiei química, teria achado FODA DEMAIS ver na escola uma aplicação prática de estequiometria como essa fabricação caseira de sabão aí. Consigo imaginar uma aula de equação química bolada em torno do processo de medição das proporções desses reagentes, mas obviamente isso seria muito interessante então é claro que não é assim que nos ensinaram.
Continuando o tema de “pessoas perdidamente acostumadas com um sistema caro e ineficiente inventando desculpas absurdas para defender sua perpetuação”, teve um outro sujeito (um médico!!!) que comentou que o ensino de geografia é igualmente essencial, porque é através dele que aprendemos as doenças típicas de uma região.
A absurdíssima insinuação aqui é que, sem ter ouvido uma vez na quinta série que há incidência de esquistossomose no Nordeste, um médico daria a esse paciente tratamento para dor de dente.
Os comentários do vídeo estão repletos de argumentos desse naipe. “Não, mas you see, eu trabalho com X e uma vez numa condição bem específica que só aconteceu comigo e que muito provavelmente jamais se repetirá eu pensei ‘ah é uma vez vi isso na escola’, logo, o currículo inteiro está justificado”.
Acho que o ímpeto por trás desse tipo de comentário é uma vontade irresistível de contradizer, mesmo que pra isso você defenda um caríssimo sistema de treinamento que demora mais de uma década porque UMA VEZ você conseguiu usar UMA COISA das 4789374892 que te ensinaram.
Não, nem todo conhecimento é útil. Seria se você fosse uma entidade imortal, com tempo de sobra pra dedicar a qualquer atividade (por mais trivial que fosse), e que pudesse aprender tudo de graça. Entretanto, não somos um Tio Patinhas vampiro. Nosso processo de aprendizado gasta tempo e dinheiro, dois recursos finitos que, como qualquer outro, precisam ser gerenciados e priorizados.
Na próxima vez que alguém vier com esse argumento idiota e pedante de que “todo conhecimento é útil”, pergunte imediatamente se essa pessoa está disposta a pedir uma folga no trabalho pra ler a biografia de Leonid Kravchuk, o primeiro presidente da Ucrânia. Ou um atestado médico pra faltar na faculdade e se ocupar lendo os artigos da Muneeza Shamsie sobre a literatura clássica paquistanesa. Pergunte quando foi a última vez que ele revisou um manual de conserto de videocassete.
Mas ué, se todo conhecimento é útil, por que você está priorizando o aprendizado de X mas não de Y…? Pelo motivo óbvio de que há uma distinção claríssima entre conhecimento PRÁTICO, necessário, e conhecimento sem uso algum, e apenas alguém num arroubo de empáfia acadêmica insistiria que não há diferença entre ambos. O problema é que o nosso modelo de educação — a preparação ao todo-poderoso vestibular — colocou conhecimento sem uso na categoria de conhecimento prático, ainda que seja prático APENAS no contexto “preciso saber disso pra passar numa prova”.
Você não tem noção de quanto eu odeio essa ladainha mentirosa de que aprender coisas inúteis te ajudam a “exercitar o cérebro”. Esse argumento é uma admissão de que a parada realmente não tem valor prático, mas ao mesmo tempo sem querer admitir isso totalmente.
“Sim, eu sei, você nunca na vida precisará calcular uma equação de segundo grau no braço, sem usar uma calculadora ou consultar fórmulas — mas nós determinamos que saber fazer isso vai te tornar uma pessoa inteligente. Por que? Porque sim. E você não quer ser burro, né?”
E não é apenas o ensino da ciência exata que tá errada, as humanas não são muito melhor que isso. Como qualquer pessoa que gosta de escrever, eu gostava também de ler. Aos 9 ou 10 anos lia calhamaços imensos do Crichton, Clarke, Clancy, repetidamente; aí na escola me obrigavam a ler O Cortiço — um livro de 200 anos atrás que não interessa de maneira alguma um moleque que curte viagem no tempo, espiões e robôs assassinos.
Aí eu não lia. E tentava chutar tudo na prova. Frequentemente me dava mal, e voltava pra casa com aquela nota vermelha que dizia implicitamente “desculpaí senhora Nobre mas esse teu filho é um vagabundo que não sabe ou não gosta de ler”.
E não apenas isso, mas o mais chato nesse currículo monolítico e imutável de literatura (O Cortiço. O Alienista. A Moreninha. Noite na Taverna. O Auto da Barca do Inferno, QUE FOI ESCRITO HÁ CINCO SÉCULOS) é que todas as interpretações manjadíssimas já foram determinadas e é justamente essas que os professores querem que você decore pra responder na prova.
E redação?! Redação deveria ser, idealmente, um exercício de criatividade e auto-expressão. No entanto, os meus professores determinavam o assunto sobre qual o deveria escrever, e ai de mim se eu “fugisse do tema” — era um zero no meio da cara. O que, por extensão, significava que eu não sabia ou não queria escrever.
Isso estimula tanto a criavidade quanto dizer que um moleque pode desenhar o que ele quiser, mas tem que ser só com esse lápis verde, e tem que ser uma árvore, e não pode ser uma árvore muito grande, e aliás aqui está o layout de árvore que eu quero. Faça uma igual.
OK IZZY já entendi é uma merda mesmo QUAL A SOLUÇÃO?
Eu já falei, mas no seu ímpeto de insistir que equações quadráticas são conhecimento valiosíssimo você não ouviu. Embora o sistema norte-americano definitivamente não seja perfeito, tratar o colegial como uma faculdade, com disciplinas obrigatórias somadas a matérias eletivas que dêem ao moleque 1) uma exposição maior a possíveis carreiras e 2) um marketeable skill que ele possa usar pra entrar no mercado de trabalho.
Eu sou o único que acha completamente insano que um moleque de 16 ou 17 anos tenha que decidir um futuro de carreira sendo que o mais próximo que ele chegou de Direito/Jornalismo foi decorando conjugação de verbos, ou a maior exposição que ele teve a Medicina foi aprender que DNA significa Ácido Desoxirribonucleico…?
Eu escolhi Física porque curtia ficção científica, somado ao fato de que minha tia é uma renomada Física brasileira e a jornada dela é uma fonte inesgotável de inspiração e orgulho pra mim. Mas e um moleque que queira fazer literalmente qualquer outra coisa…? A escola falha de forma estupenda em nos oferecer qualquer direcionamento nesse sentido.
Enquanto isso, o currículo colegial gringo ensina coisas como Introdução ao Direito — que é não apenas melhor pra preparar um aluno pra ser um advogado do que saber diferenciar um verbo transistivo de um verbo intransitivo, mas é por si só útil na formação cívica do indivíduo.
E alguém que queira fazer algo voltado às Artes? Você ri, claro, porque o contexto acadêmico brasileiro te treinou a ver como “ensino útil” apenas aquilo que é diretamente necessário pra passar no vestibular. Só que sem artes você não teria os filmes, ou música, ou quadrinhos, ou videogames, basicamente nenhum dos seus principais hobbies.
Aqui no Canadá tu pode estudar, através do sistema público de educação, Film and Video Production. Se interessa em atuação, ou talvez em performance como comediante? Há aulas de teatro. Minha esposa, aliás, foi atriz estudantil e atuou numa peça chamada The Insanity of Mary Girard.
Aliás, ela também participou de um Improv Club, que é um clube misto de atuação e comédia. Olha ela aí, circulada com caneta hidrocor vermelha no Yearbook da escola:
Você talvez tenha se perguntado alguma vez porque minha mulher é tão animada e dada a fazer gracinhas e palhaçadas o tempo todo; é o jeito dela.
Que é o meu jeito, também, exceto que enquanto aqui ela tinha um veículo pra exteriorizar isso de forma criativa/produtiva, no Brasil eu era mandado pra fora de sala diariamente — sem exagero — porque estava “distraindo os outros estudantes”.
Talvez você queira ser um chef. A experiência colegial brasileira não vai fazer absolutamente nada pra te ajudar nesse objetivo. Aqui, por outro lado? Eles te ensinam.

