Conduto

IMG_8561.JPGNo fim-de-semana fiz curtume. Este ano tive menos tempo para a horta – algum milho, algum nabo, e de resto não mais do que duas burrinhas de tomate, cultura em que o meu pai atingiu sucessos que entraram para o folclore da Terra Chã –, mas as malaguetas cresceram sozinhas, a partir dos pés da temporada anterior. Fotografei-as durante meses, lindas. Entretanto, ocorreu-me que devia fazer alguma coisa delas. Podia ter feito massa de malagueta, para acompanhar o queijo fresco. Fiz curtume.


Os continentais preferem o anglicismo “picles”. Nós chamam-lhe “curtume”, como nos dicionários antigos. Os velhos usavam-no como conduto – nas grandes cidades ainda se diz “conduto”? –, para disfarçar a ausência de toucinho. Eu uso-os como apontamento gourmet, talvez, mas não me esqueço. Então, esmaguei dentro de um frasco três dentes de alho e juntei-lhes duas folhas de louro, pimenta da Jamaica, uma mão-cheia de sal e vinagre com fartura. Daqui a duas semanas, tenho curtume de malagueta. Pareceu-me fácil.


Há sempre uma desilusão nisto. Guardamos lembranças de sabores extraordinários e ilusões de receitas complicadíssimas – longas fermentações, perseveranças, paciência. Tentamos, e é fácil. Os meus amigos biológicos fazem de tudo – nem precisam de perguntar. Invejo-os e detesto-os: esclarecem-me o romantismo. Mas, quando me sento na cozinha dos velhos pais a comer uma alcatra, aquela delicada combinação de vulcões e cravo-da-Índia, para que confluem 600 anos de História e aventura, sei que há um ponto a que ainda não chegamos. Chama-se memória, creio.


É esse ponto que me interessa: na gastronomia e na literatura. E na vida.


Diário de Notícias, Novembro 2014

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Published on December 02, 2014 02:44
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