A amiga revoltada com os “médicos escrotos”
Você imaginaria que passar pelo treinamento pra me tornar um paramédico me faria mais confiante nos meus conhecimentos em relação a anatomia e fisiologia, mas eu tenho reparado um efeito contrário — quanto mais eu estudo, mais eu receio que o corpo humano está além da minha compreensão, talvez porque minha cabeça já tá muito lotada de conhecimento inútil e talvez eu não devia ter passado tanto tempo lendo trivias do IMDb e o TVTropes.
Eu tento compreender os mecanismos biológicos que regem nossa existência, mas essa porra é COMPLICADA e eu jamais me senti TÃO burro quanto quando tento entender a química de neurotransmissores e seus efeitos no corpo humano. Se tudo mais falhar eu largo tudo e vou vender CDs na praia em Fortaleza.

Eu espero que falar inglês me coloque numa boa posição na indústria de vendas de CDs piratas na praia
Talvez por esse reconhecimento de minha própria ignorância, eu respeito absurdamente os profissionais de saúde que já chegaram mais longe que eu academicamente. Se o cara conseguiu convencer uma universidade E o órgão regulador local que de fato manja dos paranauês da medicina, não sou eu quem duvidará de seu conhecimento.
Entretanto, existem alguns mais leigos que acham que de fato manjam mais que médicos. E foi o caso de uma amiga minha hoje no Facebook.
Em seu textão, a garota mandava uma hipotética carta aberta para todo o sistema público de saúde da região. Sua principal reclamação era a pergunta “há chance de que você esteja grávida?” que seu médico teria feito durante um exame para descobrir a origem de uma dor nas costas. De acordo com minha amiga, isso é desrepeitoso e machista, porque “o médico está fazendo perguntas completamente irrelevantes que me reduzem ao meu sexo!”
Ok, posso estar com uma dificuldade sobrecomum pra dominar a farmacodinâmica das drogas que damos aos nossos pacientes, mas se tem uma coisa que eu já tou manjando são os protocolos de diagnósticos. Tentei explicar pra minha amiga que existe um “script” de perguntas que fazemos pra pacientes, especialmente no caso dela (dor nas costas).
Pra eliminar algumas possibilidades, fazemos uma série de perguntas padronizadas — se o paciente tem alergia a alguma coisa, se toma algum remédio no momento, se já foi hospitalizado por algum momento, se notou alguma diferença recente nas fezes ou na frequência de evacuação… e uma dessas perguntas, feitas a qualquer paciente mulher entre 14 e 45 anos, é se existe a possibilidade de que ela esteja grávida.
Gravidez frequentemente é capaz de causar certos sintomas antes mesmo que a paciente descubra que está grávida — e de fato, muitas descobrem justamente ao ir num médico examinar tais sintomas. O médico não estava sendo machista nem coisa do tipo, ele estava usando uma série de perguntas pra eliminar possíveis causas da dor, e com isso bolar um tratamento. Por motivos óbvios, possível gravidez precisa ser confirmada, e o tratamento para uma gestante de 25 anos é diferente daquele recomendado a um homem de 50 anos, por exemplo. A gente precisa saber desses detalhes.
A garota continuou irredutível, dizendo que o médico estava “insinuando que ela seria promíscua” (sério, a menina realmente falou isso), que não tem nada a ver perguntar se ela estaria grávida “porque nem namorando eu estou”, e “se eu estivesse grávida, você não acha que eu já saberia e já teria mencionado? Não sou uma idiota”.
Eu continuei, pacientemente, tentando explicar pra garota que o seu médico não tentou insinuar nada sobre sua vida sexual ou coisa do tipo. Expliquei que ao contrário do que ela alegava, sim, às vezes o paciente pode sentir dor em um local além daquele que está realmente gerando a dor. Ela ignorou isso completamente e continuou usando como “prova” da má vontade/ignorância do médico o fato de que não faria sentido perguntar sobre gravidez se a dor nas costas “nada tem a ver com meus genitais”.

Fig1: Ignorância plena
Em um determinado momento eu cansei de tentar explicar o motivo pra pergunta (ela focou na teoria de que o médico estava insinuando que ela era uma “vagabunda qualquer”) e eu sugeri que ela expressasse seu incomodo ao próprio médico, e ela veria que a explicação dele seria a mesma que a minha.
Minhas explicações à garota começaram a acumular likes, o que ela deve ter percebido com um certo incômodo/vergonha. Nesse ponto a história mudou — o médico não perguntou se ela estaria possivelmente grávida, ele teria perguntado com desdém “tem certeza que não é só uma TPMzinha? rs” e se recusado a dar qualquer tratamento.
Nesse ponto eu vi que a garota não estava disposta a considerar que xingou seu médico publicamente na internet a troco de nada, por ignorância, e desativei as notificações do tópico. Esse textão dela combinou duas coisas que me incomodam muito — esse berro de “MACHISMO!!!” com tons de caça às bruxas/Medo Vermelho McCarthyísta (ou seja, uma acusação frequentemente vazia, movida por motivações dúbias, e da qual é muito difícil de se defender sem ser atacado por uma turba sanguinolenta), e gente ignorante que acha que sabe mais que profissionais de saúde.
Eu pelo menos admito abertamente minha burrice.
Izzy Nobre's Blog
- Izzy Nobre's profile
- 5 followers
