Colosso

27.1.15.jpegUma vez salvei um cavalo. Ainda não vivia aqui: apenas passava cá temporadas. Certa manhã dei-me conta de que, ao longe, algo batia. Continuei ao computador, enfastiado. Quando fui ver, percebi que a égua da minha sobrinha tinha caído de um muro.


Fiz o que não devia ser preciso pedir a um ser humano: corri pelos cerrados, agarrei na corda que lhe prendia o cabresto e puxei até arrancar a estaca. Tinha tombado de um cerrado para o outro e estava presa pela cabeça, esperneando contra uma velha capoeira.


Uns minutos mais, disse o veterinário, e teria partido o pescoço. Levantou-se e sacudiu a crina. Ainda viveu anos.


Foi o meu único dia nobre, e tenho um tendão atrofiado na mão direita para prová-lo. Mas, principalmente, lembro-me de ver aquele animal prostrado e sentir vontade de chorar. Ainda hoje sou visitado por esse momento.


Eu não gostava de animais, e passar-se-iam ainda vários anos até entrar cá em casa este cão com que agora coabitamos. Mas mesmo isso, creio, começou ali: naquela besta enorme, nos contornos dos seus músculos retesados, na aflição do seu semblante – no quão indefesos podem revelar-se até os mais impressionantes colossos.


Ou sobretudo eles.


Isto era para ser a introdução de uma crónica sobre os bezerros do meu cunhado. E sobre o que o meu pai criou no ano passado, aqui no cerrado ao lado: um bezerro que brincava com os toros de madeira, como um cachorrinho, e que temos comido ao longo deste Inverno.


Queria dizer que os animais de criação também têm emoções e, apesar disso, há uma dignidade na sua morte. Criar animais para comer vem de um tempo em que ainda não havia hormonas nem selos de qualidade.


Nem desperdício.


Mas, de facto, olho para aquele pasto e ainda só vejo a égua da minha sobrinha. Chamava-se Bolota e agora é um cavalo selvagem.


Diário de Notícias, Janeiro 2015

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Published on January 27, 2015 00:55
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