Este texto não é simpático


Claramente: o verdadeiro criminoso, em todo o processo que levou ao homicídio de Carlos Castro, é Renato Seabra. Em sendo preciso estabelecê-lo – e neste caso parece que é –, a vida é sempre o bem supremo. Mas há no assassinato de Times Square aspectos que o tornam mensageiro de demasiadas urgências contemporâneas para que possamos recordá-lo apenas como a história de um pobre-diabo que matou outro pobre-diabo (ou mesmo apenas de dois turistas portugueses a fazer figuras tristes no estrangeiro, que sei eu).


Carlos Castro aproveitou-se de um débil mental e um débil mental aproveitou-se dele. A ordem dos factores não é tudo, mas tem importância. Renato Seabra supôs que dormir com aquilo que entendia ser um velho repelente haveria de trazer benefícios à sua projectada carreira como manequim. Ao fim de dois meses e meio (dois meses e meio desde a primeira mensagem no FaceBook, note-se), rebentou. E agora, a não ser que entre em cena a mui cinematográfica figura da temporary insanity, vai envelhecer numa prisão norte-americana, a fazer de mulher-aranha para assassinos e violadores de toda a Nova Inglaterra.


Para trás, fica um romance tórrido. Pelo menos para Carlos Castro, que os amigos viam "mais feliz do que nunca" – e que a estes, aliás, não se cansava de referir que Renato Seabra era, no fundo, um heterossexual desencaminhado, assim reforçando a dimensão da sua conquista.  Renato, por sua vez, tentava esconder o "amigo" – e a quem o questionasse sobre a natureza daquela inusitada relação, insistia: tratava-se de um amigo mesmo, nunca mais do que isso. Os contornos do caso, na sua mente, eram talvez os da prostituição. Mas nem em conversa consigo próprio ele usaria tal palavra.


Não me interessa saber quem mais cedeu e quem mais coleccionou ao longo daquele absurdo romance. Renato Seabra, talvez convicto da sua heterossexualidade, dormiu durante semanas com aquilo que entendia ser um velho repelente e, bem vistas as coisas, não coleccionou com isso qualquer vantagem. Carlos Castro, sabedor de que, aos rapazes bonitos e musculados, já apenas chegaria com recurso a algum grau de coação, cercou o docinho de formigas, mas por outro lado pagou-o com a vida (que perdeu, aliás, depois e antes de longa tortura).


Carlos Castro morreu mais ou menos como esperava: assassinado. A triste ironia é que o homicídio com que sonhara não era este: era um tiro desferido por uma dondoca, em plena Moda Lisboa, com toda a gente a ver, depois de o "jornalista" ter-lhe feito a desfeita de escrever numa revista: "Eu sei que ela vai ficar um bocadinho aborrecida comigo, a minha queridíssima X, mas acho que o vison não encaixava nada bem naquela toilette." No fundo, era essa a vertigem que Carlos Castro, exacerbando a sua própria importância, julgava existir à sua volta. Tudo o resto, incluindo as predações, eram rotinas. E é esse contra-senso que prova como, apesar de tudo, a debilidade mental não se resumia a um dos lados da equação.


Carlos Castro morreu como esperava e há-de ter vivido como queria. Estava no seu direito. Mas não é por isso que deixa de ter exercido sobre a vida pública portuguesa, sobre a nossa cultura pop, uma influência perniciosa. O mundo que ele ajudou a construir é deplorável: quase tão deplorável como Renato Seabra ele próprio. Renato Seabra é, na verdade, uma co-criação de Carlos Castro. Renato Seabra e tantos como ele, mesmo que sem tendências violentas – foi isso que Carlos Castro e tantos como este, babosos ou não, criaram. Uma geração inteira de gente ociosa e disposta a (quase) tudo por um lugar no coração das massas, via ondas hertzianas.


Carlos Castro era a trash culture, era a reality TV, era quase toda a acefalia do milénio concentrada numa só pessoa. Renato Seabra, sendo talvez mais alguma coisa ainda (e pior), é a trash culture, é a reality TV, é quase toda a acefalia do milénio concentrada numa só pessoa também. E o mais que se pode desejar, agora, é que não chegue a perceber como, afinal, nada na sua vida fazia sentido. No limite, só aquela acefalia original, só aquela ignorância, só a absoluta estupidez que o levou a Nova Iorque poderá, na prisão, protegê-lo de mais sangue ainda. Já chega de sangue.







CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")


NS', 22 de Janeiro de 2011


(imagem: © www.homorazzi.com)

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Published on January 22, 2011 15:02
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