Amanhã
Amanhã vamos ao Ti Choa. Sobre a Serreta ter-se-á abatido um nevoeiro espesso, e à silhueta da Graciosa, para além da neblina e da noite, só a poderemos adivinhar.
Lá dentro, cheirará a chicharro seco e a pão de casa.
Durante cinco minutos, a Delisa contará da ementa. Será simpática e doce, e em nenhum momento tentará parecer mais profissional do que é. Chega-lhe a boa educação do campo e sentir-se amada por tanta gente.
Para a mesa virão primeiro o curtume, o queijo de peso e a massa de malagueta. Uma das mulheres talvez peça filetes de abrótea. Outra talvez se furte ao vinho, caso em que saberemos que está grávida.
Depois as coisas começarão a precipitar-se. Virão as morcelas, as linguiças e o pão de milho. Virão os torresmos e o molho de fígado, com as suas rodelinhas de inhame à volta.
Virá a alcatra de feijão.
A alcatra de feijão do Ti Choa é o melhor prato de feijão português, e um dia eu ponho as minhas botas em cima da mesa de um desses chefs da televisão e digo exactamente isso.
Comeremos doces – malassadas, que é Carnaval, ou então filhoses de forno –, e beberemos licor de amora. A certa altura talvez se levante uma rapariga para cantar, e não será o melhor momento da noite.
De qualquer modo, se for mesmo depois do licor, até o rapaz do teclado nos parecerá o Rubinstein. E da última vez levantou-se um senhor para cantar o Frank Sinatra, e cantou maviosamente, e afinal era o António Pinto Basto, e estivemos ali a falar do Sporting.
Voltaremos tarde, não tão tarde assim, e talvez a Delisa nos deixe fumar um cigarro, se não estiver ninguém. As mulheres conduzirão os carros, menos a minha, e cheirará a enxofre.
E a metafísica.
Amanhã vamos ao Ti Choa e eu escrevo a crónica já hoje porque nunca sei se me vou querer vir embora.
* Diário de Notícias, Fevereiro 2015