Resolver uma divisão de polinômios: talvez eu use uma vez na vida. Cozinhar: usarei literalmente todo dia, mais de uma vez por dia, pra mim mesmo e pra toda a minha família, até o dia da minha morte. Claramente polinômios é o que deveríamos priorizar na formação educacional de um indivíduo.
Eu terminei o colegial em 2003 sem saber basicamente nada sobre o mundo fora das fronteiras brasileiras. Os alunos secundaristas aqui, por outro lado, viajam pelo mundo, tendo uma imersão na cultura e língua estrangeira na época formativa de suas vida.

“IZZY MAS É QUE O CANADÁ É RICO AQUI NÃO TERIA DINHEIRO PRA ISSO” talvez porque estamos gastando dezenas de milhares de reais pagando alguém pra nos explicar, 5 dias por semana, 4 semanas por mês, 10 meses por ano, o que é um logaritmo ou um número irracional ou a “fórmula do sorvete”.
De repente o moleque não tem o MENOR interesse ou aptidão pra matemática, ou química, ou porra nenhuma, mas quer muito ser um músico. No Brasil? Tu tá totalmente fodido. Nos EUA? Tu recebe treinamento musical (novamente: na rede pública de ensino) no colegial, se quiser.
Enquanto eu aprendi NA MINHA TERRA TEM PALMEIRAS ONDE CANTA O SABIÁ/SENO A COSSENO B SENO B COSSENO A, o primo da minha esposa aprendeu a tocar bateria.
E ele toca bateria hoje. Já eu não sei mais nem o que é um cosseno OU um sabiá. Eu preferia INFINITAMENTE ter tido acesso a treinamento clássico em guitarra do que aprender trigonometria.
E a questão é essa. Preferência. Eu não estou dizendo que temos que matar todos os professores de matemática e queimar os livros; eu estou dizendo que deveriam haver outras opções que preparassem alguém melhor pra vida real. Estou dizendo que os 12 ou 13 anos que passamos enfurnado em cadeiras desconfortáveis vestidos exatamente iguais e fazendo exatamente a mesma coisa e dando exatamente a mesma intepretação pro mesmo livro de 300 anos atrás e ouvindo alguém explicar um monte de coisa que você nunca vai usar na sua vida não são um bom uso de dinheiro ou de tempo ou de energia.
Vamos parar com essa insistência da virtudes de saber balancear uma equação química, e admitir que tá passando da hora de considerar uma alternativa.

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