Jaquinzinhos
Na mesa ao lado da nossa, um rapaz tira os rabos aos chicharrinhos. Quase toda a semana jantámos aqui: gostamos de ter sítios habituais, e este é o de Ponta Delgada.
A frequência compensa. Há dias esteve aí um casalinho americano, bebendo e falando de filosofia, contra tudo aquilo que julgamos saber sobre os americanos do século XXI. Anteontem havia um grupo de amigos bem vestidos: uma senhora fazia anos, outra ofereceu-lhe um falo e uma terceira riu-se a noite toda, às onomatopeias.
Pus-me a contar os seus talentos. Sabia grasnar, coaxar, arrulhar, balir, grugulejar. Só não sabia estar quieta, e essa era a sua fragilidade.
Apeteceu-me abraçá-la.
Contudo, ninguém produziu em mim tão forte impressão como este rapaz que agora separa com a ponta da faca os rabos, as espinhas e as cabeças dos chicharrinhos, ali muito direito na sua cadeira, disfarçando o sotaque micaelense. Parte cada lombinho ao meio, mastiga-o bem, enxagua a boca e só depois se permite um cubo de batata doce ou inhame.
Em qualquer dos casos, descasca-o muito bem, girando-o no ar a ver se não lhe sobra um só pedaço de casca.
É uma nova categoria de açoriano, para a qual só agora começo a despertar. Imagino-o em criança, sentado à mesa, à espera de que a mãe lhe limpe o bife de nervos e gorduras. Vejo o seu esgar se detectou um resto de pele ou de cartilagem no frango.
Depois vejo-o já adulto, fazendo as mesmas coisas, e ela também. E, como à senhora que balia, apetece-me abraçá-lo.
Estamos a perder o gosto pelas texturas. Desconfiamos dos matizes e das combinações, dos confrontos e das sínteses.
Estamos a perder o gosto de comer.
Estamos a perder a curiosidade, a aventura, e nenhuma ameaça me parece hoje tão grande como essa.
* Diário de Notícias, Janeiro 2015


