José Guilherme
Persiste algo de maravilhoso nisto de ligar para os serviços de electricidade e, à pergunta sobre quem é o titular do contrato, responder: “José Guilherme da Silveira Couto”. Passaram duas décadas sobre a sua morte e, porém, esta casa permanece dele.
Todos os anos, durante muito tempo, voltei aqui. Dormia na cama em que ele dormira, comia nos pratos em que ele comera, abria e fechava as portas e as janelas que ele abrira e fechara.
O meu avô. O meu primeiro amigo. A primeira pessoa que vi morrer.
Agora estou no pequeno jardim que fui plantando onde outrora ele tinha o quintal. Acabo de voltar de viagem e de perceber que a conta da luz chegou, venceu e foi executada na minha ausência. Repito o nome dele para o telefone: “José Guilherme da Silveira Couto”.
O próprio nome é bonito, antigo, pleno de ressonâncias.
Gostava que pudesse ver esta horta que plantei nos fundos. Gostava de mostrar-lhe a araucária, já quase da altura da casa, e de obter a sua aprovação para os locais que escolhi para a tipoana e o jacarandá, que tão incerto me deixam ainda.
Gostava de pedir-lhe desculpa por ter plantado um plátano. Suja tanto, um plátano – não teria gostado.
Ou teria?
Na verdade, a sua memória vai-se diluindo. Há cada vez mais coisas que a minha mãe e a minha irmã e o meu pai me dizem sobre ele de que eu não me lembro. Talvez seja verdade o contrário também. E, no entanto, tenho estes papéis dos serviços de electricidade, como aliás os dos serviços da água, desactualizados como um epitáfio.
José Guilherme da Silveira Couto.
Dediquei-lhe um livro. Fi-lo personagem de outro.
Lutar contra a erosão da memória: eis aquilo a que, no fim, se resume um regresso. E, no entanto, esquecemos na mesma. Devagar, como nas maiores tragédias.
Diário de Notícias, Dezembro 2014


